ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
GABINETE DO CONSELHEIRO WILSON ROGÉRIO WAN-DALL

 

Processo nº:

REC-06/00263401

Unidade Gestora:

Prefeitura Municipal de Guabiruba

Responsável:

Sr. Luiz Mozer

Assunto:

Recurso de Reconsideração (art. 77 da LC 202/2000) – TCE-03/03246456

Parecer nº:

GC/WRW/2009/254/ES

 

Ato irregular. Gestão anterior. Fiscalização.

Os atos irregulares praticados em exercícios anteriores à gestão em exame não servem para justificar as irregularidades que lhes sucedem.

 

As auditorias e a fiscalização do Tribunal de Contas são realizadas pelo sistema de amostragem, não abrangendo a totalidade dos atos praticados pelos dirigentes da Unidade Gestora, motivo pelo qual algumas irregularidades não foram apontadas na fiscalização das gestões anteriores, mas nem por isso tais atos passam, posteriormente, a ser regulares ou lícitos.

 

A auditoria interna ou o controle interno da Unidade Gestora deve ser eficaz na prevenção e correção de irregularidades, que atentem contra as normas legais ou regulamentares, bem como às decisões emanadas deste Tribunal.

 

Gestão pública. Princípio da legalidade.

O gestor público encontra-se amarrado ao princípio constitucional da legalidade, de modo que apenas pode fazer o que a lei determina ou autoriza.

 

 

1.   RELATÓRIO

 

Cuidam os autos de recurso interposto pelo Sr. Luiz Mozer, ex-Prefeito do Município de Guabiruba, em face do Acórdão n. 0507/2006, proferido nos autos n. TCE-03/03246456.

 

Seguindo os trâmites regimentais, a peça recursal foi examinada pela Consultoria-Geral, que, mediante o Parecer n. COG-883/2008, propôs o seu conhecimento e, no mérito, que lhe fosse negado provimento.[1]

 

O Ministério Público acompanhou o entendimento do órgão consultivo.[2]

 

Este o sucinto e necessário relatório.

 

2.   DISCUSSÃO

 

Compulsando os autos principais, verifico que a decisão atacada foi vazada nos seguintes moldes:

 

[...] 6.1. Julgar irregulares, com imputação de débito, com fundamento no art. 18, inciso III, alínea "c", c/c o art. 21, caput, da Lei Complementar n. 202/2000, as contas pertinentes à presente Tomada de Contas Especial, que trata de irregularidades constatadas quando da análise das contas anuais de 2000 da Prefeitura Municipal de Guabiruba, e condenar o Responsável – Sr. Luiz Moser - ex-Prefeito daquele Município, CPF n. 398.776.639-53, ao pagamento da quantia de R$ 2.370,33 (dois mil trezentos e setenta reais e trinta centavos), referente a despesas com abastecimento do maquinário agrícola da Associação de Agricultores de Guabiruba - ADERG, caracterizando auxílio a entidade privada sem lei autorizativa, em confronto ao princípio da legalidade insculpido no caput do art. 37 da Constituição Federal, conforme apontado no item 4.1 do Relatório DMU, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do Estado, para comprovar, perante este Tribunal, o recolhimento do valor do débito aos cofres do Município, atualizado monetariamente e acrescido dos juros legais (arts. 40 e 44 da Lei Complementar n. 202/2000), calculados a partir da data da ocorrência do fato gerador do débito, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança judicial (art. 43, II, da Lei Complementar n. 202/2000).

 

6.2. Aplicar ao Sr. Luiz Moser - qualificado anteriormente, com fundamento nos arts. 70, II, da Lei Complementar n. 202/00 e 109, II, c/c o 307, V, do Regimento Interno instituído pela Resolução n. TC-06/2001, a multa no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), com base nos limites previstos no art. 239, III, do Regimento Interno (Resolução n. TC-11/1991) vigente à época da ocorrência da irregularidade, em face do pagamento de despesas sem observância à estrita ordem cronológica das exigibilidades, para cada fonte diferenciada de recursos, em afronta ao art. 5º da Lei Federal n. 8.666/93 (item 2 do Relatório DMU) fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do Estado, para comprovar ao Tribunal o recolhimento da multa ao Tesouro do Estado, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança judicial, observado o disposto nos arts. 43, II, e 71 da Lei Complementar n. 202/2000.

