PARECER nº:

MPTC/44054/2016

PROCESSO nº:

REC 16/00146381    

ORIGEM:

Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte - FUNDESPORTE

INTERESSADO:

Gilmar Knaesel

ASSUNTO:

Recurso de Reconsideração da decisão exarada do processo - PCR-08/00624661.

 

 

 

Trata-se o presente processo de Recurso de Reconsideração (fls. 3-44) interposto pelo Sr. Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, em face da Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gavi nos autos do processo PCR n. 08/00624661 (fls. 453-482), Decisão a qual julgou irregulares as contas referentes aos recursos repassados pelo Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE) à Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, por meio da Nota de Empenho n. 140/2007, no valor de R$ 190.000,00, para execução do projeto “Libertadores da América”, imputando débito e cominando multas ao recorrente, nos seguintes termos:

Ante o exposto, no exercício das atribuições de judicatura previstas no §4º do art. 73 da CF, no §5º do art. 61 da CE e no art. 98 da LC n. 202/2000, decido:

1.      Julgar irregulares com imputação de débito, na forma do art. 18, III, “b” e “c”, c/c o art. 21, caput da Lei Complementar Estadual nº 202/00, as contas de recursos repassados para a Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, referente à Nota de Empenho nº 140, de 26/04/2007, no valor de R$ 190.000,00 (cento e noventa mil reais) relativos ao Projeto “Libertadores da América” ocorrido na Colômbia entre os dias 26 e 28 de abril de 2007, de acordo com os relatórios emitidos nos autos.

2.       Condenar, solidariamente, os responsáveis, Sr. Sérgio Luis da Silva, a pessoa jurídica Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul e o Sr. Gilmar Knaesel, ao recolhimento da quantia de 190.000,00 (cento e noventa mil reais), considerando o valor utilizado com CPMF e tarifas bancárias (R$ 733,72, fl. 70), referente à nota de empenho 140/2007, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias para comprovar, perante este Tribunal, o recolhimento do valor do débito ao Tesouro do Estado, atualizado monetariamente e acrescido dos juros legais (arts. 21 e 44 da Lei Complementar n.º 202/00), calculado a partir de 07/05/2007 (data do repasse, fl. 70/71), sem o que fica, desde logo, autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas para que adote providências à efetivação da execução da decisão definitiva (art. 43, II, da Lei Complementar nº 202/00), em face da não comprovação da boa e regular aplicação dos recursos, contrariando o disposto no art. 140, §1º, da Lei Complementar Estadual n.º 284/05, nos seguintes termos:

2.1. De responsabilidade do Sr. Gilmar Knaesel:

2.1.1. Aprovação do projeto e concessão de recursos públicos sem a observância dos preceitos legais, o que constituiu causa necessária sem a qual não haveria o dano posterior, conforme demonstrado no item II.2.3 desta proposta de voto. [...]

3.      Aplicar ao Sr Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, multa prevista no art. 70, II, da Lei Complementar Estadual n. 202/00, em razão das irregularidades abaixo identificadas, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias para comprovar perante este Tribunal o recolhimento do valor ao Tesouro do Estado, sem o que fica, desde logo, autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas para que adote providências à efetivação da execução da decisão definitiva (art. 43, II e 71 da Lei Complementar nº 202/00), pelos seguintes fundamentos:

3.1. R$ 2.000,00 (dois mil reais), em razão de irregularidade na participação dos órgãos deliberativos colegiados no procedimento para análise de regularidade e aprovação do projeto beneficiado, em desobediência aos preceitos legais pertintes, constatando-se: a) ausência do parecer técnico da Diretoria do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina – PDIL, contrariando o disposto no art. 6º da Lei Estadual n. 13.792, de 18 de junho de 2006 (subitem 2.1.1.2 do Relatório DCE n. 201/2012) e b) ausência de parecer do Conselho Estadual de Desportos, em dissonância com o art. 11, II e art. 20, ambos do Decreto nº. 3.115/05 c/c o art. 37, caput, da Constituição Federal e art. 16, da Constituição do Estado de Santa Catarina (subitem 2.1.1.3 do Relatório DCE n. 201/2012).

3.1.1. R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais), em razão da ausência do Contrato/Termo de Apoio Financeiro na prestação de contas, em desacordo com o disposto no art. 60, parágrafo único e art. 116, ambos da Lei Federal nº 8.666/93, e art. 16, § 3º, do Decreto Estadual nº. 3.115/05 vigente à época dos fatos (subitem 2.1.1.4 do Relatório DCE n. 201/2012).

4.      Declarar a Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul e o Sr. Sérgio Luis da Silva impedidos de receber novos recursos do Erário, consoante dispõe o art. 13 da Lei Estadual n. 13.336/2005 c/c art. 61 do Decreto Estadual n. 1.309/2012 e o art. 16 da Lei Estadual n. 16.292/2013.

5.      Encaminhar, com fundamento no art. 59, XI, da Constituição Estadual, nos arts. 1º, inc. XIV, e 18, §3º, da Lei Complementar n. 202/2000, cópia da presente decisão e do Relatório DCE n. 368/2013 ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina, dando-lhe conhecimento acerca das irregularidades detectadas.

6.      Dar ciência da decisão aos responsáveis e à Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte – SOL.

A Diretoria de Recursos e Reexames emitiu o Parecer n. DRR-186/2016 (fls. 45-63), opinando pelo conhecimento do presente Recurso de Reconsideração e, no mérito, pelo seu desprovimento, mantendo na íntegra os termos da Deliberação recorrida.

