PARECER
nº: |
MPTC/44054/2016 |
PROCESSO
nº: |
REC 16/00146381 |
ORIGEM: |
Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte -
FUNDESPORTE |
INTERESSADO: |
Gilmar Knaesel |
ASSUNTO: |
Recurso de Reconsideração da decisão
exarada do processo - PCR-08/00624661. |
Trata-se
o presente processo de Recurso de Reconsideração (fls. 3-44) interposto pelo
Sr. Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado de
Turismo, Cultura e Esporte, em
face da Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gavi nos autos
do processo PCR n. 08/00624661 (fls. 453-482), Decisão a qual julgou irregulares as contas
referentes aos recursos repassados pelo Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte
(FUNDESPORTE) à Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, por meio
da Nota de Empenho n. 140/2007, no valor de R$ 190.000,00, para execução do
projeto “Libertadores da América”, imputando débito e cominando multas ao
recorrente, nos seguintes termos:
Ante o exposto, no exercício das atribuições de
judicatura previstas no §4º do art. 73 da CF, no §5º do art. 61 da CE e no art.
98 da LC n. 202/2000, decido:
1. Julgar
irregulares com imputação de débito, na forma do art. 18, III, “b” e “c”, c/c o art. 21, caput da Lei
Complementar Estadual nº 202/00, as contas de recursos repassados para a
Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, referente à Nota de
Empenho nº 140, de 26/04/2007, no valor de R$ 190.000,00 (cento e noventa mil
reais) relativos ao Projeto “Libertadores da América” ocorrido na Colômbia
entre os dias 26 e 28 de abril de 2007, de
acordo com os relatórios emitidos nos autos.
2. Condenar, solidariamente, os
responsáveis, Sr. Sérgio Luis da Silva, a pessoa jurídica Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do
Sul e o Sr. Gilmar Knaesel, ao
recolhimento da quantia de 190.000,00
(cento e noventa mil reais), considerando o valor utilizado com CPMF e tarifas
bancárias (R$ 733,72, fl. 70), referente à nota de empenho 140/2007,
fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias para comprovar, perante este Tribunal,
o recolhimento do valor do débito ao Tesouro do Estado, atualizado
monetariamente e acrescido dos juros legais (arts. 21 e 44 da Lei Complementar
n.º 202/00), calculado a partir de 07/05/2007
(data do repasse, fl. 70/71), sem o que fica, desde logo, autorizado o
encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de
Contas para que adote providências à efetivação da execução da decisão
definitiva (art. 43, II, da Lei Complementar nº 202/00), em face da não
comprovação da boa e regular aplicação dos recursos, contrariando o disposto no
art. 140, §1º, da Lei Complementar Estadual n.º 284/05, nos seguintes termos:
2.1. De responsabilidade do Sr. Gilmar Knaesel:
2.1.1. Aprovação do projeto e concessão de recursos
públicos sem a observância dos preceitos legais, o que constituiu causa
necessária sem a qual não haveria o dano posterior, conforme demonstrado no
item II.2.3 desta proposta de voto. [...]
3. Aplicar
ao Sr Gilmar Knaesel,
ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, multa prevista no art.
70, II, da Lei Complementar Estadual n. 202/00, em razão das irregularidades abaixo identificadas, fixando-lhe o
prazo de 30 (trinta) dias para comprovar perante este Tribunal o recolhimento
do valor ao Tesouro do Estado, sem o que fica, desde logo, autorizado o
encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de
Contas para que adote providências à efetivação da execução da decisão
definitiva (art. 43, II e 71 da Lei Complementar nº 202/00), pelos seguintes
fundamentos:
3.1.
R$ 2.000,00 (dois mil reais), em razão de irregularidade na participação dos órgãos deliberativos colegiados no
procedimento para análise de regularidade e aprovação do projeto beneficiado,
em desobediência aos preceitos legais pertintes, constatando-se: a) ausência
do parecer técnico da Diretoria do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do
Desporto do Estado de Santa Catarina – PDIL, contrariando o disposto no art. 6º
da Lei Estadual n. 13.792, de 18 de junho de 2006 (subitem 2.1.1.2 do Relatório DCE n. 201/2012) e b) ausência de parecer do Conselho
Estadual de Desportos, em dissonância com o art. 11, II e art. 20, ambos do
Decreto nº. 3.115/05 c/c o art. 37, caput, da Constituição Federal e art. 16,
da Constituição do Estado de Santa Catarina (subitem 2.1.1.3 do Relatório DCE
n. 201/2012).
3.1.1. R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais), em razão da ausência do Contrato/Termo de Apoio
Financeiro na prestação de contas, em desacordo com o disposto no art. 60,
parágrafo único e art. 116, ambos da Lei Federal nº 8.666/93, e art. 16, § 3º,
do Decreto Estadual nº. 3.115/05 vigente à época dos fatos (subitem 2.1.1.4 do
Relatório DCE n. 201/2012).
4. Declarar a Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá
do Sul e o Sr. Sérgio Luis da Silva impedidos de receber novos recursos do
Erário, consoante dispõe o art. 13 da Lei Estadual n. 13.336/2005 c/c art. 61
do Decreto Estadual n. 1.309/2012 e o art. 16 da Lei Estadual n. 16.292/2013.
5. Encaminhar,
com fundamento no art. 59, XI, da Constituição Estadual, nos arts. 1º, inc.
XIV, e 18, §3º, da Lei Complementar n. 202/2000, cópia da presente decisão e do
Relatório DCE n. 368/2013 ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina,
dando-lhe conhecimento acerca das irregularidades detectadas.
6. Dar
ciência da
decisão aos responsáveis e à Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte
– SOL.
A Diretoria de Recursos e Reexames emitiu o Parecer n. DRR-186/2016
(fls. 45-63), opinando pelo conhecimento do presente Recurso de Reconsideração
e, no mérito, pelo seu
desprovimento, mantendo na íntegra os termos da Deliberação recorrida.
O Recurso de Reconsideração,
com amparo no art. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, é o adequado em
face de decisão proferida em processo de prestação de contas, sendo a parte
legítima para a sua interposição, uma vez que figurou como responsável pelos
atos de gestão irregulares descritos na Deliberação recorrida.
A Decisão Monocrática
proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gavi foi ratificada por meio da Portaria n.
TC-0240/2016, de 18 de abril de 2016, a qual dispôs que o prazo para
interposição de recursos aos processos relacionados no inciso VII do seu art.
1º – dentre eles o presente – passaria a fluir a partir da data de sua
publicação, considerando a medida liminar concedida pelo Supremo Tribunal
Federal para suspensão dos arts. 1º ao 9º e 11 ao 20 da Lei Complementar
Estadual n. 666/2015, que previa, dentre outras disposições, a sujeição das
decisões dos auditores ao reexame de ofício pela Câmara competente ou pelo
Plenário nos casos de imputação de débito superior ao valor de alçada para
Tomada de Contas Especial ou de divergência das conclusões da instrução técnica
ou do Ministério Público de Contas (art. 11).
Verifica-se que a Portaria n.
TC-0240/2016 foi publicada na data de 19/04/2016 e a peça recursal teve o protocolo
procedido nessa Corte de Contas em 05/04/2016, o que caracteriza a
tempestividade do recurso em comento[1].
Ainda, o recurso obedece ao requisito da singularidade, porquanto foi
interposto uma única vez.
Logo, encontram-se presentes
todos os requisitos de admissibilidade do presente recurso, de maneira que se
passa, na sequência, à análise dos itens impugnados da decisão recorrida e das
alegações do recorrente.
1.
Prescrição
O recorrente, em sede de
preliminares, iniciou sua tese de arguição prescricional trazendo uma discussão
(fl. 5) sobre os princípios administrativos e sua incidência na Administração
Pública, destacando o princípio da segurança jurídica. Em seguida (fl. 6),
passou a discorrer acerca da prescrição administrativa, transcrevendo trechos doutrinários
(fls. 6-8) sobre o tema, bem como apontando o tratamento legal da matéria pelos
Tribunais de Contas (fls. 8-12).
Argumentou (fl. 13) que
haveria três possibilidades de contagem do início do prazo prescricional (da
data de citação do responsável; da data de exoneração do cargo de gestor
público; e da data do repasse do dinheiro), asserindo que entre o repasse dos
recursos e sua citação teriam decorrido nove anos, prazo no qual teria se dado
a prescrição quinquenal. Acrescentou que fora exonerado do cargo de Secretário
em 30/03/2010, seis anos antes da decisão da qual ora recorre.
Por fim, colacionou (fls.
13-14) excerto jurisprudencial supostamente hábil a sustentar seus argumentos.
Não obstante os argumentos
referidos, há que se atentar para oposição elaborada pela Diretoria de Recursos
e Reexames no Parecer n. DRR-186/2016 (fls. 48v):
Contrariamente ao asseverado
pelo Recorrente, quanto ao prazo prescricional de 05 (cinco) anos, impende
ressaltar que esta Corte de Contas possui entendimento pacífico de que o lapso
prescricional é de 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor,
em conformidade com o estabelecido na Lei nº 10.406/02, desde que não implique
em imputação de débito.
Desse
modo, no que concerne à hipótese dos autos em que foram aplicadas multas ao
Recorrente, o entendimento deste Tribunal acompanha o posicionamento adotado
pelo Tribunal de Contas da União, no sentido de que o prazo de prescrição da
pretensão punitiva a ser adotado pelas Cortes de Contas é aquele previsto no
Código Civil. [...]
Assim, o lapso prescricional,
diante do atual Código Civil, passou de 20 (vinte) para (10) dez anos, conforme
estabelece o art. 205 da Lei nº 10.406, de 10/01/2002[2].
Ressalvando-se, claro, os casos em que os prazos prescricionais estavam em
andamento, com a vigência do novo Código Civil, no qual se utiliza
especificamente a regra de transição, prevista no art. 2.208 do referido
Código.
Com efeito, diz o citado
dispositivo:
Art. 2.028. Serão os da
lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua
entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido
na lei revogada.
No presente caso, prevalece
para fins de verificação da prescrição, a regra geral do artigo 205 do Código
Civil vigente, segundo a qual “a prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a
lei não lhe haja fixado prazo menor”.