 

6.3. Determinar à Prefeitura Municipal de Guabiruba que:

 

6.3.1. cesse, de imediato, os pagamentos do referido "Abono Esposa", instituído pela Lei Municipal n. 05, de 05/07/1976, por não ter sido ela recepcionada pela Constituição Federal, ocorrendo, por isso, sua revogação tácita;

 

6.3.2. se abstenha, de imediato, de fornecer combustível à Associação de Agricultores de Guabiruba - ADERG até que seja regularizada a forma de repasse de tal auxílio, conforme determina o art. 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF e entendimento deste Tribunal constante da Decisão n. 2652/2005, de 05/10/2005;

 

6.3.3. regularize, de imediato, a situação dos servidores postos à disposição do Fórum daquela Comarca, nos moldes do que propõe o Prejulgado n. 1115 desta Corte de Contas.

 

6.3.4. cumpra o disposto no art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal a cada nova concessão de isenção de IPTU, pois tal benefício, nos moldes preconizados no inciso III do art. 180 do Código Tributário Nacional, caracteriza isenção em caráter não geral;

 

6.3.5. adote providências junto ao órgão responsável pela análise dos procedimentos de concessão de isenção do IPTU desse Município, visando ao cumprimento dos critérios estabelecidos no Código Tributário Municipal e seus regulamentos, sob pena de responsabilidade solidária por eventuais abusos cometidos.

 

6.4. Determinar à Diretoria de Controle dos Municípios - DMU, deste Tribunal, que adote providências visando à verificação do atendimento das determinações constantes dos itens 6.3.1 a 6.3.5 desta deliberação, procedendo à realização de diligências, inspeção ou auditoria que se fizerem necessárias.

 

6.5. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, bem como do Relatório DMU n. 221/2005, do Prejulgado n. 1115 e da Decisão 2652/2005, deste Tribunal, à Prefeitura Municipal de Guabiruba, ao Sr. Luiz Moser - ex-Prefeito daquele Município, e aos Procuradores do Responsável.[3]

 

Com efeito, este Tribunal imputou débito ao Recorrente, por ter ordenado despesas com abastecimento do maquinário agrícola da Associação de Agricultores de Guabiruba - ADERG, caracterizando auxílio a entidade privada sem lei autorizativa.

 

Nas razões do recurso, o ex-gestor postulou o cancelamento do referido débito, argüindo, em síntese, que a Administração Municipal forneceu combustível à Associação de Agricultores a fim de que pudesse prestar serviços aos seus associados.

 

Alegou que os serviços executados pelas máquinas trouxeram benefícios ao Município, em razão da emissão de notas fiscais de produtores rurais, para comercialização do produto plantado, gerando retorno fiscal ao Município de Guabiruba.

 

Assinalou que tal procedimento vinha ocorrendo desde as administrações anteriores.

 

Argumentou a impossibilidade de manutenção da condenação imposta, seja pela ausência de prejuízo ao erário ou de apropriação de valores públicos por parte do recorrente ou de qualquer particular, nem se vislumbra ter havido um mínimo de má-fé, que revele a presença de um comportamento desonesto.

 

Finalizou sublinhando que o fornecimento de combustível para abastecer o maquinário da Associação não configurou ato ilegítimo ou antieconômico injustificado, porquanto atendeu ao interesse público.

 

A Consultoria-Geral rechaçou os argumentos do Recorrente, reafirmando o ferimento do princípio da legalidade, conforme se depreende do excerto, a seguir, transcrito:

 

[...] Alega o Recorrente que todas as suas ações foram para o uso e interesse publico, e que não houve má fé. Porém, tais argumentos não justificam a despesa de R$ 2.370,33 (dois mil trezentos e setenta reais e trinta centavos) sem autorização legislativa.

