ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO

GABINETE DO AUDITOR GERSON DOS SANTOS SICCA

Processo n°: CON-07/00005307
UNIDADE GESTORA: SECRETARIA DE ESTADO DE COORDENAÇÃO E ARTICULAÇÃO
Interessado: Ivo Carminati
Assunto: Imóvel Público. Alienação. Procedimento.

1. RELATÓRIO

O Sr. Secretário de Estado de Coordenação e Articulação formulou Consulta a esta Corte de Contas nos seguintes termos:

A Consultoria Geral, por meio do Parecer nº 192/07(fls.04-20), sugeriu o conhecimento da Consulta, no que foi acompanhada pelo Ministério Público(fls.21-23).

É o breve relato.

2. PROPOSTA DE VOTO

Preliminarmente, constato que a Consulta não veio acompanhada de parecer jurídico, como determina o art. 104, inciso V, do Regimento Interno. Contudo, a importância da questão colocada recomenda a dispensa do requisito, nos termos do art. 104, §2º, do mesmo Regimento.

Passo, portanto, à análise do mérito.

Correta a conclusão apresentada pela Consultoria Geral quanto aos itens questionados, não obstante outros argumentos possam ser enfocados para indicar a impossibilidade de realização do negócio aventado na Consulta.

A Consulta traz subjacente um fenômeno já recorrente na esfera da Administração Pública, qual seja, a crescente adoção de formas jurídico-privadas de contratação, algumas sem o adequado suporte legal. Como o legislador não consegue acompanhar a velocidade da atuação administrativa, a fim de dar suporte a soluções adequadas, não raras vezes o administrador público age à margem da Lei, no intento de obter maior eficiência ou atingir objetivos que não seriam efetivados com a estrita observância da legislação.

Na Consulta em apreço, o Consulente apresenta uma forma original de contratação pública, o que impõe uma indagação sobre sua viabilidade diante dos termos da Lei Federal nº 8.666/93. A situação envolve a realização de uma licitação para alienação de bens públicos, sendo que o pagamento a ser realizado pelo contratado seria feita com a entrega de obra por ela realizada. A questão também pode ser analisada em ângulo inverso, ainda que inexista diferença substancial: o Estado estaria entregando imóvel como pagamento por obra realizada pelo contratado.

Constata-se, de antemão, que a hipótese aventada procura mesclar duas formas de contratação distintas, a saber, a contratação para a realização de obra e a alienação de bem público, de modo que esta última modalidade representaria a forma de adimplemento das obrigações da Administração Pública frente ao particular contratado, substituindo o pagamento em moeda corrente nacional. Assim, o contrato para a execução de obra pública assume caráter privilegiado, tendo em conta que a alienação representaria uma parcela das obrigações estabelecidas naquele.

O que a hipótese parece indicar, em verdade, é a contratação de obras públicas com a previsão de que o adimplemento da obrigação por parte da Administração ocorrerá na forma de dação em pagamento, modalidade de alienação de bens públicos autorizada pelo artigo 17, inciso I, da Lei Federal nº 8.666/93.

À primeira vista, poderia parecer que a contratação de execução de obra pública e a previsão de adimplemento por meio da dação de pagamento não encontrariam óbice legal, bastando que houvesse autorização legislativa e avaliação prévia. Nesse sentido, avaliado o bem e identificado o valor da obra, viável seria a adoção da forma de pagamento indicada.

A questão, todavia, merece uma abordagem mais cuidadosa, sob pena de estar-se fragilizando o princípio da legalidade e abrindo as portas para as mais variadas formas de contratação imaginadas pelo administrador público, em uma fuga desenfreada para o direito privado.

O primeiro óbice à utilização da dação em pagamento adviria do próprio Código Civil, e isso porque o seu art. 356 dispõe que a aceitação de prestação diversa da que é devida é uma faculdade do credor. Logo, se é uma faculdade do credor da obrigação, obviamente a Administração não pode impor, em edital de licitação, que o pagamento pela obra seja realizado na forma de dação em pagamento, diante da evidência de que o contratado tem o direito de receber o valor cobrado pelo serviço e que foi considerado na proposta vencedora.

O segundo obstáculo decorre das exigências de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração e de preservação do princípio da isonomia. Além de ser obrigatória a demonstração de que não seria possível obter maior vantagem financeira com a venda do bem mediante paga em dinheiro, a Administração deveria comprovar a inexistência de outros credores interessados em obter a satisfação de seus créditos pela mesma modalidade de pagamento. Pertinente é a lição de Marçal Justen Filho, que me permito reproduzir:

A dação em pagamento somente pode ocorrer em caráter expepcional, quando demonstrada a inexistência de uma pluralidade de interessados. Na situação imaginada, objeto de apreciação, é improvável que fique demonstrada a ausência de demais interessados no adimplemento de seus créditos, ainda mais se considerarmos as dificuldades financeiras alegadas diuturnamente pelos entes públicos.

Restaria a possibilidade de licitação para a escolha de melhores condições de pagamento, como referido por Marçal Justen Filho, conquanto ele vislumbre apenas o caso em que se forma uma competição entre os credores do Poder Público, a fim de verificar qual teria seus créditos satisfeitos pela dação em pagamento(hipótese de difícil concretização).

Note-se que, além disso, poderia ser levantado o argumento de que a licitação para a escolha da melhor proposta em relação à execução da obra já contemplaria o princípio da isonomia, o que autorizaria a previsão da dação em pagamento como forma de pagamento.

Há outros óbices, entretanto, decorrentes da própria natureza da contratação, que impedem a adoção de tal forma de pagamento.