Desse
modo, a prescrição do Código Civil a ser aplicada nos autos deve ser a decenal,
entretanto, considerando que a prática dos atos apontados como irregulares
ocorreu em 2007 e a data da citação do responsável foi realizada em 06/05/2013
(fl. 328), não há que se falar em configuração da prescrição das multas, pois
sequer transcorreu o prazo de 10 (dez) anos.
Além disso, com o advento da Lei Complementar Estadual n. 588/2013, diploma o qual introduziu o
art. 24-A à Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica desse Tribunal
de Contas), disciplinou-se os prazos de prescrição nessa Corte de Contas,
estabelecendo, em regra, o prazo de cinco anos para análise e julgamento de todos os processos
administrativos relativos a administradores e demais responsáveis. Veja-se:
Art. 24-A É
de 5 (cinco) anos o prazo para análise e julgamento de todos os processos
administrativos relativos a administradores e demais responsáveis a que se
refere o art. 1º desta Lei Complementar e a publicação de decisão
definitiva por parte do Tribunal, observado o disposto no § 2º deste
artigo.
§ 1º
Findo o prazo previsto no caput deste artigo, o processo será considerado
extinto, sem julgamento do mérito, com a baixa automática da responsabilidade
do administrador ou responsável, encaminhando-se os autos ao Corregedor-Geral
do Tribunal de Contas, para apurar eventual responsabilidade.
§
2º O prazo previsto no caput deste artigo será contado a partir da
data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou
da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se
preferencial a data mais recente. (grifei)
Tem-se,
dessa forma, que o art. 24-A, § 2º, da referida Lei Complementar Estadual n.
588/2013 estipula como marco inicial de
prescrição a data de citação do
administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou a data de
exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data
mais recente.
No caso, extrai-se que o responsável foi exonerado em 30/03/2010 (fl. 13) e citado em 06/05/2013 (fl. 328 do processo originário); logo, tendo o marco prescricional iniciado na data de sua citação, o prazo para análise e julgamento do processo finalizaria somente em 06/05/2018.
Acrescente-se
que há uma regra de transição para os processos que já estavam em curso nesse
Tribunal de Contas quando da publicação da Lei Complementar Estadual n.
588/2013, conforme seu art. 2º, inciso II, merecendo destaque a interpretação
defendida pelo voto divergente, acolhido pelo Pleno dessa Corte de Contas,
proferido pelo Conselheiro substituto Cleber Muniz Gavi, no processo REC n.
14/00579357, que, pela relevância dos argumentos, colaciono aos autos:
O
art. 2º da LC 588/2013 trata das regras de transição, aplicáveis aos processos
que, face à novidade da norma, poderiam ser arquivados sem que o Tribunal de
Contas tivesse tempo oportuno para adaptação à nova disciplina de temporalidade
processual. Desta forma, se a regra geral do novo art. 24-A não vier a
prejudicar a atuação desta Corte Administrativa em curto prazo (como é o caso),
não se justifica o uso da regra transitória.
Para
maior aprofundamento da questão, atente-se para o fato de que o art. 2°
expressamente se reporta ao disposto no art. 24-A e
menciona que sua aplicabilidade dar-se-á no que couber. (“Art.
2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202,
de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de
Contas, da seguinte forma:”). Cabe também enfatizar que os marcos temporais
são totalmente distintos num e noutro artigo: um faz uso da data da citação ou
término do exercício do cargo ou mandato (regra geral); outro, menciona a data
da instauração do processo (regra transitória).
Então,
vale repisar, a disciplina do art. 2° só será útil e aplicável quando o
imediato alcance do art. 24-A inviabilizar o julgamento de processos mais
antigos.
Para
melhor esclarecimento, tratemos dos seguintes exemplos:
1) Suponha-se que na data de publicação da lei (15.01.2013) fosse
identificado um processo no qual, há 05 anos ou mais, foi efetuada a citação da
parte responsável e findou o exercício do seu cargo ou mandato. Neste caso, a
disciplina do recém-criado art. 24-A impediria, desde logo, a emissão de
julgamento. O art. 2° surge, então, como norma de transição para assegurar que
por mais 02 anos (atenuando os efeitos inovadores da lei) possa o Tribunal de
Contas prosseguir na instrução e julgamento do feito, conforme o seguinte texto:
Art.
2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202,
de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no
Tribunal de Contas, da seguinte forma:
I - os processos
instaurados há 5 (cinco) ou mais anos terão, a partir da publicação desta Lei
Complementar, o prazo de 2 (dois) anos para serem analisados e julgados;
2) Suponha-se, agora, que tenha sido identificado um processo que, embora
instaurado há mais de 05 anos, não tenha se amoldado completamente ao marco
temporal do art. 1°. Cogite-se, por exemplo, que a citação neste processo tenha
sido efetuada em ocasião mais recente, menos de 02 anos; ou que o exercício do
cargo ou do mandato tenha se encerrado neste mesmo prazo. Para tal hipótese,
não se faz necessário o uso da norma de transição, já que a regra geral ainda
permitirá a atuação do Tribunal de Contas, conforme a redação do §2° do art.
24-A: “O prazo previsto no ‘caput’ deste artigo será contado a partir da
data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou
da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se
preferencial a data mais recente.” (ou seja, não importa se o processo em
si tem mais de 05 anos).
Todos
os incisos do art. 2° da LC n. 588/2013 seguem a mesma lógica, qual seja: só possuem
aplicabilidade nos casos em que a pronta aplicação da regra geral do art. 24-A
obstar a análise de mérito dos processos em trâmite no Tribunal de Contas, de
acordo com os prazos ali mencionados. Caso contrário, a disciplina ad
futurum deste último basta por si só (art. 24-A).
Cabe
explicitar que esta é a única interpretação lógica possível, considerando-se a
redação que foi dada ao art. 2° e a regra hermenêutica de que a lei não contém
palavras inúteis. Tamanha engenhosidade seria dispensada caso o legislador
apenas tivesse preceituado que “os processos em curso no Tribunal de
Contas observaram a seguinte disciplina: (...)”. Entretanto, por meio
de redação de alcance e aplicabilidade bem mais complexa, prescreveu que “o
disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de
2000 aplica-se, no que couber, aos processos em
curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma: (...)”.
Tal
linha interpretativa também evitará incoerências futuras, traduzidas no fato de
que os jurisdicionados com processos mais recentes não usufruiriam dos mesmos
benefícios concedidos àqueles cujos processos foram autuados em data anterior a
publicação da LC n. 588/2013.
Para
melhor didática, vamos recorrer a outro exemplo: a análise mais simplista do
art. 2º da LC n. 588/2013 (com a qual não concordamos) nos induziria a pensar
que todos os processos anteriores a 15.01.2013 teriam 05 anos, no máximo, para
serem julgados, independentemente da disciplina do art. 24-A. Mas então se
questiona: qual será o tratamento dado aos processos instaurados após a
publicação da lei?
Se o marco temporal
do art. 24-A da Lei Orgânica (regra geral para contagem dos cinco anos) é
constituído apenas pela data da citação ou do término do exercício do cargo ou
função, é bem possível que um processo futuro tenha mais de 15 anos e ainda
assim esteja em condições de ser julgado. Basta, por exemplo, que a citação
tenha ocorridos nos últimos dois anos. Neste caso, não haveria uma incoerência
normativa? Os jurisdicionados submetidos à regra de transição não teriam obtido
um tratamento privilegiado, considerando-se a regra geral que passa a vigorar?
Não se estaria adotando referências totalmente distintas para determinar o
arquivamento dos processos, ou seja, para aqueles autuados até 15.01.2013 a
referência seria a data da autuação (mais favorável), enquanto para os
posteriores, a data da citação ou término do exercício do cargo ou mandato?
Por
certo, a linha interpretativa que preserva a coerência, evita a distinção entre
situações jurídicas idênticas e reverencia o caráter perene das disposições
normativas, constitui o melhor norte a ser seguido. Não é demais lembrar que
uma norma de transição se presta a flexibilizar eventuais rupturas decorrentes
de uma nova regra jurídica. Mas se a interpretação do seu alcance conduz a
criação de regra totalmente distinta da norma principal e com ela não
compatível, impõe-se a revisão do processo interpretativo, com o escopo de
conciliar a norma de transição com a nova disciplina geral que fundamentou sua
existência.
Conforme
defendido pelo Conselheiro, a regra de transição prevista no art. 2º só deverá
ser utilizada subsidiariamente nos casos em que a aplicação do art. 24-A
inviabilizar o julgamento de processos por essa Corte de Contas.
De
fato, a interpretação mais condizente com os termos contidos em malfadada lei
(“Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei
Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no
que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas [...]” –
grifei) aponta nesse sentido, pois a disposição descrita em tal dispositivo
apenas referencia a sua aplicação subsidiária ao art. 24-A, justamente para
evitar que os processos instaurados anteriormente a sua publicação e cuja
citação tivesse ocorrido há mais de 5 anos ou em período próximo a este viessem
a ter sua prescrição operada imediatamente com o advento da lei, dando-se,
assim, um prazo suficiente para o julgamento da matéria no âmbito desse
Tribunal de Contas.
Dessa
maneira, se um processo foi instaurado em 2005 e sua citação ocorreu em 2008,
seria plenamente plausível a aplicação da regra de transição prevista no art.
2º, inciso I, de referida lei, a fim de evitar a prescrição no próprio
exercício de 2013.
Entretanto,
para os casos de processos que foram instaurados nos meses que antecederam a
publicação da lei e os que foram instaurados logo após, com citações efetuadas
na mesma data, tomando-se, como exemplo, 01/03/2015, haveria, com a aplicação
da regra transitória, tratamento desigual – apesar de os processos terem sido
instaurados quase na mesma época –, visto que o prazo de prescrição dos
primeiros finalizaria em 2018, enquanto o dos segundos em 2020. Como bem
questionado pelo Conselheiro, a própria parametrização da “instauração” para
uns e “citação” para outros configuraria um privilégio indevido.
Não
se pode, contudo, presumir que a intenção do legislador tenha sido criar
situações contrárias ao princípio da isonomia, mas sim interpretar a norma a
fim de garantir o efetivo julgamento dos processos perante essa Corte de
Contas, não se olvidando do fato de que o texto legal em comento foi
extremamente infeliz ao adotar tais parâmetros.
Desse
modo, compactuo com o entendimento de que deva ser aplicada a regra geral
prevista no art. 24-A a todos os processos em trâmite nessa Corte de Contas –
independente da data de sua instauração – sempre que a regra transitória do
art. 2º da Lei Complementar Estadual n. 588/2013 não conceda um maior prazo
para análise e julgamento dos processos.