O Recurso de Reconsideração, com amparo no art. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, é o adequado em face de decisão proferida em processo de prestação de contas, sendo a parte legítima para a sua interposição, uma vez que figurou como responsável pelos atos de gestão irregulares descritos na Deliberação recorrida.

A Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gavi foi ratificada por meio da Portaria n. TC-0240/2016, de 18 de abril de 2016, a qual dispôs que o prazo para interposição de recursos aos processos relacionados no inciso VII do seu art. 1º – dentre eles o presente – passaria a fluir a partir da data de sua publicação, considerando a medida liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal para suspensão dos arts. 1º ao 9º e 11 ao 20 da Lei Complementar Estadual n. 666/2015, que previa, dentre outras disposições, a sujeição das decisões dos auditores ao reexame de ofício pela Câmara competente ou pelo Plenário nos casos de imputação de débito superior ao valor de alçada para Tomada de Contas Especial ou de divergência das conclusões da instrução técnica ou do Ministério Público de Contas (art. 11).

Verifica-se que a Portaria n. TC-0240/2016 foi publicada na data de 19/04/2016 e a peça recursal teve o protocolo procedido nessa Corte de Contas em 05/04/2016, o que caracteriza a tempestividade do recurso em comento[1]. Ainda, o recurso obedece ao requisito da singularidade, porquanto foi interposto uma única vez.

Logo, encontram-se presentes todos os requisitos de admissibilidade do presente recurso, de maneira que se passa, na sequência, à análise dos itens impugnados da decisão recorrida e das alegações do recorrente.

1.     Prescrição

O recorrente, em sede de preliminares, iniciou sua tese de arguição prescricional trazendo uma discussão (fl. 5) sobre os princípios administrativos e sua incidência na Administração Pública, destacando o princípio da segurança jurídica. Em seguida (fl. 6), passou a discorrer acerca da prescrição administrativa, transcrevendo trechos doutrinários (fls. 6-8) sobre o tema, bem como apontando o tratamento legal da matéria pelos Tribunais de Contas (fls. 8-12).

Argumentou (fl. 13) que haveria três possibilidades de contagem do início do prazo prescricional (da data de citação do responsável; da data de exoneração do cargo de gestor público; e da data do repasse do dinheiro), asserindo que entre o repasse dos recursos e sua citação teriam decorrido nove anos, prazo no qual teria se dado a prescrição quinquenal. Acrescentou que fora exonerado do cargo de Secretário em 30/03/2010, seis anos antes da decisão da qual ora recorre.

Por fim, colacionou (fls. 13-14) excerto jurisprudencial supostamente hábil a sustentar seus argumentos.

Não obstante os argumentos referidos, há que se atentar para oposição elaborada pela Diretoria de Recursos e Reexames no Parecer n. DRR-186/2016 (fls. 48v):

Contrariamente ao asseverado pelo Recorrente, quanto ao prazo prescricional de 05 (cinco) anos, impende ressaltar que esta Corte de Contas possui entendimento pacífico de que o lapso prescricional é de 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor, em conformidade com o estabelecido na Lei nº 10.406/02, desde que não implique em imputação de débito.

Desse modo, no que concerne à hipótese dos autos em que foram aplicadas multas ao Recorrente, o entendimento deste Tribunal acompanha o posicionamento adotado pelo Tribunal de Contas da União, no sentido de que o prazo de prescrição da pretensão punitiva a ser adotado pelas Cortes de Contas é aquele previsto no Código Civil. [...]

Assim, o lapso prescricional, diante do atual Código Civil, passou de 20 (vinte) para (10) dez anos, conforme estabelece o art. 205 da Lei nº 10.406, de 10/01/2002[2]. Ressalvando-se, claro, os casos em que os prazos prescricionais estavam em andamento, com a vigência do novo Código Civil, no qual se utiliza especificamente a regra de transição, prevista no art. 2.208 do referido Código.

Com efeito, diz o citado dispositivo:

Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

No presente caso, prevalece para fins de verificação da prescrição, a regra geral do artigo 205 do Código Civil vigente, segundo a qual “a prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.

Desse modo, a prescrição do Código Civil a ser aplicada nos autos deve ser a decenal, entretanto, considerando que a prática dos atos apontados como irregulares ocorreu em 2007 e a data da citação do responsável foi realizada em 06/05/2013 (fl. 328), não há que se falar em configuração da prescrição das multas, pois sequer transcorreu o prazo de 10 (dez) anos.

Além disso, com o advento da Lei Complementar Estadual n. 588/2013, diploma o qual introduziu o art. 24-A à Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica desse Tribunal de Contas), disciplinou-se os prazos de prescrição nessa Corte de Contas, estabelecendo, em regra, o prazo de cinco anos para análise e julgamento de todos os processos administrativos relativos a administradores e demais responsáveis. Veja-se:

Art. 24-A É de 5 (cinco) anos o prazo para análise e julgamento de todos os processos administrativos relativos a administradores e demais responsáveis a que se refere o art. 1º desta Lei Complementar e a publicação de decisão definitiva por parte do Tribunal, observado o disposto no § 2º deste artigo.

§ 1º Findo o prazo previsto no caput deste artigo, o processo será considerado extinto, sem julgamento do mérito, com a baixa automática da responsabilidade do administrador ou responsável, encaminhando-se os autos ao Corregedor-Geral do Tribunal de Contas, para apurar eventual responsabilidade.

§ 2º O prazo previsto no caput deste artigo será contado a partir da data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente. (grifei)

Tem-se, dessa forma, que o art. 24-A, § 2º, da referida Lei Complementar Estadual n. 588/2013 estipula como marco inicial de prescrição a data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou a data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente.