De acordo com o artigo 3º, §1º, I, da Lei Federal nº 8.666/93, é vedado aos agentes públicos:

Ora, é sabido que a dação em pagamento não é uma forma de normalmente pagamento utilizada pela Administração e corriqueiramente aceita no mercado, principalmente quando se trata de obras públicas. Via de regra, as empresas que atuam no setor de construção civil dependem do ingresso de significativas quantias em dinheiro para manter a sustentabilidade de suas atividades, sendo a dação em pagamento uma modalidade de adimplemento de obrigação aceita somente em condições excepcionais nesse ramo da economia.

Em razão disso, caso admitida uma licitação destinada à contratação de empresa para a execução de obra pública na qual haja previsão de que a Administração cumprirá sua obrigação com a entrega de bens de sua propriedade, certamente haverá a fixação de cláusula excessivamente restritiva, e isso pela simples razão de que somente participarão da licitação as empresas que tenham interesse nos bens que foram desafetados pelo Estado. Dessa forma, a cláusula, por afastar-se da prática corrente do mercado e por ter efetivo potencial restritivo, deve de pronto ser rejeitada.

A admissibilidade da dação em pagamento como forma de adimplemento das obrigações da Administração contratante abriria uma porta perigosa para práticas discriminatórias, francamente inadmissíveis na atividade administrativa. Não bastasse isso, a fórmula proposta na Consulta é destituída de propósito, já que, se o Estado não dispõe de recursos para a realização de obras e necessita da alienação de bens de sua propriedade para angariar fundos, que o faça mediante o pagamento em dinheiro. Com os recursos em caixa, então, será possível realizar as obras pretendidas.

Sendo assim, não há justificativa razoável para o pagamento por obra realizada com a entrega de bens de propriedade pública, chame-se essa operação de dação em pagamento ou simplesmente de adimplemento contratual por parte da contratada em razão da aquisição de bem público. O certo é que a operação não suportaria uma aferição frente aos princípios da isonomia e da legalidade, sendo, ademais, de eficiência duvidosa.

Ademais, em razão do princípio da legalidade, o administrador público não pode criar formas de disposição dos bens públicos que não estejam previstas em Lei, o que representa absoluto impedimento à entrega de bem público a particular mediante a realização de obra pelo último. Em outras palavras, é inadmissível que se faça uma combinação entre a alienação de bens públicos e a licitação para a contratação de empresa para a realização de obra pública, ante a ausência de suporte normativo para tanto.

Registre-se, também, que não se mostraria legítimo pagamento com a entrega de bens imóveis, e isso porque em diversos dispositivos da Lei de Licitações há a referência, implícita ou textual, de que o pagamento ao licitante ocorrerá em moeda corrente nacional. É o que ocorre, por exemplo, quando a Lei exige "previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrente de obras e serviços"(art.7º, §2º, III) e indicação de "recurso próprio para a despesa"(art.38, caput).

Por outro lado, se vislumbrada a questão sob a ótica da alienação de bem público, e não da contratação de execução de obra, a resposta somente poderá ser negativa, pela razão de que a exigência de pagamento com obra afasta grande parte dos possíveis interessados na aquisição do bem. Em outras palavras, a Administração estaria "reservando" o bem para as empresas do setor da construção civil, únicas aptas a garantir o pagamento, o que seria uma cláusula restritiva claramente arbitrária e contrária ao princípio da impessoalidade.

Não bastasse isso, há, da mesma maneira, a importante referência feita pela Consultoria Geral sobre os perigos decorrentes de uma negociação dessa espécie e eventuais agressões ao princípio da moralidade. São evidentes as dificuldades para definir-se a contraprestação justa na hipótese apresentada pelo Consulente. Some-se a isso o fato de que a Lei de Licitações, ao prever no seu art. 18 que a fase de habilitação limitar-se-á a 5% do valor da avaliação, está pressupondo que o pagamento ocorrerá em dinheiro, como bem salientado pela COG.

Esclareço, ainda, que sendo negativa a resposta ao primeiro questionamento, restam prejudicados os itens 2 e 3 da Consulta.

Passo ao quarto item da Consulta.

Irretocável a conclusão do Parecer da Consultoria Geral, apresentada nos seguintes termos:

Diante da clareza dos argumentos e o abalizado aporte doutrinário do Parecer de fls.4-20, que corrobora de forma sólida as respostas apresentadas à indagação referente à desafetação de bem público, entendo que a matéria dispensa maiores lucubrações.

Ante o exposto, proponho ao Plenário que adote o seguinte voto:

6.1. Conhecer da Consulta formulada pelo Sr. Secretário de Estado da Coordenação e Articulação, para respondê-las nos seguintes termos:

6.1.1. o edital de concorrência pública para alienação de imóvel não pode estabelecer que o pagamento pelo bem, total ou parcial, ocorra com a realização de obra pelo contratado, por ausência de previsão desse procedimento na Lei nº 8.666/93 e por caracterizar cláusula que restringe de forma indevida a competição, em afronta ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, e art. 3º, §1º, inciso I, da Lei Federal nº 8.666/93;

6.1.2. Quando o bem público for divisível, poderá a Administração Pública realizar a desafetação parcial, observando-se que a transformação do bem, de uso comum do povo ou de uso especial para bem dominical deverá estar revestida de todos os requisitos legais;

6.2. Considerar prejudicados os questionamentos 02 e 03 da Consulta, em razão da resposta apresentada ao item 1;

6.3. Dar ciência da decisão ao consulente, acompanhada do relatório e voto do Relator, bem como do parecer nº COG 192/07(fls.04-20).

6.4. Determinar o arquivamento dos autos.

Gabinete do Auditor, em 02 de agosto de 2007.

Auditor GERSON DOS SANTOS SICCA

Relator


1 JUSTEN Fº, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 8ª Ed. São Paulo; Dialética,2002.p.172.