Destaca-se também que a Lei
Complementar Estadual n. 588/2013 é objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 5.259, proposta pelo Procurador-Geral da República
perante o Supremo Tribunal Federal, em razão de ofensa ao art. 37, § 5º da
CRFB/88 que determina que as ações de ressarcimento de danos causados ao erário
são imprescritíveis.
Em razão do referido
dispositivo constitucional, os processos em trâmite nessa Corte de Contas que
visem à reposição de danos ao erário não podem ser atingidos por quaisquer
prazos prescricionais, bem como, portanto, as multas aplicadas em decorrência
desse dano.
A propósito, trago
a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que trata de
ressarcimento ao erário determinado por decisão do Tribunal de Contas da União:
Tribunal
de Contas da União. Bolsista do CNPq. Descumprimento da obrigação de retornar
ao país após término da concessão de bolsa para estudo no exterior.
Ressarcimento ao erário. Inocorrência de prescrição. Denegação da segurança. O
beneficiário de bolsa de estudos no exterior patrocinada pelo poder público,
não pode alegar desconhecimento de obrigação constante no contrato por ele
subscrito e nas normas do órgão provedor. Precedente: MS 24.519, Rel. Min. Eros
Grau. Incidência, na espécie, do disposto no art. 37, § 5º, da CF, no tocante à
alegada prescrição" (MS 26.210, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4/9/2008, Plenário, DJE de
10/10/2008).
No voto condutor, o Relator traz o devido esclarecimento
acerca da exceção prevista no final do art. 37, § 5º da CRFB/88 ao transcrever
a doutrina de José Afonso da Silva, na qual o autor assinala que prescrevem apenas a apuração e a
punição do ilícito, não o direito da Administração de reaver os valores
atinentes ao prejuízo causado ao erário. Veja-se um trecho do referido
voto:
Considerando-se
ser a Tomada de Contas Especial um processo administrativo que visa a
identificar responsáveis por danos causados ao erário, e determinar o
ressarcimento do prejuízo apurado, entendo aplicável ao caso sob exame a parte
final do referido dispositivo constitucional.
Nesse
sentido é a lição do Professor José Afonso da Silva:
“A
prescritibilidade, como forma de perda da exigibilidade de direito, pela
inércia de seu titular, é um princípio geral de direito. Não será, pois, de
estranhar que ocorram prescrições administrativas sob vários aspectos, quer
quanto às pretensões de interessados em face da Administração, quer quanto às
desta em face de administrados. Assim é especialmente em relação aos ilícitos
administrativos. Se a Administração não toma providência à sua apuração e à
responsabilização do agente, a sua inércia gera a perda do seu ius persequendi.
É o princípio que consta do art. 37, § 5º, que dispõe: ‘A lei estebelecerá os
prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou
não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de
ressarcimento’. Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo
prescreverá. Apenas a
apuração e punição do ilícito, não, porém, o direito da Administração ao
ressarcimento, à indenização, do prejuízo causado ao erário. É uma
ressalva constitucional e, pois, inafastável, mas por certo, destoante dos
princípios jurídicos, que não socorrem quem fica inerte (dormientibus non
sucurrit ius)”. (grifei)
Ainda com relação à
imprescritibilidade, o Tribunal de Contas da União, no incidente de
uniformização de jurisprudência proveniente da Tomada de Contas n.
005.378/2000-2, julgado em 26/11/2008, pacificou o entendimento daquela Corte
no seguinte sentido:
A
temática aqui analisada trata exclusivamente de interpretação de dispositivo
constitucional. Considerando que o STF, intérprete maior e guarda da
Constituição, já se manifestou no sentido de que a parte final do § 5o do art.
37 da Carta Política determina a imprescritibilidade das ações de ressarcimento
ao erário, não me parece razoável adotar posição diversa na esfera
administrativa. [...]
ACORDAM
os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário,
ante as razões expostas pelo Relator, em:
9.1.
deixar assente no âmbito desta Corte
que o art. 37 da Constituição Federal conduz ao entendimento de que as ações de
ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao
erário são imprescritíveis [...]. (grifei)
Com tudo isso, percebe-se que
a pretensão do recorrente no sentido de que se acolha a tese prescricional não
encontra guarida em qualquer diploma legal, quer se adote como parâmetro a
intepretação analógica com o Código Civil, quer se examine o caso à luz da Lei
Complementar Estadual n. 588/2013, mesmo em suas diferentes interpretações.
Portanto, entende-se
incabível a alegação de prescrição apresentada pelo recorrente.
2.
Mérito
2.1. Imputação
solidária de débito no valor de R$ 190.000,00, em face da não comprovação da
boa e regular aplicação dos recursos
Na sequência, o recorrente
pugnou (fl. 17) pelo afastamento da responsabilidade solidária a ele atribuída,
albergando-se no Voto Divergente GAC/LEC n. 961/2015 (fls. 440-452v), proferido
pelo Conselheiro Luiz Eduardo Cherem nos autos do processo PCR n. 08/00624661.
Transcreveu também (fls.
17-24) o Voto Divergente proferido pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall nos
autos do processo TCE n. 11/00345709.
Como destacado no início
deste parecer, a Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gabi
apontou irregularidades nas contas referentes a recursos repassados à
Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, no importe de R$ 190.000,00,
para execução do projeto “Libertadores da América”, sendo o valor proveniente
do Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE), o qual, ao lado do
Fundo Estadual de Incentivo ao Turismo (FUNTURISMO) e do Fundo Estadual de
Incentivo à Cultura (FUNCULTURAL), compõe o chamado Sistema Estadual de
Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte (SEITEC), na esfera da Secretaria
de Estado de Turismo, Cultura e Esporte[3].
Nota-se, assim, que, diante
da origem dos recursos repassados (FUNDESPORTE), o Secretário de Estado de
Turismo, Cultura e Esporte à época dos fatos, o Sr. Gilmar Knaesel, é quem
detém a responsabilidade pela observância da legalidade da concessão de tais
valores – de maneira antecipada – do erário à iniciativa privada.
Tal responsabilidade é
bastante clara, diante da omissão do gestor na aprovação do pedido de repasse à
Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul ao arrepio dos requisitos
e procedimentos determinados na legislação aplicável.
Com efeito, de acordo com o
que esta Procuradora já defendeu em inúmeras outras oportunidades, a exemplo do
parecer no processo TCE n. 11/00363600, a Lei
Complementar Estadual n. 381/2007, ao dispor sobre o modelo de gestão e
a estrutura organizacional da Administração Pública Estadual, destacou em seu
art. 7º as atribuições dos cargos de Secretário de Estado, ao passo que seus
arts. 24 e 25 definem a responsabilidade do gestor pela supervisão na área de
sua respectiva competência, o que é bastante elementar, aliás:
Art.
24. Os Secretários de Estado são responsáveis perante o Governador do Estado,
pela supervisão dos serviços dos órgãos da Administração Direta e das entidades
da Administração Indireta enquadrados em sua área de competência.
Parágrafo
único. A supervisão a cargo dos Secretários de Estado é exercida por meio de
orientação, coordenação, controle e avaliação das atividades dos órgãos
subordinados ou vinculados e das entidades vinculadas ou supervisionadas.
Art.
25. A supervisão a cargo dos Secretários de Estado, com o apoio dos órgãos que
compõem as estruturas de suas Secretarias, tem por objetivos, na área de sua
respectiva competência:
I
- assegurar a observância das normas constitucionais e infraconstitucionais;
II
- promover a execução dos programas, projetos e ações de Governo de forma
descentralizada, desconcentrada e intersetorializada;
III
- coordenar as atividades das entidades vinculadas ou supervisionadas e
harmonizar a sua atuação com a dos demais órgãos e entidades;
IV
- avaliar o desempenho das entidades vinculadas ou supervisionadas;
V
- fiscalizar a aplicação e a utilização de recursos orçamentários e
financeiros, valores e bens públicos;
VI
- acompanhar os custos globais dos programas, projetos e ações setoriais de
Governo;
VII
- encaminhar aos setores próprios da Secretaria de Estado da Fazenda os
elementos necessários à prestação de contas do exercício financeiro; e
VIII
- enviar ao Tribunal de Contas do Estado, sem prejuízo da fiscalização deste,
informes relativos à administração financeira, patrimonial e de recursos
humanos das entidades vinculadas ou supervisionadas.
Assim, o Secretário de Estado possui o dever legal de supervisionar e
fiscalizar os serviços executados no órgão de sua competência, devendo para
tanto ser responsabilizado no caso de irregularidades, como as
observadas no presente caso.
Deve-se recordar, ainda, que
cabe também ao gestor a responsabilização em face das chamadas culpa in eligendo e culpa in vigilando, significando esta a ausência de fiscalização das
atividades de seus subordinados, ou dos bens e valores sujeitos a esses
agentes, ao passo que aquela representa a responsabilidade atribuída a quem deu
causa à má escolha de seu representante ou preposto.
A responsabilidade do gestor,
assim, decorre de seu comportamento omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o
que se tornou, no caso em comento, uma das causas determinantes das
irregularidades assinaladas.
Acrescenta-se que toda a já
referida legislação que define a competência desse Tribunal de Contas pode ser
resumida, no presente caso, pelo teor do art. 1º, inciso, III, da Lei
Complementar Estadual n. 202/2000, que assim dispõe:
Art.
1º Ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, órgão de controle
externo, compete, nos termos da Constituição do Estado e na forma estabelecida
nesta Lei: [...]
III
- julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores da administração direta e indireta, incluídas as fundações e
sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público do Estado e do Município,
e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade
de que resulte prejuízo ao erário.
Na condição de Secretário de
Estado, o então gestor enquadrava-se exatamente no conceito de responsável “por
dinheiros, bens e valores da administração direta e indireta”, consoante
inclusive a seguinte norma da Resolução n. TC-06/2001 (Regimento Interno dessa
Corte de Contas):
Art.
133. Em todas as etapas do processo de julgamento de contas, de apreciação de
atos sujeitos a registro e de fiscalização de atos e contratos será assegurada
aos responsáveis ou interessados ampla defesa.