No caso, extrai-se que o responsável foi exonerado em 30/03/2010 (fl. 13) e citado em 06/05/2013 (fl. 328 do processo originário); logo, tendo o marco prescricional iniciado na data de sua citação, o prazo para análise e julgamento do processo finalizaria somente em 06/05/2018.

Acrescente-se que há uma regra de transição para os processos que já estavam em curso nesse Tribunal de Contas quando da publicação da Lei Complementar Estadual n. 588/2013, conforme seu art. 2º, inciso II, merecendo destaque a interpretação defendida pelo voto divergente, acolhido pelo Pleno dessa Corte de Contas, proferido pelo Conselheiro substituto Cleber Muniz Gavi, no processo REC n. 14/00579357, que, pela relevância dos argumentos, colaciono aos autos:

O art. 2º da LC 588/2013 trata das regras de transição, aplicáveis aos processos que, face à novidade da norma, poderiam ser arquivados sem que o Tribunal de Contas tivesse tempo oportuno para adaptação à nova disciplina de temporalidade processual. Desta forma, se a regra geral do novo art. 24-A não vier a prejudicar a atuação desta Corte Administrativa em curto prazo (como é o caso), não se justifica o uso da regra transitória.

Para maior aprofundamento da questão, atente-se para o fato de que o art. 2° expressamente se reporta ao disposto no art. 24-A e menciona que sua aplicabilidade dar-se-á no que couber. (“Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:”). Cabe também enfatizar que os marcos temporais são totalmente distintos num e noutro artigo: um faz uso da data da citação ou término do exercício do cargo ou mandato (regra geral); outro, menciona a data da instauração do processo (regra transitória).

Então, vale repisar, a disciplina do art. 2° só será útil e aplicável quando o imediato alcance do art. 24-A inviabilizar o julgamento de processos mais antigos.

Para melhor esclarecimento, tratemos dos seguintes exemplos:

1)  Suponha-se que na data de publicação da lei (15.01.2013) fosse identificado um processo no qual, há 05 anos ou mais, foi efetuada a citação da parte responsável e findou o exercício do seu cargo ou mandato. Neste caso, a disciplina do recém-criado art. 24-A impediria, desde logo, a emissão de julgamento. O art. 2° surge, então, como norma de transição para assegurar que por mais 02 anos (atenuando os efeitos inovadores da lei) possa o Tribunal de Contas prosseguir na instrução e julgamento do feito, conforme o seguinte texto:

Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:

I - os processos instaurados há 5 (cinco) ou mais anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 2 (dois) anos para serem analisados e julgados;

2)  Suponha-se, agora, que tenha sido identificado um processo que, embora instaurado há mais de 05 anos, não tenha se amoldado completamente ao marco temporal do art. 1°. Cogite-se, por exemplo, que a citação neste processo tenha sido efetuada em ocasião mais recente, menos de 02 anos; ou que o exercício do cargo ou do mandato tenha se encerrado neste mesmo prazo. Para tal hipótese, não se faz necessário o uso da norma de transição, já que a regra geral ainda permitirá a atuação do Tribunal de Contas, conforme a redação do §2° do art. 24-A: “O prazo previsto no ‘caput’ deste artigo será contado a partir da data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente.” (ou seja, não importa se o processo em si tem mais de 05 anos).

Todos os incisos do art. 2° da LC n. 588/2013 seguem a mesma lógica, qual seja: só possuem aplicabilidade nos casos em que a pronta aplicação da regra geral do art. 24-A obstar a análise de mérito dos processos em trâmite no Tribunal de Contas, de acordo com os prazos ali mencionados. Caso contrário, a disciplina ad futurum deste último basta por si só (art. 24-A).

Cabe explicitar que esta é a única interpretação lógica possível, considerando-se a redação que foi dada ao art. 2° e a regra hermenêutica de que a lei não contém palavras inúteis. Tamanha engenhosidade seria dispensada caso o legislador apenas tivesse preceituado que “os processos em curso no Tribunal de Contas observaram a seguinte disciplina: (...)”. Entretanto, por meio de redação de alcance e aplicabilidade bem mais complexa, prescreveu que o disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000 aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma: (...)”.

Tal linha interpretativa também evitará incoerências futuras, traduzidas no fato de que os jurisdicionados com processos mais recentes não usufruiriam dos mesmos benefícios concedidos àqueles cujos processos foram autuados em data anterior a publicação da LC n. 588/2013.

Para melhor didática, vamos recorrer a outro exemplo: a análise mais simplista do art. 2º da LC n. 588/2013 (com a qual não concordamos) nos induziria a pensar que todos os processos anteriores a 15.01.2013 teriam 05 anos, no máximo, para serem julgados, independentemente da disciplina do art. 24-A. Mas então se questiona: qual será o tratamento dado aos processos instaurados após a publicação da lei?

Se o marco temporal do art. 24-A da Lei Orgânica (regra geral para contagem dos cinco anos) é constituído apenas pela data da citação ou do término do exercício do cargo ou função, é bem possível que um processo futuro tenha mais de 15 anos e ainda assim esteja em condições de ser julgado. Basta, por exemplo, que a citação tenha ocorridos nos últimos dois anos. Neste caso, não haveria uma incoerência normativa? Os jurisdicionados submetidos à regra de transição não teriam obtido um tratamento privilegiado, considerando-se a regra geral que passa a vigorar? Não se estaria adotando referências totalmente distintas para determinar o arquivamento dos processos, ou seja, para aqueles autuados até 15.01.2013 a referência seria a data da autuação (mais favorável), enquanto para os posteriores, a data da citação ou término do exercício do cargo ou mandato?