Ademais, a ausência de má-fé do infrator é irrelevante na esfera administrativa, bastando a voluntariedade da conduta do agente. Nesse sentido, vale transcrever, as palavras do Professor Celso Antônio de Mello:

 

É muito discutido em doutrina se basta a mera voluntariedade para configurar a existência de um ilícito administrativo sancionável, ou se haveria necessidade ao menos de culpa. Quando menos até o presente, temos entendido que basta a voluntariedade, sem prejuízo, como é claro, de a lei estabelecer exigência maior perante a figura tal ou qual.[4] (grifei)

 

 Cumpre assinalar, que o fato de estar sendo questionada uma despesa, não quer dizer que a instituição não à mereça, porém, em acordo à Constituição Federal, hão de ser obedecidos os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência esculpidos no art. 37.

[...]

 

A Constituição Federal deixa bem claro a vedação à utilização de recursos, sem autorização legislativa específica. A irregularidade fere o princípio da legalidade, como veremos abaixo:

 

LEGALIDADE

Representa um princípio-ícone no direito brasileiro, constituindo-se pilar de toda ordem jurídica nacional.

Para o Direito Administrativo brasileiro o princípio da legalidade assume um significado muito especial, visto que ora traduz-se numa expressão de direito, ora revela-se elemento de garantia e segurança jurídicas.

Em função dessa dupla função atribuída ao princípio da legalidade na seara pública é que se sustenta que o famoso adágio "o que não é juridicamente proibido, é juridicamente permitido", denominado princípio da autonomia da vontade, não encontra acolhimento neste campo do Direito, pois nele os bens tutelados interessam a toda coletividade. Assim, no Direito Administrativo não se admite que o administrador público dê azo à sua imaginação sem que sua conduta esteja previamente definida e aparada por lei. Não bastam o talento e perspicácia do administrador público, pois não são apanágios jurídicos, mas qualidades essencialmente administrativas. A regulação estrita pela ordem jurídica da atuação dos agentes e órgãos públicos funciona como elemento garantidor daqueles que subsidiam e se servem da prestação dos serviços públicos. Por mais criativo e habilidoso que seja o administrador público, este deve conscientizar-se de que não age em nome próprio, mas sim em nome do Estado (e reflexamente, em nome da coletividade). Por isso, no campo público afirma-se que "o que não é juridicamente proibido, não é juridicamente permitido".

Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei determina. Daí que o princípio da autonomia da vontade não encontra amparo no direito administrativo. Nesse sentido, encontramos o magistério de Diógenes Gasparinni.

Embora seja um princípio a ser observado por toda a malha da Administração Pública, o princípio da legalidade enunciado pelo caput do art. 37 encontra identidade de conteúdo material com aquele declarado pelo inciso II do artigo 5o. ("ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"). A aplicação do princípio da legalidade no âmbito do Direito Público requer adaptações que visam a adequar a sua funcionalidade neste setor do Direito, não aviltando a sua essência ontológica. Plasmado na mesma substância, até porque declarado pelo mesmo documento jurídico, o princípio da legalidade observado pelo Direito Administrativo traduz o sentido de que toda a atividade funcional do Estado encontra-se adstrita ao disposto em lei, pois que em última instância "todo poder emana do povo e em seu nome é exercido". Conforme lições de Hely Lopes Meirelles, "sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, deles não pode se afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso."[5]

Ainda, Celso Antônio Bandeira de Mello nos ensina quanto ao princípio da Legalidade:

Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro.[6]

 

O Recorrente também alega (fl. 06, do recurso):

Frise-se que o fornecimento de parte do combustível utilizado para abastecer o maquinário agrícula da ADERG não se trata de ato ilegítimo, tampouco antieconômico injustificado...

 

Conforme supratranscrito,  o Recorrente refere-se a despesa como sendo um ato legítimo, contudo, não faz prova nos autos da legitimidade de tal ato, tanto é que, em vista dessa e de outras irregularidades, foi instaurada a Tomada de Contas Especial.[7]

 

Com efeito, assiste razão ao órgão consultivo.

 

Inicialmente cumpre assinalar que o fato de as administrações anteriores supostamente ter cometido idêntica irregularidade não justifica a situação examinada nestes autos.

 

Conforme demonstrou a Consultoria, restou cabalmente configurada a inobservância do princípio da legalidade, maculando a despesa realizada pela Administração Municipal.