§
1º Para efeito do disposto no caput, considera-se:
a)
responsável aquele que figure no
processo em razão da utilização, arrecadação, guarda, gerenciamento ou
administração de dinheiro, bens, e valores públicos, ou pelos quais o Estado ou
o Município respondam, ou que, em nome destes assuma obrigações de natureza
pecuniária, ou por ter dado causa a perda, extravio, ou outra irregularidade de
que resulte prejuízo ao erário. (grifei)
Ademais, salienta-se que a
execução de tarefas ordinárias da entidade configura delegação interna de
competência e reflete, apenas, a desconcentração da atividade administrativa no
âmbito da Secretaria de Estado, pois não seria viável, logicamente, que o
detentor do cargo máximo de chefia executasse diretamente todas as atividades
cotidianas. Nesse sentido, ainda que haja delegação interna para a execução de
determinados serviços, o titular da Unidade Gestora não se exime da condição de
responsável pelos atos praticados por seus subordinados, em face das
atribuições de supervisão e controle que lhe são afetas.
Com efeito, para o Plenário do Tribunal de Contas da União,
a discussão já está pacificada há bastante tempo, como evidencia o seguinte
trecho da decisão do processo TC n. 009.202/2011-0, de 15/10/2014, julgado o qual, aliás, decidiu pela
responsabilização solidária, com imputação de débito, do gestor, de particular
(sócia da empresa) e da própria pessoa jurídica:
II. Ausência
do nexo causal entre a conduta do Prefeito e os achados de auditoria
140. Em
tópico separado, o advogado alega a ausência de nexo causal entre a conduta do
defendente e os achados de auditoria, não cabendo imputar responsabilidade ao
Prefeito porque esse cumpriu seu dever de fiscalização conforme estipulado no
contrato de repasse, ou seja, o objeto foi devidamente executado; e não cabe ao
dirigente máximo do município rever todos os atos administrativos praticados
por seus subordinados, sob pena de inviabilizar a gestão como um todo. Assevera
que trilhar o caminho em que se responsabiliza o gestor máximo
indiscriminadamente por todas as ações praticadas pelos funcionários
hierarquicamente inferiores, das quais não teve ciência ou não deveria ter,
além de contrariar as modernas tendências de organização gerencial em que se
privilegiam a descentralização de atividades e a segregação de funções, pode
gerar situações desarrazoadas em que o representante maior do órgão seja
convocado a responder por ato mais comezinho praticado por subordinados. Assim,
a responsabilização das autoridades delegantes não comporta soluções
monolíticas ou generalizantes, devendo ser analisado caso a caso.
141. No caso
em tela, alega que seria absurdo instar o Prefeito a realizar trabalhos
burocráticos como conferir numeração de páginas de processos administrativos ou
verificar o modelo dos formulários dos balanços patrimoniais apresentados pelos
pretensos licitantes a fim de verificar a ocorrência de fraude à licitação.
Sintetiza afirmando que o Prefeito gere a municipalidade ou faz licitação.
II.1.
Análise
142. Não
cabe a alegação de ausência de nexo de causalidade entre a conduta do Prefeito
e os achados de auditoria, especificamente aqueles relacionados a procedimentos
licitatórios, tendo em vista a responsabilidade dos membros da comissão de
licitação, pois a responsabilidade do Prefeito está caracterizada pelo fato
daqueles que cometeram as irregularidades detectadas pela auditoria terem sido
por ele designados para cumprir a função de membros de comissão de licitação.
143. Desta forma, além da culpa in eligendo,
pela escolha dos subordinados que cometeram as irregularidades apontadas, o
gestor, na administração dos recursos públicos federais, deveria atentar para
os atos praticados pelos mencionados subordinados, pelo que lhe pesa, ainda, a
culpa in vigilando.
144. Ressalta-se ainda que a delegação de
competência não implica a delegação de responsabilidade, cabendo à autoridade
delegante a fiscalização dos atos de seus subordinados diante da culpa in eligendo,
consoante dispõe o art. 932, inciso III, do Código Civil. Sobre o assunto há
farta jurisprudência no TCU.
145.
Observa-se ainda que a responsabilidade do Prefeito é decorrente da
administração de recursos públicos na forma da lei. Essa responsabilidade não
se confunde com a responsabilidade civil e penal e está adstrita à competência
constitucional do TCU, sem, porém, afastar a possibilidade de ações adicionais
e independentes nas esferas do poder judiciário, em decorrência de
responsabilidade de natureza jurídica diversa.
146. Além
disso, o Sr. Humberto Ivar Araújo Coutinho homologou os certames licitatórios
em questão (Concorrência 7/2006, peça 7, p. 5, e TP 13/2006, peça 11, p. 43),
com isso participando da decisão da comissão licitatória. Pelos motivos
expostos, não se acatam os argumentos apresentados pelo advogado do Prefeito. (grifei)
Resta evidente, assim, a
possibilidade – ou, ainda, no caso, a necessidade – da responsabilização
solidária do então Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte e dos
beneficiários do repasse do recurso público pelas irregularidades encontradas
na presente prestação de contas, tratando-se, enfim, tal imputação de ônus inerente ao exercício do cargo que
ocupava o Sr. Gilmar Knaesel.
Salienta-se, ainda, que se
trata o presente caso, em suma, da administração de verbas públicas, o que por
si só revela sua importância. Quando
se trata de verba pública, não se pode caracterizar uma irregularidade como
mera desatenção à formalidade – no trato do erário o formalismo não deve ser
desvalorizado. O órgão controlador que releva equívocos formais da atuação de
gestores públicos, além de afrontar a equidade e a própria justiça, abre espaço
para a malversação do dinheiro público – exatamente o que uma Corte de Contas
deve coibir.
Mesmo assim, não se
desconhece a existência de entendimentos contrários, como o proferido pelo
Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall ou até mesmo neste Órgão Ministerial, como
o emitido às fls. 414-420 dos autos de origem, os quais, todavia, se acolhidos
na prática, poderiam resultar em esvaziamento da competência constitucional dos
Tribunais de Contas em sua função de defesa do erário. O que se observa em tais
situações é uma tentativa de afastar a responsabilidade do Secretário de Estado
relativizando a imputação por suposta ausência de dolo, culpa ou má-fé,
entendimento com o qual esta Procuradora não pode compactuar, em razão de tudo
o que já fora aqui exposto.
Ademais, o próprio
enquadramento da irregularidade, questionado pelo Conselheiro Luiz Eduardo
Cherem, será vastamente fundamentado ao longo deste parecer, apontando-se os
atos de gestão ilegítimos ou antieconômicos injustificados que ensejaram o dano
ao erário proveniente do repasse de recursos para a execução do projeto em
questão.
Portanto, entendo que os
argumentos apresentados com o intuito de afastar a responsabilidade solidária
atribuída ao Sr. Gilmar Knaesel não devem ser acolhidos.
2.2. Multa no
valor de R$ 2.000,00, em face da ausência do parecer técnico da Diretoria do
Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina
(PDIL), e da ausência de parecer do Conselho Estadual de Desportos
Relativamente à restrição
apontada no item 3.1, alínea “b”, da Decisão Monocrática recorrida – “ausência
do parecer do Conselho Estadual de Desportos” –, o recorrente argumentou (fl.
24) que somente em 25/01/2008, por meio da Lei Estadual n. 14.367/08, teriam
sido definidas a estrutura e forma de atuação dos Conselhos Estaduais do
Turismo, da Cultura e dos Desportos.
Asseriu (fl. 25) que a
decisão do Comitê Gestor seguia as normas vigentes, sendo que na maioria das
vezes era necessário decidir discricionariamente. Nesse sentido, colacionou
trecho doutrinário da lavra de Marçal Justen Filho.
Mencionou também (fls. 25-26)
a composição do Comitê Gestor, sua forma de reuniões e as suas funções antes da
alteração das estruturas e forma de atuação dos Conselhos.
Em que pesem
tais argumentos, as condições estruturais e de pessoal da Secretaria de Estado
de Turismo, Cultura e Esporte não podem ser utilizadas pelo recorrente como
subterfúgio para a prática de atos em desacordo com a legislação, notadamente
pela ausência nos autos de qualquer comprovação nesse sentido e de esforços que
teriam sido envidados pelo responsável para corrigir a situação.
Em seguida, atribuiu (fl. 26)
aos Conselhos Estaduais a responsabilidade pela gestão do SEITEC, apontando a
sua composição e sua sistemática de trabalho.
A tentativa de transferência
de sua responsabilidade a terceiros (fl. 26), todavia, não prospera, haja vista
que o recorrente, na qualidade de Secretário de Estado, é plenamente
responsável pelo dever de fiscalização inerente às suas funções.
Sob esta ótica, da qual se
utiliza o presente Parecer para opinar pelo não acolhimento das razões do recorrente,
examine-se a explanação do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello
sobre a classificação dos agentes públicos[4]:
Agentes
políticos
são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou
seja, ocupantes os que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema
fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior
do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os
Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes
de Executivo, isto é, Ministros e Secretários
das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais
e os Vereadores.
O
vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus
público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes
funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de
cidadãos, membros da civitas e, por
isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade. (grifei)
Ainda neste sentido, o mesmo
autor, ao debater a questão da responsabilidade do Estado e quais os sujeitos
cuja atuação pode comprometer o Estado, ensina[5]:
Quem
são as pessoas suscetíveis de serem consideradas agentes públicos, cujos
comportamentos, portanto, ensejam engajamento da responsabilidade do Estado?
São todas aquelas que – em qualquer nível de escalão – tomam decisões ou
realizam atividades da alçada do Estado, prepostas que estão ao desempenho de
um mister público (jurídico ou material), isto é, havido pelo Estado como
pertinente a si próprio.
Nesta
qualidade ingressam desde as mais altas autoridades até os mais modestos
trabalhadores que atuam pelo aparelho estatal. [...]
Indicadas as
pessoas cuja conduta compromete a responsabilidade do Estado, cumpre verificar quando esta condição subjetiva tem o
relevo necessário para desencadear tal comprometimento. Sendo
certo que a pessoa também atua em situação totalmente alheia à qualidade de
agente, importa fixar o que se reputará necessário para configurar atuação (ou
omissão indevida) imputável à qualidade jurídica de “agente do Estado”.
(grifei)
Conforme a doutrina
colacionada acima, o Secretário se enquadra na qualidade de agente político,
cujos atos e omissões repercutem e refletem diretamente nos destinos da
sociedade. Nesse sentido, tem ele responsabilidade tanto direta quanto
indiretamente sobre os atos de sua Administração.