Por certo, a linha interpretativa que preserva a coerência, evita a distinção entre situações jurídicas idênticas e reverencia o caráter perene das disposições normativas, constitui o melhor norte a ser seguido. Não é demais lembrar que uma norma de transição se presta a flexibilizar eventuais rupturas decorrentes de uma nova regra jurídica. Mas se a interpretação do seu alcance conduz a criação de regra totalmente distinta da norma principal e com ela não compatível, impõe-se a revisão do processo interpretativo, com o escopo de conciliar a norma de transição com a nova disciplina geral que fundamentou sua existência.

Conforme defendido pelo Conselheiro, a regra de transição prevista no art. 2º só deverá ser utilizada subsidiariamente nos casos em que a aplicação do art. 24-A inviabilizar o julgamento de processos por essa Corte de Contas.

De fato, a interpretação mais condizente com os termos contidos em malfadada lei (“Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas [...]” – grifei) aponta nesse sentido, pois a disposição descrita em tal dispositivo apenas referencia a sua aplicação subsidiária ao art. 24-A, justamente para evitar que os processos instaurados anteriormente a sua publicação e cuja citação tivesse ocorrido há mais de 5 anos ou em período próximo a este viessem a ter sua prescrição operada imediatamente com o advento da lei, dando-se, assim, um prazo suficiente para o julgamento da matéria no âmbito desse Tribunal de Contas.

Dessa maneira, se um processo foi instaurado em 2005 e sua citação ocorreu em 2008, seria plenamente plausível a aplicação da regra de transição prevista no art. 2º, inciso I, de referida lei, a fim de evitar a prescrição no próprio exercício de 2013.

Entretanto, para os casos de processos que foram instaurados nos meses que antecederam a publicação da lei e os que foram instaurados logo após, com citações efetuadas na mesma data, tomando-se, como exemplo, 01/03/2015, haveria, com a aplicação da regra transitória, tratamento desigual – apesar de os processos terem sido instaurados quase na mesma época –, visto que o prazo de prescrição dos primeiros finalizaria em 2018, enquanto o dos segundos em 2020. Como bem questionado pelo Conselheiro, a própria parametrização da “instauração” para uns e “citação” para outros configuraria um privilégio indevido.

Não se pode, contudo, presumir que a intenção do legislador tenha sido criar situações contrárias ao princípio da isonomia, mas sim interpretar a norma a fim de garantir o efetivo julgamento dos processos perante essa Corte de Contas, não se olvidando do fato de que o texto legal em comento foi extremamente infeliz ao adotar tais parâmetros.

Desse modo, compactuo com o entendimento de que deva ser aplicada a regra geral prevista no art. 24-A a todos os processos em trâmite nessa Corte de Contas – independente da data de sua instauração – sempre que a regra transitória do art. 2º da Lei Complementar Estadual n. 588/2013 não conceda um maior prazo para análise e julgamento dos processos.

Destaca-se também que a Lei Complementar Estadual n. 588/2013 é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.259, proposta pelo Procurador-Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal, em razão de ofensa ao art. 37, § 5º da CRFB/88 que determina que as ações de ressarcimento de danos causados ao erário são imprescritíveis.

Em razão do referido dispositivo constitucional, os processos em trâmite nessa Corte de Contas que visem à reposição de danos ao erário não podem ser atingidos por quaisquer prazos prescricionais, bem como, portanto, as multas aplicadas em decorrência desse dano.

A propósito, trago a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que trata de ressarcimento ao erário determinado por decisão do Tribunal de Contas da União:

Tribunal de Contas da União. Bolsista do CNPq. Descumprimento da obrigação de retornar ao país após término da concessão de bolsa para estudo no exterior. Ressarcimento ao erário. Inocorrência de prescrição. Denegação da segurança. O beneficiário de bolsa de estudos no exterior patrocinada pelo poder público, não pode alegar desconhecimento de obrigação constante no contrato por ele subscrito e nas normas do órgão provedor. Precedente: MS 24.519, Rel. Min. Eros Grau. Incidência, na espécie, do disposto no art. 37, § 5º, da CF, no tocante à alegada prescrição" (MS 26.210, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4/9/2008, Plenário, DJE de 10/10/2008).

No voto condutor, o Relator traz o devido esclarecimento acerca da exceção prevista no final do art. 37, § 5º da CRFB/88 ao transcrever a doutrina de José Afonso da Silva, na qual o autor assinala que prescrevem apenas a apuração e a punição do ilícito, não o direito da Administração de reaver os valores atinentes ao prejuízo causado ao erário. Veja-se um trecho do referido voto:

Considerando-se ser a Tomada de Contas Especial um processo administrativo que visa a identificar responsáveis por danos causados ao erário, e determinar o ressarcimento do prejuízo apurado, entendo aplicável ao caso sob exame a parte final do referido dispositivo constitucional.