 

As ponderações apresentadas pelo Recorrente, acerca de que houve o atendimento do interesse público, da inexistência de má-fé ou locupletamento do gestor não devem prevalecer para elidir o débito em questão.

 

Anoto que, em razão da situação em exame foi alegado um incremento fiscal ao Município, mas tal fato não foi comprovado nos autos.

Neste sentido, afigura-se oportuna a transcrição da lição de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, quando trata da boa-fé do gestor:

[...]

Independentemente do pagamento do débito, é possível oferecer defesa com o único objetivo de demonstrar a boa-fé na prática do ato.

É consabido que a quitação não afasta a possibilidade de o julgamento ser pela irregularidade da conta, ensejando inclusive a inelegibilidade do agente para cargo público.

A boa-fé pode não elidir diretamente o dever de pagar o erário pelo dano experimentado, mas certamente constituirá elemento importante em relação ao animus do agente e permitirá à Corte contextualizar as várias dificuldades e pressões de toda a ordem que foram sopesadas pelo agente no momento da decisão.

[...]

É interessante notar que, na maioria dos casos, a boa-fé não constitui condição suficiente para afastar a irregularidade até porque, no caso de contas, o ônus da prova é do agente que gere os recursos públicos.[8] Grifo nosso

 

Assim, as justificativas esboçadas pelo Recorrente poderiam ser consideradas na quantificação da multa (de até cem por cento do valor do dano) aplicada em conjunto com a imputação débito, possibilidade esta prevista no art. 68 da Lei Complementar n. 202/2000.[9]

 

Ressalto, no entanto, que tal multa não aplicada ao ex-gestor municipal por este Tribunal.

 

A meu ver, o princípio da legalidade, enquanto um dos pilares do Estado de Direito, deve ser resguardado, a fim de evitar que a sua mitigação, diante de casos específicos, resulte no seu enfraquecimento e tenha conseqüências danosas à integridade da gestão publica. Assevero que “os fins não justificam os meios”.

 

 Desta feita, posiciono-me por acompanhar a Consultoria, para manter o débito do item 6.1 da decisão recorrida.

 

No que tange à multa do item 6.2, em face do pagamento de despesas sem observância à estrita ordem cronológica das exigibilidades, para cada fonte diferenciada de recursos, em afronta ao art. 5º da Lei Federal n. 8.666/93, não houve manifestação por parte do Recorrente, o que enseja a manutenção da referida sanção.

 

 

3.   PROPOSTA DE DECISÃO

 

CONSIDERANDO o que mais dos autos consta, em conformidade com os pareceres da Consultoria-Geral e do Ministério Público submeto à apreciação deste Tribunal a seguinte proposta de decisão:

 

6.1. Conhecer do Recurso de Reconsideração, nos termos do art. 77 da Lei Complementar n. 202/2000, interposto contra o Acórdão n. 0507/2006 exarado na Sessão Ordinária de 15/03/2006, nos autos do Processo n. TCE-03/03246456 e, no mérito, negar-lhe provimento, ratificando na íntegra a decisão recorrida.

 

6.2. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, bem como do Parecer COG n. 883/08 à Prefeitura Municipal de Guabiruba e ao Sr. Luiz Moser – ex-Prefeito do citado Município.

 

 

              Gabinete do Conselheiro, em 03 de junho de 2009.

 

 

 

WILSON ROGÉRIO  WAN-DALL

Conselheiro Relator

 

 

 

 

 

 

 



[1] Fls. 23/37.

[2] Fls. 38/39.

 

[3] Fls. 150/151 dos autos n. TCE-03/03246456.

[4]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.751.

[5]Ética na Administração em face dos Princípios Constitucionais de Administração Pública por :Felipe Vieira de Souza Sítio eletrônico:http://www.vemconcursos.com/opiniao/index.phtml?page_ordem=assunto&page_id=944&page_print=1 Acesso em : 27/10/2008.

[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

[7] Fls. 29/32.

[8] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Tribunais de Contas do Brasil – Jurisdição e Competência. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p.637.

[9] Art. 68 – Quando o responsável for julgado em débito, além do ressarcimento a que está obrigado, poderá ainda o Tribunal aplicar-lhe multa de até cem por cento do valor do dano causado ao erário.