No que tange à irregularidade
baseada na ausência de pareceres do Plano Estadual da Cultura, Turismo e do
Desporto, o recorrente afirma (fl. 27) que não é possível deduzir, da leitura
literal do art. 6º da Lei Estadual n. 13.792/06, a necessidade de parecer ou
manifestação da diretoria do PDIL para que o Comitê Gestor do FUNCULTURAL
entenda que o projeto seja ou não adequado ao programa.
Atribuiu o fato ao
desconhecimento da instituição do PDIL por parte da equipe de auditoria,
transcrevendo o art. 8º da lei referida (fls. 27-28) e afirmando, em seguida,
que o projeto se enquadra em um dos subprogramas nela relacionados.
Além disso, argumentou (fls.
28-29) que em função da abrangência e generalidade da lei em comento, teria
sido editado o Decreto Estadual n. 2.080/09, a fim de regulamentá-la, trazendo
em seu texto detalhes acerca das atividades que constituem o PDIL, dentre as
quais o projeto analisado se enquadraria.
Ora, note-se
que o responsável confunde a origem dos recursos analisados no processo que
originou o presente recurso, tendo-se em vista tratar-se de concessão de
recursos do FUNDESPORTE e não do FUNCULTURAL. Feita essa ressalva, perceba-se
que a emissão de parecer de enquadramento do projeto ao PDIL é condição sine qua non para sua aprovação, pois a
realização de detalhada análise do mérito dos projetos apresentados é a
garantia de que estão sendo atendidas as condições da correta concessão dos
recursos do FUNDESPORTE. Não há que se falar, portanto, no
enquadramento/aprovação tácito sustentado pelo recorrente.
Assim, em função da ausência
de argumentos fáticos e probatórios de parte do recorrente, entende-se pela
manutenção da penalidade de multa aplicada, conforme disposto na Decisão
Monocrática recorrida.
2.3. Multa no
valor de R$ 1.200,00, em razão da ausência do Contrato/Termo de Apoio
Financeiro na prestação de contas
No que diz respeito ao mérito
da restrição apontada pelo item 3.2 da Decisão Monocrática recorrida, a qual
ensejou a aplicação de penalidade de multa, o recorrente afirmou (fls. 31-32)
que o entendimento dos motivos de tais falhas depende do conhecimento da
história da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte.
Relatou a gênese do órgão,
apontando que fora convidado para ocupar o cargo de Secretário, sem a
possibilidade de admissão de servidores concursados; as dificuldades
enfrentadas, tais como requisição de servidores efetivos de outras repartições
para o exercício das atividades; e a criação de cargos comissionados e
terceirizados.
Salientou que os referidos
trabalhadores contratados não detinham as qualificações necessárias para o
regular funcionamento da Secretaria. Em seguida, referiu-se à criação dos
fundos de desenvolvimento do turismo (FUNDETUR), da cultura (FUNCULTURAL) e dos
esportes (FUNDESPORTE), integrantes do SEITEC, por meio da Lei n. 3.115/05.
Reportou (fls. 32-33) que em
função do incremento de recursos geridos e do grande número de projetos
cadastrados, a estrutura física tornou-se óbice ao desenvolvimento das funções,
relatando a mudança da estrutura física do órgão.
Ao final, alegou (fl. 33) que
somente em 2010 a Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte (SOL)
teria conseguido contratar servidores especializados por meio de concurso
público. Concluiu argumentando que tal relato histórico serviria para “dar uma
ideia das condições estruturais, técnicas e de pessoal que a SOL dispunha,
quando da análise e liberação do projeto em questão”, em função do que não
haveria “as mínimas condições para que fossem seguidos os trâmites
estabelecidos pela legislação pertinente”.
Como se pode observar, o
recorrente se limitou a relatar o histórico do órgão e suas dificuldades
estruturais, não apresentando argumentos específicos quanto à restrição em si.
Logo, em razão da ausência de
argumentos fáticos e probatórios de parte do recorrente, entende-se pela
manutenção da penalidade de multa aplicada, conforme disposto na Decisão
Monocrática recorrida.
2.4. Sanções
impostas pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina
O recorrente levantou, em
item específico, questionamento acerca das sanções impostas pela Corte de
Contas catarinense.
Iniciou (fl. 29) discorrendo
acerca da função orientadora exercida pelos Tribunais de Contas, apontando em
seguida que as sanções pecuniárias retiram seu fundamento de validade
diretamente das Constituições Federal e Estadual, e, reflexamente, dos arts.
67, 68 e 70 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.
Adiante (fl. 30), o
recorrente argumentou que o Tribunal de Contas “mesmo não levando em conta a
discricionariedade do agente público” lançaria mão desse poder (discricionário)
ao fixar os valores de multas aplicadas. Nesse sentido, afirmou não haver um
critério rígido para definição do quantum
a ser pago pelo agente público penalizado.
Colacionou excerto
doutrinário relativo ao poder discricionário e trouxe (fl. 31) tabela na qual
relacionou processos nos quais teria sido apontado como responsável nos mesmos
moldes do processo que originou este expediente recursal que ora se analisa.
Em seguida, buscou eximir-se
da responsabilidade quanto ao pagamento das penalidades de multa arvorando-se
em voto proferido pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior no
processo PCR n. 08/00460294 (fls. 33-38), no qual buscou ressaltar “a
constância das ocorrências fáticas e, consequentemente, das sanções
correspondentes aplicadas” escorando-se no argumento baseado na proporcionalidade
das sanções aplicadas em razão de “fatos idênticos” aos mesmos responsáveis no
curso do mesmo exercício.
Tal tese centrou-se na
necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do
princípio do non bis in idem em uma
relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das
penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal.
O requerente traçou, ainda,
comentários acerca da aplicação de sanções e multas conforme a normatização e a
jurisprudência (fls. 38-40).
Afirmou (fls. 40-41), a
título de considerações finais, que, ao ser informado sobre a ocorrência de
irregularidades nos processos, não faltou com a responsabilidade de tomar as
providências administrativas cabíveis. Atribuiu, assim, a sua inércia à
ausência de comunicação por parte dos setores responsáveis em fazê-la.
Trouxe também a discussão
(fls. 41-43) acerca da natureza das sanções aplicáveis por parte do Tribunal de
Contas de Santa Catarina e questões relativas ao incidente de uniformização de
jurisprudência no âmbito dos tribunais.
Colacionou trechos do
Regimento Interno dessa Corte de Contas que demonstrariam o caráter
discricionário da aplicação de sanção administrativa pelo Tribunal de Contas,
alegando que não poderia ser penalizado em razão da falta de dano ao erário,
dolo, culpa ou má-fé em seus atos.
Pois bem.
Inicialmente, no que diz
respeito ao Relatório e Voto proferidos pelo Conselheiro Adircélio de Moraes
Ferreira Júnior nos autos do processo PCR n. 08/00460294, o relatório técnico
apontou (fls. 57v) que na ocasião do julgamento, tal voto divergente sequer foi
colocado em votação, tendo prevalecido o voto apresentado pelo Conselheiro
Wilson Rogério Wan-Dall. Contudo, tal posicionamento pela adoção da tese da
continuidade das infrações administrativas teria sido posteriormente acatado,
quando da deliberação referente ao processo REC n. 14/00274831 (fl. 58).
Conforme já referido, o
Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior laborou tese fundada na
necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do
princípio do non bis in idem numa
relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das
penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal, notadamente com a adoção
da regra que trata dos crimes continuados para as multas aplicadas ao
requerente, que exerceu a gestão da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e
Esporte de 01/07/2007 a 31/03/2010.
A consequência prática da
adoção dessa tese seria o cancelamento de diversas multas já aplicadas em
diversos processos cujas decisões acolheram a imputação de irregularidades ao
requerente, para que se aplicasse somente uma multa passível de
majoração/agravamento.
Trata-se de medida com a qual
este órgão ministerial discorda. Ora, a tese defendida pelo ilustre Conselheiro
cinge-se a aplicar, indiscriminadamente, institutos do Direito Penal a
circunstâncias fáticas albergadas pela sistemática do Direito Administrativo.
Diversas são as razões que permitem discordar desse posicionamento.
Inicialmente, é importante discorrer
acerca da finalidade da sanção com sua natureza e incidência. Explica-se: em
que pese o fato de, ontologicamente, as sanções civis, penais e administrativas
estarem voltadas a um mesmo fim precípuo, diversas são as suas naturezas e a
maneira pela qual incidem.
Conforme ensina o Juiz
Federal Heraldo Garcia Vitta[6],
discorrendo acerca do tema:
A doutrina enfatiza, normalmente, a identidade
ontológica dos ilícitos; com isso
significando não haver distinção substancial entre os ilícitos penal e administrativo;
mas se esquece da identidade ontológica das sanções.
Pode-se alegar que a sanção penal teria por escopo punir
os infratores, e, assim, seria diferente da finalidade da sanção administrativa, pois esta visaria a desestimular os prováveis infratores.
Contudo, esse modo de pensar não tem
consistência; toda sanção tem por finalidade desestimular as pessoas a
cometerem ilícitos. A punição não é o fim da pena; é efeito, apenas, do ato
impositivo desta, ao sujeito. Toda sanção acarreta a punição do infrator, mas o
fim dela não é este, é o de evitar condutas contrárias ao Direito. Isso decorre
do regime democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana,
do respeito aos valores fundamentais da sociedade.
Embora não concordemos plenamente com os
argumentos expendidos quanto à finalidade das penas, tal qual expõe Nelson
Hungria, convém recordarmos suas palavras, com as quais esclarece a identidade
ontológica delas: “Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito
administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena
administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma
fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o
mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um
meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas
essencialmente heterogêneas, e.g., a
multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é
conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade
de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal
desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser
penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito, à semelhança das penas
criminais (...)”.
As sanções penais e administrativas são iguais,
homogêneas, e eventuais divergências de gravidade
não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais. Apesar disso, mencionam-se
sanção penal e sanção administrativa, que são tipos ou espécies delas; o
critério adotado para distingui-las, como visto, é o da autoridade competente
para impô-las, segundo o ordenamento jurídico (critério formal).