Nesse sentido é a lição do Professor José Afonso da Silva:

“A prescritibilidade, como forma de perda da exigibilidade de direito, pela inércia de seu titular, é um princípio geral de direito. Não será, pois, de estranhar que ocorram prescrições administrativas sob vários aspectos, quer quanto às pretensões de interessados em face da Administração, quer quanto às desta em face de administrados. Assim é especialmente em relação aos ilícitos administrativos. Se a Administração não toma providência à sua apuração e à responsabilização do agente, a sua inércia gera a perda do seu ius persequendi. É o princípio que consta do art. 37, § 5º, que dispõe: ‘A lei estebelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento’. Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo prescreverá. Apenas a apuração e punição do ilícito, não, porém, o direito da Administração ao ressarcimento, à indenização, do prejuízo causado ao erário. É uma ressalva constitucional e, pois, inafastável, mas por certo, destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem quem fica inerte (dormientibus non sucurrit ius)”. (grifei)

Ainda com relação à imprescritibilidade, o Tribunal de Contas da União, no incidente de uniformização de jurisprudência proveniente da Tomada de Contas n. 005.378/2000-2, julgado em 26/11/2008, pacificou o entendimento daquela Corte no seguinte sentido:

A temática aqui analisada trata exclusivamente de interpretação de dispositivo constitucional. Considerando que o STF, intérprete maior e guarda da Constituição, já se manifestou no sentido de que a parte final do § 5o do art. 37 da Carta Política determina a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, não me parece razoável adotar posição diversa na esfera administrativa. [...]

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, em:

9.1. deixar assente no âmbito desta Corte que o art. 37 da Constituição Federal conduz ao entendimento de que as ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis [...]. (grifei)

Com tudo isso, percebe-se que a pretensão do recorrente no sentido de que se acolha a tese prescricional não encontra guarida em qualquer diploma legal, quer se adote como parâmetro a intepretação analógica com o Código Civil, quer se examine o caso à luz da Lei Complementar Estadual n. 588/2013, mesmo em suas diferentes interpretações.

Portanto, entende-se incabível a alegação de prescrição apresentada pelo recorrente.

2.     Mérito

2.1. Imputação solidária de débito no valor de R$ 190.000,00, em face da não comprovação da boa e regular aplicação dos recursos

Na sequência, o recorrente pugnou (fl. 17) pelo afastamento da responsabilidade solidária a ele atribuída, albergando-se no Voto Divergente GAC/LEC n. 961/2015 (fls. 440-452v), proferido pelo Conselheiro Luiz Eduardo Cherem nos autos do processo PCR n. 08/00624661.

Transcreveu também (fls. 17-24) o Voto Divergente proferido pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall nos autos do processo TCE n. 11/00345709.

Como destacado no início deste parecer, a Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gabi apontou irregularidades nas contas referentes a recursos repassados à Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, no importe de R$ 190.000,00, para execução do projeto “Libertadores da América”, sendo o valor proveniente do Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE), o qual, ao lado do Fundo Estadual de Incentivo ao Turismo (FUNTURISMO) e do Fundo Estadual de Incentivo à Cultura (FUNCULTURAL), compõe o chamado Sistema Estadual de Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte (SEITEC), na esfera da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte[3].

Nota-se, assim, que, diante da origem dos recursos repassados (FUNDESPORTE), o Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte à época dos fatos, o Sr. Gilmar Knaesel, é quem detém a responsabilidade pela observância da legalidade da concessão de tais valores – de maneira antecipada – do erário à iniciativa privada.

Tal responsabilidade é bastante clara, diante da omissão do gestor na aprovação do pedido de repasse à Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul ao arrepio dos requisitos e procedimentos determinados na legislação aplicável.

Com efeito, de acordo com o que esta Procuradora já defendeu em inúmeras outras oportunidades, a exemplo do parecer no processo TCE n. 11/00363600, a Lei Complementar Estadual n. 381/2007, ao dispor sobre o modelo de gestão e a estrutura organizacional da Administração Pública Estadual, destacou em seu art. 7º as atribuições dos cargos de Secretário de Estado, ao passo que seus arts. 24 e 25 definem a responsabilidade do gestor pela supervisão na área de sua respectiva competência, o que é bastante elementar, aliás:

Art. 24. Os Secretários de Estado são responsáveis perante o Governador do Estado, pela supervisão dos serviços dos órgãos da Administração Direta e das entidades da Administração Indireta enquadrados em sua área de competência.

Parágrafo único. A supervisão a cargo dos Secretários de Estado é exercida por meio de orientação, coordenação, controle e avaliação das atividades dos órgãos subordinados ou vinculados e das entidades vinculadas ou supervisionadas.

Art. 25. A supervisão a cargo dos Secretários de Estado, com o apoio dos órgãos que compõem as estruturas de suas Secretarias, tem por objetivos, na área de sua respectiva competência:

I - assegurar a observância das normas constitucionais e infraconstitucionais;

II - promover a execução dos programas, projetos e ações de Governo de forma descentralizada, desconcentrada e intersetorializada;

III - coordenar as atividades das entidades vinculadas ou supervisionadas e harmonizar a sua atuação com a dos demais órgãos e entidades;

IV - avaliar o desempenho das entidades vinculadas ou supervisionadas;

V - fiscalizar a aplicação e a utilização de recursos orçamentários e financeiros, valores e bens públicos;

VI - acompanhar os custos globais dos programas, projetos e ações setoriais de Governo;

VII - encaminhar aos setores próprios da Secretaria de Estado da Fazenda os elementos necessários à prestação de contas do exercício financeiro; e

VIII - enviar ao Tribunal de Contas do Estado, sem prejuízo da fiscalização deste, informes relativos à administração financeira, patrimonial e de recursos humanos das entidades vinculadas ou supervisionadas.

Assim, o Secretário de Estado possui o dever legal de supervisionar e fiscalizar os serviços executados no órgão de sua competência, devendo para tanto ser responsabilizado no caso de irregularidades, como as observadas no presente caso.