(grifei)
Note-se, portanto, que apesar
de direcionadas a uma mesma finalidade última, as sanções penais e
administrativas diferem essencialmente em função da autoridade competente para
sua imposição e o ordenamento jurídico do qual extraem seu fundamento de
validade.
Nesse sentido, imprescindível
que se tenha em mente que o Tribunal se orienta pelas prescrições contidas na
Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica) e na Resolução n.
TC-06/2001 (Regimento Interno) para examinar a ocorrência de irregularidades e
aplicar as respectivas penalidades.
Atente-se, igualmente, para o
fato de que o âmbito de trabalho é o administrativo. Por outro lado, o Código
Penal traz em seu corpo regramento específico para aplicação de penas de acordo
com as respectivas cominações legais, observando toda uma estrutura de regras a
serem adotadas conforme cada tipo penal específico e segundo o sistema
trifásico de estabelecimento da pena.
É exatamente neste contexto
formal que se cinge a discussão: haveria possibilidade de aplicação de
determinada regra específica do Código Penal para, lançando-se mão da analogia,
orientar a aplicação de multas em face de irregularidade no âmbito desta Corte
de Contas? Poderia se cogitar da aplicação das especificidades do concurso de
crimes (continuidade delitiva) e do princípio do non bis in idem?
Entende-se que não, pois a
mera transposição de tais caracteres ínsitos à seara penal para o presente
contexto fático administrativo significaria ruptura divorciada da realidade.
Não se está aqui a pregar um
repúdio absoluto à tese da existência de zonas de contato entre as esferas
administrativa e penal, mas sim a defender a impossibilidade de que ambas se
imiscuam pelo mero alvedrio do intérprete, sem que haja substrato fático-normativo
ou jurisprudencial hábil a permitir a ocorrência de tais pontos de contato.
Sobre tal entendimento,
necessário que se observem os comentários traçados por Fábio Medina Osório[7],
mesmo autor utilizado pelo nobre Conselheiro para construção de sua tese:
Também no Direito Administrativo Sancionatório
pode ocorrer continuidade de infrações, uma continuação de fatos ilícitos que
recomenda cautelas na imposição cumulativa de sanções. Aqui, na prática, há uma
série de fatos autônomos. Todavia, por um princípio humanitário de política
repressiva, não se tem descurado do tratamento mais benigno, ou pelo menos não
tão severo, que têm merecido tais hipóteses de infrações. É certo que, no
sistema pena, existe previsão expressa dessa espécie de tratamento mais favorável
ao agente. É comum, até rotineiro,
constatar a omissão das legislações de Direito Administrativo Sancionador,
desde as que se aplicam diretamente no interior do sistema judicial, até as que
alcançam as instâncias administrativas em sentido estrito nos entes federados.
É
preocupante, certamente, o silêncio sistemático e nocivo do Direito
Administrativo Sancionador pátrio, como regra geral, no trato dessa matéria,
sendo forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase totalidade das
legislações administrativas repressoras no campo federal, nos Estados e
Municípios, embora não se possa generalizar a esse respeito, até mesmo por
ausência de pesquisas de campo nesse sentido. Pela
percepção empírica que se tem, calcada em amostragens significativas oriundas
das chamadas instituições de controle, raramente se menciona algo positivo a
respeito da continuidade de infrações, como se esta figura inexistisse no
terreno disciplinar ou administrativo lato
sensu. Uma falha legislativa alastrada em nosso ordenamento sancionador,
sem dúvida. (grifei)
Como se vê, no excerto
colacionado o autor destaca exatamente o caráter de excepcionalidade da questão
da continuidade delitiva no âmbito administrativo, pontuando a omissão
legislativa a respeito, reforçando a tese exposta até aqui. Não se desconhece
que exista intenção sincera por parte daqueles que esposam a defesa do uso da
analogia no caso, mas o fato é que esta não encontra ressonância legal e,
quiçá, jurisprudencial.
Imperioso que se opere uma
breve análise do instituto da continuidade delitiva.
O instituto do crime
continuado está previsto no art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:
Art.
70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão
é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.
Parágrafo
único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência
ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos
e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a
mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único
do art. 70 e do art. 75 deste Código.
De acordo com a obra do
Promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches Cunha[8]:
Estampado no art. 71 do CP, verifica-se a
continuidade delitiva (ou crime continuado) quando o sujeito, mediante
pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie,
guardando entre si um elo de continuidade (em especial, as mesmas condições de
tempo, lugar e maneira de execução).
Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli denominam esta espécie de concurso de “concurso material atenuado”
ou “falso crime continuado”, alegando que “onticamente, não é um verdadeiro
crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos”. [...]
Nota-se,
portanto, que o instituto está baseado em razões de política criminal. O juiz,
ao invés de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em
continuidade, por ficção jurídica, para fins da pena, considera como se um só
crime foi praticado pelo agente, devendo ter a sua reprimenda
majorada. (grifei)
Por sua vez, o Procurador de
Justiça e penalista Rogério Greco[9],
ao comentar sobre as origens do instituto, traz a seguinte lição:
Afirma Bettiol que “a figura do crime continuado
não é de data recente. As suas
origens ‘políticas’ acham-se sem dúvida no favor
rei que impeliu os juristas da Idade Média a considerar como furto único a
pluralidade de furtos, para evitar as consequências draconianas que de modo
diverso deveriam ter lugar: a pena de morte ao autor de três furtos, mesmo que
de leve importância. Os nossos práticos insistiam particularmente na
contextualidade cronológica da prática dos crimes, para considerá-los como
crime único, se bem que houvesse também quem se preocupasse em encontrar a
unidade do crime no uno impetu com o
qual os crimes teriam sido realizados”. (grifei)
Nesse mesmo sentido,
referenciando às origens históricas do crime continuado, o magistrado e
professor Guilherme de Souza Nucci[10]:
[...] quando o agente, mediante mais de uma ação
ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de
tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição de que os
subsequentes são uma continuação do
primeiro, formando o crime continuado. É
a forma mais polêmica de concursos de crimes, proporcionando inúmeras
divergências, desde a natureza jurídica até a conceituação de cada um dos
requisitos que o compõem. Narram os penalistas que o crime continuado
teve sua origem entre os anos de 1500 e 1600, em teoria elaborada pelos
práticos italianos, dos quais ressaltam-se os trabalhos de Prospero Farinacio e
Julio Claro. Naquela época, a lei era
por demais severa, impondo a aplicação da pena de morte quando houvesse a
prática do terceiro furto pelo agente (Potest
pro tribos furtis quamvis minimis poena imponi). O tratamento era, sem
dúvida, cruel, mormente numa época de tanta fome e desolação na Europa.
Por isso, escreveu Claro: “Diz-se que o furto é único, ainda que se cometam
vários em um dia ou em uma noite, em uma casa ou em várias. Do mesmo modo se o
ladrão confessou ter cometido vários furtos no mesmo lugar e em momentos
distintos, interpretando-se tal confissão favoravelmente ao agente, isto é, que
suas ações, em momentos distintos, continuadamente, são um só furto e não
vários...” (Carlos Fontán Balestra, Tratado
de derecho penal, t. III, p. 60). E, ainda, Farinacio: “Tampouco existem
vários furtos senão um só, quando alguém roubar de um só lugar e em momentos
diversos, mas continuada e sucessivamente, uma ou mais coisas: ... não se pode
dizer ‘várias vezes’ se os roubos não se derem em espécie e tempo distintos. O
mesmo se pode dizer daquele que, em uma só noite e continuadamente, comete
diversos roubos, em lugares distintos, ainda que de diversos objetos... a esse
ladrão não se lhe pode enforcar, como se lhe enforcaria se tivesse cometido
três furtos em momentos distintos e não continuados” (Balestra, ob. Cit., p.
61). (grifei)
Dos excertos colacionados
extrai-se que o instituto tem suas raízes num contexto histórico em que sua
gênese e aplicação se fizeram necessárias no intuito de temperamento das penas
aplicadas, eis que se corria o risco de penalização excessiva e alheia a
quaisquer critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Era necessário
proteger-se o acusado em face da sociedade e do ordenamento.
Hodiernamente, configura-se
como elemento de política criminal, cuja natureza de ficção jurídica[11]
orienta-se no sentido de beneficiar o agente para que não seja sobremaneira
penalizado pelos diversos núcleos do tipo por ele praticados, considerando-os
como interligados por um mesmo fio condutor que costura elementos como os
crimes propriamente ditos, as condições de tempo, lugar, maneira de execução e
outras semelhantes.
Tratamento divergente merece
o presente caso dos autos, uma vez que de natureza diversa daquela que serve de
substrato à seara penal. Isso porque aqui as condutas do requerente ensejam a reprovabilidade
ínsita aos crimes que ferem o erário e, por tabela, a sociedade.
No caso da maioria dos tipos
penais previstos no Código Penal, os objetos materiais e jurídicos constituem
uma miríade de atingidos, ao passo que naquelas irregularidades abrangidas pela
competência das Cortes de Contas, tais objetos são coincidentes, resumindo-se
na figura do erário.
Assim, entende-se impossível
a aplicação analógica do instituto do crime continuado, sobretudo em função de
seu objetivo primordial, pois que não se observa imperiosa a preservação ou
garantia de o requerente não será excessivamente penalizado. No caso, se do
cotejamento dos objetos jurídicos e materiais atingidos fosse aplicável algum
brocardo latino notoriamente penalístico, seria certamente o pro societate e não o pro reo, eis que as irregularidades
cabalmente demonstradas repercutem direta e indiretamente nos interesses da
sociedade, muito mais do que as multas afetam qualquer subjetividade do
requerente enquanto responsável apenado.
Ademais, não bastassem os
argumentos de cunho interpretativo, normativo e histórico-filosófico até aqui
perfilados, há que se destacar também o fato de que os requisitos do crime
continuado não poderiam ser observados e respeitados caso houvesse a adoção do
instituto no presente caso. De acordo com a doutrina[12],
o crime continuado apresenta os seguintes requisitos:
(A) Pluralidade de condutas: mais de uma
ação ou omissão que implique em vários crimes;
(B) Pluralidade de crimes da mesma espécie: aproxima-se
do concurso material ao exigir condutas provocando vários crimes.
Diferencia-se, no entanto, ao restringir sua aplicação a crimes da mesma
espécie.