Deve-se recordar, ainda, que cabe também ao gestor a responsabilização em face das chamadas culpa in eligendo e culpa in vigilando, significando esta a ausência de fiscalização das atividades de seus subordinados, ou dos bens e valores sujeitos a esses agentes, ao passo que aquela representa a responsabilidade atribuída a quem deu causa à má escolha de seu representante ou preposto.

A responsabilidade do gestor, assim, decorre de seu comportamento omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o que se tornou, no caso em comento, uma das causas determinantes das irregularidades assinaladas.

Acrescenta-se que toda a já referida legislação que define a competência desse Tribunal de Contas pode ser resumida, no presente caso, pelo teor do art. 1º, inciso, III, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, que assim dispõe:

Art. 1º Ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição do Estado e na forma estabelecida nesta Lei: [...]

III - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público do Estado e do Município, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.

Na condição de Secretário de Estado, o então gestor enquadrava-se exatamente no conceito de responsável “por dinheiros, bens e valores da administração direta e indireta”, consoante inclusive a seguinte norma da Resolução n. TC-06/2001 (Regimento Interno dessa Corte de Contas):

Art. 133. Em todas as etapas do processo de julgamento de contas, de apreciação de atos sujeitos a registro e de fiscalização de atos e contratos será assegurada aos responsáveis ou interessados ampla defesa.

§ 1º Para efeito do disposto no caput, considera-se:

a) responsável aquele que figure no processo em razão da utilização, arrecadação, guarda, gerenciamento ou administração de dinheiro, bens, e valores públicos, ou pelos quais o Estado ou o Município respondam, ou que, em nome destes assuma obrigações de natureza pecuniária, ou por ter dado causa a perda, extravio, ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário. (grifei)

Ademais, salienta-se que a execução de tarefas ordinárias da entidade configura delegação interna de competência e reflete, apenas, a desconcentração da atividade administrativa no âmbito da Secretaria de Estado, pois não seria viável, logicamente, que o detentor do cargo máximo de chefia executasse diretamente todas as atividades cotidianas. Nesse sentido, ainda que haja delegação interna para a execução de determinados serviços, o titular da Unidade Gestora não se exime da condição de responsável pelos atos praticados por seus subordinados, em face das atribuições de supervisão e controle que lhe são afetas.

Com efeito, para o Plenário do Tribunal de Contas da União, a discussão já está pacificada há bastante tempo, como evidencia o seguinte trecho da decisão do processo TC n. 009.202/2011-0, de 15/10/2014, julgado o qual, aliás, decidiu pela responsabilização solidária, com imputação de débito, do gestor, de particular (sócia da empresa) e da própria pessoa jurídica:

II. Ausência do nexo causal entre a conduta do Prefeito e os achados de auditoria

140. Em tópico separado, o advogado alega a ausência de nexo causal entre a conduta do defendente e os achados de auditoria, não cabendo imputar responsabilidade ao Prefeito porque esse cumpriu seu dever de fiscalização conforme estipulado no contrato de repasse, ou seja, o objeto foi devidamente executado; e não cabe ao dirigente máximo do município rever todos os atos administrativos praticados por seus subordinados, sob pena de inviabilizar a gestão como um todo. Assevera que trilhar o caminho em que se responsabiliza o gestor máximo indiscriminadamente por todas as ações praticadas pelos funcionários hierarquicamente inferiores, das quais não teve ciência ou não deveria ter, além de contrariar as modernas tendências de organização gerencial em que se privilegiam a descentralização de atividades e a segregação de funções, pode gerar situações desarrazoadas em que o representante maior do órgão seja convocado a responder por ato mais comezinho praticado por subordinados. Assim, a responsabilização das autoridades delegantes não comporta soluções monolíticas ou generalizantes, devendo ser analisado caso a caso.

141. No caso em tela, alega que seria absurdo instar o Prefeito a realizar trabalhos burocráticos como conferir numeração de páginas de processos administrativos ou verificar o modelo dos formulários dos balanços patrimoniais apresentados pelos pretensos licitantes a fim de verificar a ocorrência de fraude à licitação. Sintetiza afirmando que o Prefeito gere a municipalidade ou faz licitação.

II.1. Análise

142. Não cabe a alegação de ausência de nexo de causalidade entre a conduta do Prefeito e os achados de auditoria, especificamente aqueles relacionados a procedimentos licitatórios, tendo em vista a responsabilidade dos membros da comissão de licitação, pois a responsabilidade do Prefeito está caracterizada pelo fato daqueles que cometeram as irregularidades detectadas pela auditoria terem sido por ele designados para cumprir a função de membros de comissão de licitação.

143. Desta forma, além da culpa in eligendo, pela escolha dos subordinados que cometeram as irregularidades apontadas, o gestor, na administração dos recursos públicos federais, deveria atentar para os atos praticados pelos mencionados subordinados, pelo que lhe pesa, ainda, a culpa in vigilando.

144. Ressalta-se ainda que a delegação de competência não implica a delegação de responsabilidade, cabendo à autoridade delegante a fiscalização dos atos de seus subordinados diante da culpa in eligendo, consoante dispõe o art. 932, inciso III, do Código Civil. Sobre o assunto há farta jurisprudência no TCU.

145. Observa-se ainda que a responsabilidade do Prefeito é decorrente da administração de recursos públicos na forma da lei. Essa responsabilidade não se confunde com a responsabilidade civil e penal e está adstrita à competência constitucional do TCU, sem, porém, afastar a possibilidade de ações adicionais e independentes nas esferas do poder judiciário, em decorrência de responsabilidade de natureza jurídica diversa.

146. Além disso, o Sr. Humberto Ivar Araújo Coutinho homologou os certames licitatórios em questão (Concorrência 7/2006, peça 7, p. 5, e TP 13/2006, peça 11, p. 43), com isso participando da decisão da comissão licitatória. Pelos motivos expostos, não se acatam os argumentos apresentados pelo advogado do Prefeito. (grifei)

Resta evidente, assim, a possibilidade – ou, ainda, no caso, a necessidade – da responsabilização solidária do então Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte e dos beneficiários do repasse do recurso público pelas irregularidades encontradas na presente prestação de contas, tratando-se, enfim, tal imputação de ônus inerente ao exercício do cargo que ocupava o Sr. Gilmar Knaesel.

Salienta-se, ainda, que se trata o presente caso, em suma, da administração de verbas públicas, o que por si só revela sua importância. Quando se trata de verba pública, não se pode caracterizar uma irregularidade como mera desatenção à formalidade – no trato do erário o formalismo não deve ser desvalorizado. O órgão controlador que releva equívocos formais da atuação de gestores públicos, além de afrontar a equidade e a própria justiça, abre espaço para a malversação do dinheiro público – exatamente o que uma Corte de Contas deve coibir.

Mesmo assim, não se desconhece a existência de entendimentos contrários, como o proferido pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall ou até mesmo neste Órgão Ministerial, como o emitido às fls. 414-420 dos autos de origem, os quais, todavia, se acolhidos na prática, poderiam resultar em esvaziamento da competência constitucional dos Tribunais de Contas em sua função de defesa do erário. O que se observa em tais situações é uma tentativa de afastar a responsabilidade do Secretário de Estado relativizando a imputação por suposta ausência de dolo, culpa ou má-fé, entendimento com o qual esta Procuradora não pode compactuar, em razão de tudo o que já fora aqui exposto.

Ademais, o próprio enquadramento da irregularidade, questionado pelo Conselheiro Luiz Eduardo Cherem, será vastamente fundamentado ao longo deste parecer, apontando-se os atos de gestão ilegítimos ou antieconômicos injustificados que ensejaram o dano ao erário proveniente do repasse de recursos para a execução do projeto em questão.

Portanto, entendo que os argumentos apresentados com o intuito de afastar a responsabilidade solidária atribuída ao Sr. Gilmar Knaesel não devem ser acolhidos.

2.2. Multa no valor de R$ 2.000,00, em face da ausência do parecer técnico da Diretoria do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina (PDIL), e da ausência de parecer do Conselho Estadual de Desportos

Relativamente à restrição apontada no item 3.1, alínea “b”, da Decisão Monocrática recorrida – “ausência do parecer do Conselho Estadual de Desportos” –, o recorrente argumentou (fl. 24) que somente em 25/01/2008, por meio da Lei Estadual n. 14.367/08, teriam sido definidas a estrutura e forma de atuação dos Conselhos Estaduais do Turismo, da Cultura e dos Desportos.

Asseriu (fl. 25) que a decisão do Comitê Gestor seguia as normas vigentes, sendo que na maioria das vezes era necessário decidir discricionariamente. Nesse sentido, colacionou trecho doutrinário da lavra de Marçal Justen Filho.

Mencionou também (fls. 25-26) a composição do Comitê Gestor, sua forma de reuniões e as suas funções antes da alteração das estruturas e forma de atuação dos Conselhos.

Em que pesem tais argumentos, as condições estruturais e de pessoal da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte não podem ser utilizadas pelo recorrente como subterfúgio para a prática de atos em desacordo com a legislação, notadamente pela ausência nos autos de qualquer comprovação nesse sentido e de esforços que teriam sido envidados pelo responsável para corrigir a situação.

Em seguida, atribuiu (fl. 26) aos Conselhos Estaduais a responsabilidade pela gestão do SEITEC, apontando a sua composição e sua sistemática de trabalho.

A tentativa de transferência de sua responsabilidade a terceiros (fl. 26), todavia, não prospera, haja vista que o recorrente, na qualidade de Secretário de Estado, é plenamente responsável pelo dever de fiscalização inerente às suas funções.

Sob esta ótica, da qual se utiliza o presente Parecer para opinar pelo não acolhimento das razões do recorrente, examine-se a explanação do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a classificação dos agentes públicos[4]:

Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes os que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores.

O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade. (grifei)

Ainda neste sentido, o mesmo autor, ao debater a questão da responsabilidade do Estado e quais os sujeitos cuja atuação pode comprometer o Estado, ensina[5]:

Quem são as pessoas suscetíveis de serem consideradas agentes públicos, cujos comportamentos, portanto, ensejam engajamento da responsabilidade do Estado? São todas aquelas que – em qualquer nível de escalão – tomam decisões ou realizam atividades da alçada do Estado, prepostas que estão ao desempenho de um mister público (jurídico ou material), isto é, havido pelo Estado como pertinente a si próprio.

Nesta qualidade ingressam desde as mais altas autoridades até os mais modestos trabalhadores que atuam pelo aparelho estatal. [...]

Indicadas as pessoas cuja conduta compromete a responsabilidade do Estado, cumpre verificar quando esta condição subjetiva tem o relevo necessário para desencadear tal comprometimento. Sendo certo que a pessoa também atua em situação totalmente alheia à qualidade de agente, importa fixar o que se reputará necessário para configurar atuação (ou omissão indevida) imputável à qualidade jurídica de “agente do Estado”. (grifei)

Conforme a doutrina colacionada acima, o Secretário se enquadra na qualidade de agente político, cujos atos e omissões repercutem e refletem diretamente nos destinos da sociedade. Nesse sentido, tem ele responsabilidade tanto direta quanto indiretamente sobre os atos de sua Administração.