(C) Elo de continuidade: é também
requisito do crime continuado o elo de continuidade entre as condutas. Esse elo
se revela através:
(C.1) Das
mesmas condições de tempo: a lei não anuncia qual o hiato temporal máximo
que deve existir entre o primeiro e o último delito da cadeia, alertando a
jurisprudência que não pode suplantar 30 (trinta) dias.
(C.2) Das
mesmas condições de lugar: para a jurisprudência, haverá as mesmas
condições de lugar quando os crimes são praticados na mesma comarca (ou em
comarcas vizinhas).
(C.3) Da
mesma maneira de execução (modus operandi): como bem
alerta Bitencourt, a lei exige semelhança e não identidade. A semelhança na
maneira de execução se traduz no modus
operandi de realizar a conduta delitiva maneira de execução é o modo, a
forma, o estilo de praticar o crime, que, na verdade, é apenas mais um dos
requisitos objetivos da continuação criminosa.
(C.4) Outras
circunstâncias semelhantes: abrangendo quaisquer outras
circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade. (grifos do
original)
Nesse sentido, destaque-se
que o item C.1 do trecho acima aponta que o hiato temporal máximo que deve
existir entre o primeiro e o último delito na cadeia fática é
de 30 dias.
Ora, levando-se em
consideração que o requerente vem sendo recorrentemente penalizado em função de
irregularidades constatadas durante todo o tempo em que ocupou a Secretaria de
Estado de Turismo, Esporte e Cultura de Santa Catarina (período que vai de
01/07/2007 a 31/03/2010), conclui-se que o requisito temporal restaria
desatendido, caso fosse aplicada a continuidade delitiva, descaracterizando-a,
portanto. Note-se que quaisquer pontos de referência dentro do período referido
extrapolariam os 30 dias adotados pacificamente pela jurisprudência[13].
Há, ainda, outro requisito
apontado por boa parte da doutrina e da jurisprudência para o reconhecimento da
configuração da continuidade delitiva: que a atuação do agente se dê mediante
unidade de desígnios, isto é, mediante um só plano delituoso. Esse requisito
traduz a adoção da teoria objetivo-subjetiva, assim explicada por Rogério Greco[14]:
A última teoria, que possui natureza híbrida,
exige tanto as condições objetivas como o indispensável dado subjetivo, ou
seja, deverão ser consideradas não só as condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, como também a unidade de desígnio ou relação
de contexto entre as ações criminosas.
Acreditamos
que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso
sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando
desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O
criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz. (grifei)
Trata-se de teoria adotada
pela jurisprudência tanto do STF[15]
quando do STJ[16].
Mais uma vez, tem-se
retratada a impossibilidade de aplicação analógica da continuidade ao presente
caso, uma vez que despiciendo o exame da unidade de desígnios nas condutas por
parte do requerente, uma vez que, se o liame subjetivo por muitas das vezes é
de difícil comprovação caso a caso, justamente ensejando a aplicabilidade das
teorias da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, que dirá em uma
cadeia sucessiva de atos.
Não obstante, cada conduta é
una e destacada (possibilitando, eventualmente, a aplicação analógica do
concurso material de crimes, consoante o posicionamento reiterado do Tribunal),
ensejando seus respectivos exame e processo, inclusive representando
afastamento da alegação de bis in idem,
a ser oportunamente analisado.
Quanto ao argumento
apresentado pela Área Técnica, no sentido de que o art. 72 trataria as penas de
multa diferentemente das restritivas de liberdade em delito continuado ou em
concurso material (fl. 59v), fundamentando assim parte de sua discordância com
a aplicabilidade da continuidade delitiva, discorda-se parcialmente.
Em princípio, compartilha-se
a tese central da inaplicabilidade da continuidade delitiva; contudo, cabe
ressaltar meramente a título informativo que, em que pese a previsão do art. 72
do Código Penal, doutrina e jurisprudência vislumbram tratamento específico das
penalidades de multa no âmbito da continuidade delitiva. Veja-se[17]:
O art. 72 do CP avisa: “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e
integralmente”.
Nota-se que a pena de multa não obedece às
regras diferenciadas do tratamento dispensado ao concurso de crimes. Para a
fixação da multa, portanto, só se aplica uma regra: aplicação distinta e
integral.
Não se descarta doutrina lecionando que essa
regra não serve para o crime continuado. Para fins de aplicação de pena, no
direito brasileiro, o crime continuado, por ficção jurídica, é considerado
crime único. Logo, aplica-se a pena de multa uma única vez.
Nesse sentido vem decidindo o STJ: “’A pena de multa, aplicada no crime
continuado, escapa à norma contida no art. 72 do Código Penal’ (Resp nº
68.186/DF, Relator Ministro Assis Toledo, in DJ 18/12/1995). As penas de multa,
no caso de concurso de crimes, material e formal, aplicam-se cumulativamente,
diversamente do que ocorre com o crime continuado, induvidoso concurso material
de crimes gravados pela menor culpabilidade do agente, mas que é tratado como crime
único pela lei penal vigente, como resulta da simples letra dos artigos 71 e 72
do Código Penal, à luz dos artigos 69 e 70 do mesmo diploma legal”.
Apesar dessa previsão,
entende-se inócuo seu conteúdo ao presente exame, eis que já fartamente
comprovada a impossibilidade da incidência da tese da continuidade delitiva
sobre o objeto destes autos.
Ressalte-se que o argumento
da Área Técnica seria plenamente cabível aqui levando-se em conta, num
exercício hipotético, se no presente caso se admitisse o concurso material de
crimes (o único que se afigura admissível, diga-se de passagem), uma vez que aí
sim aplicável o previsto no art. 72, incidindo as penas de multa distinta e
integralmente, cumulando-se.
No que diz respeito ao
argumento de que a aplicação de penalidades de multa em função de
irregularidades apontadas nos processos envolvendo o requerente implicaria em
violação ao princípio do non bis in idem,
entende-se igualmente não assistir razão ao requerente e ao ilustre
Conselheiro.
Acerca desse princípio,
Rogério Sanches Cunha[18]
ensina o seguinte:
Este princípio não está previsto expressamente
na Constituição, mas sim no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal
Internacional:
“Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição em contrário do presente Estatuto,
nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por actos constitutivos de
crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2 – Nenhuma pessoa
poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5º,
relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.
Entende-se, majoritariamente, que o princípio em
estudo não é absoluto. O próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, prevê a
possibilidade de julgamento por mesmo fato nos casos dos crimes de genocídio,
crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desde que o primeiro tribunal a
realizar o julgamento tenha tentado subtrair a competência do Tribunal
Internacional ou não tenha havido a imparcialidade necessária à ação da
justiça. Entre nós, a exceção ao
princípio do non bis in idem se
encontra no artigo 8º, que autoriza novo julgamento e condenação pelo mesmo
fato, nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira (vide item
“eficácia da lei penal no espaço”).
O princípio do non bis in idem tem três significados:
(A) Processual: ninguém pode ser processado
duas vezes pelo mesmo crime;
(B) Material: ninguém pode ser condenado pela
segunda vez em razão do mesmo fato;
(C) Execucional: ninguém pode ser executado
duas vezes por condenações relacionadas ao mesmo fato. (grifos do original)
De outra volta, pela
explicação do já citado jurista Fábio Osório Medina[19],
Intimamente ligado aos princípios da legalidade
e da tipicidade, o princípio da proibição do bis in idem, cujas raízes remontam ao devido processo legal
anglo-saxônico, também atua em matéria de Direito Administrativo Sancionador,
possuindo um largo alcance teórico e restritos alcance e significados práticos.
Tal princípio, em nosso sistema, está constitucionalmente conectado às
garantias de legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo
legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88. Suas consequências
e desdobramentos, no entanto, são bastante tímidos na jurisprudência e na
doutrina brasileiras, deixando lacunas consideráveis ao crivo dos juristas.
Trata-se de um tema que frequente, curiosamente, mais o imaginário do
inconsciente do que a ostensividade da consciência jurídica nacional. Sabe-se
que se trata de um princípio ligado à justiça e a outros valores não menos nobres,
mas a construção de seus significados e significantes passa por uma compreensão
acerca das estruturas de gestão das normas sancionadoras. A teoria não pode dissociar-se da realidade,
e assim ocorre com a jurisprudência. Por isso, um novo patamar de compreensão
para o non bis in idem pressupõe, de
um lado, a descrição e o diagnóstico do panorama vigente e, de outro, a
proposição de novas alternativas hermenêuticas, ainda que desde um ponto de
vista geral.
Insistimos, de qualquer sorte, no seguinte ponto:
pensar o non bis in idem é, acima de
tudo, refletir sobre as delicadas relações entre as esferas penal e
administrativa, problema que não é novidade no Brasil ou no exterior. [...]
A ideia
básica do non bis in idem é que
ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato, eis uma
concepção praticamente universal, que desde as origens algo-saxônicas
encontra-se presente nos ordenamentos democráticos (v.g. art. 8º, n. 4, do
Pacto de San José da Costa Rica). (grifei)
À vista dos ensinamentos
colacionados, torna-se óbvia a inocorrência de violação ao referido princípio,
uma vez que o requerente vem sendo sucessivamente considerado responsável por
irregularidades passíveis de penalidade de multa em processos distintos oriundos de condutas distintas, nos quais foram amplamente respeitados
os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Note-se que, tangencialmente
aos três significados do princípio apontados acima, o presente caso não se
enquadra em nenhum. Isso porque, processualmente, o requerente foi processado
duas ou mais vezes por condutas diversas; materialmente, vem sendo condenado em
função de fatos distintos; e no plano execucional, poderia ser executado em
virtude de condenações relacionadas a fatos múltiplos.
Neste mesmo sentido se
posicionou a Área Técnica, argumentando que (fls. 59v-60v):
A ofensa ao princípio do “non bis in idem”,
como se sabe, caracteriza-se pela duplicidade de penalização aplicada ao
indivíduo, em razão dos mesmos fatos, o que não se verifica nas situações
objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas em relação às prestações de contas
referentes aos fundos do SEITEC. [...]
Embora os atos praticados irregularmente pelo
Gestor sejam da mesma ordem, tais ações são praticadas em fatos administrativos
distintos. [...]
Deste modo, o ato
administrativo típico é sempre manifestação volitiva da Administração, no
desempenho de suas funções de Poder Público, visando a produzir algum efeito
jurídico, o que o distingue do fato administrativo, que, em si, é atividade
pública material, desprovida de conteúdo de direito.
Como fato administrativo devemos entender toda
realização material da Administração em cumprimento de alguma decisão
administrativa, tal como a concessão de recursos do Fundo do SEITEC, que se
constitui, como materialização da vontade administrativa, e só reflexamente
interessa ao Direito, em razão das consequências jurídicas que dele possam
advir para a Administração e para os administrados.
Portanto, não há que se falar em ofensa ao
princípio do “non bis in idem”, em razão de o Tribunal de Contas julgar e
penalizar os atos jurídicos praticados pelo Gestor dos Fundos do SEITEC, em
processos que tem como objeto fatos administrativos distintos, muito embora, a
irregularidade dos atos que dão origem as penalizações sejam da mesma natureza
e tenham a mesma identidade.
Ademais, esclareça-se que o Doutrinador Fábio
Medina Osório, na sua obra, empregada pelo Conselheiro Adircélio de Moraes
Ferreira Júnior para sustentar a tese ora rebatida, menciona a questão do
princípio do “non bis in idem” interprocessos não exatamente na mesma
instância de julgamento, mas nas situações de independência das instâncias de
julgamento (Penal, Civil e Administrativo), a qual se submete o ato
administrativo.
Considerando os argumentos
postos, bem como os excertos doutrinários e as jurisprudências que lhes
serviram de suporte técnico-jurídico, entende-se pela manutenção da linha de
posicionamento que vinha sendo adotada majoritariamente pelo Tribunal de
Contas, em prejuízo da tese da continuidade delitiva.
Relativamente à não
uniformização dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas
características, também não assiste a razão ao recorrente.
Conforme já exaustivamente
delineado ao longo deste Parecer, o requerente vem sendo sucessivamente
responsabilizado por irregularidades em processos específicos, que abrangem
cada conduta de acordo com suas respectivas peculiaridades, ponderadas de
acordo com os critérios de convicção de cada Relator e do Plenário, dentro dos
limites legais insculpidos no art. 70, inciso II, da Lei Complementar Estadual
n. 202/2000.
A posição aqui adotada
coaduna-se com aquela já externalizada pela Área Técnica (fls. 62-63v):
No que se refere ao pedido de uniformização de
jurisprudência, não procede o recurso proposto.
Cada processo possui suas peculiaridades e é
decidido com base nas especificidades do caso concreto, além do que,
especificamente, em relação aos paradigmas mencionados pelo Recorrente não
trata das mesmas questões que deram razão a multa aplicada no presente
processo.
Faz-se necessário trazer à
baila especificamente o incidente de Uniformização de Jurisprudência previsto
no Código de Processo Civil em seus artigos 476 a 479.
Os autores Luiz Guilherme
Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, em seu Manual de Processo de Conhecimento,
dizem o seguinte a respeito da Uniformização de Jurisprudência:
A
divergência externa há de ser verificada entre a orientação que se esboça no
julgamento do caso concreto e outra anteriormente dada por outro órgão do
tribunal, não sendo viável admitir-se o incidente apenas porque existem, no
tribunal, em diversos órgãos, orientações divergentes sobre a mesma questão
jurídica. (Grifou-se)
A divergência de entendimento
sobre a mesma questão jurídica não é capaz de gerar o incidente de
uniformização de jurisprudência e não se enquadra no artigo 301, IV do Código
de Processo Civil, que é o caso dos autos.
Assim, apesar de o Tribunal
Pleno ter deixado de aplicar a multa em situações semelhantes, tal fato não tem
o condão de sanar as irregularidades apontadas no Acórdão recorrido, pois este
Tribunal tem a competência para rever os seus entendimentos.
Da mesma forma, tampouco
procede a alegação do Recorrente de que não agiu com dolo ou má-fé. Convém
lembrar que, diferentemente do direito penal, nos processos referentes à
comprovação de utilização regular de recursos públicos não cabe a aplicação do
princípio do in dubio pro reo, no qual a boa-fé é presumida.
Isso porque, neste tipo de
processo prevalece o princípio da supremacia do interesse público, fazendo com
que se tenha a inversão do ônus da prova, cabendo, pois, ao gestor público
comprovar a boa-fé na gestão dos valores públicos sob sua responsabilidade.
Nessa linha, é importante
salientar que no uso do dinheiro público, não basta ao responsável estar
imbuído de boa-fé, exige-se, também, do gestor, a comprovação de ter agido nos
termos da lei.
Em
sendo assim, considerando que os argumentos apresentados pelo Recorrente, em
suas razões de recurso, não têm o condão de alterar a Decisão Recorrida,
manifesta-se pela manutenção do decisum na sua íntegra.
Ainda, não procede a
tentativa de eximir-se da responsabilidade sob o argumento de que não foi
devidamente comunicado pelos setores responsáveis, pois não é crível que o ex-Secretário
de Estado de Turismo, Cultura e Esporte alegue a falta de informação a respeito
da ausência de prestação de contas dos recursos repassados pelo Fundo Estadual
de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE) à Associação Amigos do Esporte Amador de
Jaraguá do Sul, pois a atribuição de responsabilidade ao Sr. Gilmar Knaesel
decorre do seu dever de supervisão e fiscalização dos serviços executados no
órgão de sua competência.
Nesse sentido, repita-se que cabe ao gestor a
responsabilização em face das chamadas culpa in eligendo e
culpa in vigilando, significando esta a ausência de fiscalização
das atividades de seus subordinados, ou dos bens e valores sujeitos a esses
agentes, ao passo que aquela representa a responsabilidade atribuída a quem deu
causa à má escolha de seu representante ou preposto.
A
responsabilidade do gestor, frisa-se novamente, decorreu de seu comportamento
omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o que se tornou, no caso em comento,
uma das causas determinantes da irregularidade assinalada, tudo consoante já
exaustivamente delineado no item 2.1 deste Parecer.
Quanto à alegação de ausência
de dolo ou má-fé, no que compete a esse Tribunal de Contas, não há qualquer
dispositivo na Lei Complementar Estadual n. 202/2000 que exija comprovação de
má-fé para com o imputável. Mais ainda, no âmbito do direito administrativo,
não há que se indagar sobre a boa ou má-fé do agente, mas sim sobre sua
voluntariedade ao ato de praticar a conduta, o qual se constata nesses autos.
Sobre o tema, destaco as
palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello[20],
que bem sintetiza esse entendimento:
11. (d) Princípio da
exigência de voluntariedade para incursão na infração – O Direito propõe-se a
oferecer às pessoas uma garantia de segurança, assentada na previsibilidade de
que certas condutas podem ou devem ser praticadas e suscitam dados efeitos, ao
passo que outras não podem sê-lo, acarretando conseqüências diversas, gravosas
para quem nelas incorrer. Donde, é de meridiana evidência que descaberia
qualificar alguém como incurso em infração quando inexista a possibilidade de
prévia ciência e prévia eleição, in
concreto, do comportamento que o livraria da incidência na infração e,
pois, na sujeição às sanções para tal caso previstas. Note-se que aqui não se
está a falar de culpa ou dolo, mas de coisa diversa: meramente do animus de praticar dada conduta.
Por fim, não deve ser
acolhida a singela alegação de ausência de dano ao erário, visto que o descumprimento de preceitos normativos
que resultam, como consequência, em desvirtuamento dos objetivos da norma
estabelecida, implica em dano ao interesse público, de maneira que tal conduta,
por si só, é passível de responsabilização.
Desse modo, por tudo quanto
referido e examinado no corpo deste Parecer, bem como em função da inexistência
manifesta de superveniência de documentos ou argumentos com eficácia
probatória, entende-se não lograr êxito o recorrente em seu intuito
desconstitutivo da Decisão Monocrática recorrida.
3. Conclusão
Ante
o
Florianópolis, 16 de agosto de 2016.
Cibelly Farias Caleffi
Procuradora
[1] Note-se que embora, tecnicamente, o prazo de 30
dias para a apresentação do Recurso de Reconsideração só tenha iniciado a
partir da publicação da Portaria
n. TC-0240/2016 no Diário Oficial Eletrônico desse Tribunal de
Contas, a peça apresentada deve ser conhecida por ausência de prejuízo na sua
interposição antes da referida publicação da portaria na imprensa oficial.
[2] Art. 205. A prescrição
ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
[3] A
Lei Estadual n. 13.336/05 (alterada pelas Leis Estaduais n. 14.366/08, n.
14.600/08, n. 14.967/09 e n. 16.301/13, e atualmente regulamentada pelo Decreto
Estadual n. 1.309/12, com alterações posteriores) – considerando, também, o
disposto no art. 130, da Lei Complementar Estadual n. 381/2007 –, criou o Fundo
Estadual de Incentivo à Cultura (FUNCULTURAL), o Fundo Estadual de Incentivo ao
Turismo (FUNTURISMO) e o Fundo
Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE), todos no âmbito do
Sistema Estadual de Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte (SEITEC), com
o objetivo de estimular o financiamento de projetos culturais, turísticos e
desportivos na esfera da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte
(SOL) e de todas as Secretarias de Estado de Desenvolvimento Regionais (SEDRs).
[4] MELLO, Celso Antônio
Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 247-248.
[5] Ibidem, p. 1008-1009.
[6] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66-68.
[7] OSÓRIO,
Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 347.
[8] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 458-459.
[9] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói:
Editora Impetus, 2015, p. 227.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 400.
[11] STJ, HC n. 262842/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 16/05/2014.
STJ, REsp n. 1196299/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze,
5ª T., DJe 8/05/2013. STJ, HC n. 141239/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, 5ª T, DJe 15/03/2010.
[12] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 459-461.
[13] STF, HC 73219/SP, Rel. Min.
Maurício Corrêa, DJ 26/04/1996. STF, HC 69896, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ
02/04/1993.
[14] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015, p. 230-231.
[15] STF, RHC 85577/RJ, 2ª Turma.
[16] STJ, HC 54802/SP, 5ª Turma. STJ, HC 206784/SP, Rel. Min. Laurita Vaz,
5ª T., DJe 29/06/2012. STJ, RHC 22800/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., DJe
02/08/2010. STJ, HC 128756/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 29/03/2010.
[17] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 463-464.
[18] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 98-99.
[19] OSÓRIO,
Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 281-283.
[20]
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso
de Direito Administrativo. 20ª ed., p. 805.