No que tange à irregularidade baseada na ausência de pareceres do Plano Estadual da Cultura, Turismo e do Desporto, o recorrente afirma (fl. 27) que não é possível deduzir, da leitura literal do art. 6º da Lei Estadual n. 13.792/06, a necessidade de parecer ou manifestação da diretoria do PDIL para que o Comitê Gestor do FUNCULTURAL entenda que o projeto seja ou não adequado ao programa.

Atribuiu o fato ao desconhecimento da instituição do PDIL por parte da equipe de auditoria, transcrevendo o art. 8º da lei referida (fls. 27-28) e afirmando, em seguida, que o projeto se enquadra em um dos subprogramas nela relacionados.

Além disso, argumentou (fls. 28-29) que em função da abrangência e generalidade da lei em comento, teria sido editado o Decreto Estadual n. 2.080/09, a fim de regulamentá-la, trazendo em seu texto detalhes acerca das atividades que constituem o PDIL, dentre as quais o projeto analisado se enquadraria.

Ora, note-se que o responsável confunde a origem dos recursos analisados no processo que originou o presente recurso, tendo-se em vista tratar-se de concessão de recursos do FUNDESPORTE e não do FUNCULTURAL. Feita essa ressalva, perceba-se que a emissão de parecer de enquadramento do projeto ao PDIL é condição sine qua non para sua aprovação, pois a realização de detalhada análise do mérito dos projetos apresentados é a garantia de que estão sendo atendidas as condições da correta concessão dos recursos do FUNDESPORTE. Não há que se falar, portanto, no enquadramento/aprovação tácito sustentado pelo recorrente.

Assim, em função da ausência de argumentos fáticos e probatórios de parte do recorrente, entende-se pela manutenção da penalidade de multa aplicada, conforme disposto na Decisão Monocrática recorrida.

2.3. Multa no valor de R$ 1.200,00, em razão da ausência do Contrato/Termo de Apoio Financeiro na prestação de contas

No que diz respeito ao mérito da restrição apontada pelo item 3.2 da Decisão Monocrática recorrida, a qual ensejou a aplicação de penalidade de multa, o recorrente afirmou (fls. 31-32) que o entendimento dos motivos de tais falhas depende do conhecimento da história da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte.

Relatou a gênese do órgão, apontando que fora convidado para ocupar o cargo de Secretário, sem a possibilidade de admissão de servidores concursados; as dificuldades enfrentadas, tais como requisição de servidores efetivos de outras repartições para o exercício das atividades; e a criação de cargos comissionados e terceirizados.

Salientou que os referidos trabalhadores contratados não detinham as qualificações necessárias para o regular funcionamento da Secretaria. Em seguida, referiu-se à criação dos fundos de desenvolvimento do turismo (FUNDETUR), da cultura (FUNCULTURAL) e dos esportes (FUNDESPORTE), integrantes do SEITEC, por meio da Lei n. 3.115/05.

Reportou (fls. 32-33) que em função do incremento de recursos geridos e do grande número de projetos cadastrados, a estrutura física tornou-se óbice ao desenvolvimento das funções, relatando a mudança da estrutura física do órgão.

Ao final, alegou (fl. 33) que somente em 2010 a Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte (SOL) teria conseguido contratar servidores especializados por meio de concurso público. Concluiu argumentando que tal relato histórico serviria para “dar uma ideia das condições estruturais, técnicas e de pessoal que a SOL dispunha, quando da análise e liberação do projeto em questão”, em função do que não haveria “as mínimas condições para que fossem seguidos os trâmites estabelecidos pela legislação pertinente”.

Como se pode observar, o recorrente se limitou a relatar o histórico do órgão e suas dificuldades estruturais, não apresentando argumentos específicos quanto à restrição em si.

Logo, em razão da ausência de argumentos fáticos e probatórios de parte do recorrente, entende-se pela manutenção da penalidade de multa aplicada, conforme disposto na Decisão Monocrática recorrida.

2.4. Sanções impostas pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina

O recorrente levantou, em item específico, questionamento acerca das sanções impostas pela Corte de Contas catarinense.

Iniciou (fl. 29) discorrendo acerca da função orientadora exercida pelos Tribunais de Contas, apontando em seguida que as sanções pecuniárias retiram seu fundamento de validade diretamente das Constituições Federal e Estadual, e, reflexamente, dos arts. 67, 68 e 70 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

Adiante (fl. 30), o recorrente argumentou que o Tribunal de Contas “mesmo não levando em conta a discricionariedade do agente público” lançaria mão desse poder (discricionário) ao fixar os valores de multas aplicadas. Nesse sentido, afirmou não haver um critério rígido para definição do quantum a ser pago pelo agente público penalizado.

Colacionou excerto doutrinário relativo ao poder discricionário e trouxe (fl. 31) tabela na qual relacionou processos nos quais teria sido apontado como responsável nos mesmos moldes do processo que originou este expediente recursal que ora se analisa.

Em seguida, buscou eximir-se da responsabilidade quanto ao pagamento das penalidades de multa arvorando-se em voto proferido pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior no processo PCR n. 08/00460294 (fls. 33-38), no qual buscou ressaltar “a constância das ocorrências fáticas e, consequentemente, das sanções correspondentes aplicadas” escorando-se no argumento baseado na proporcionalidade das sanções aplicadas em razão de “fatos idênticos” aos mesmos responsáveis no curso do mesmo exercício.

Tal tese centrou-se na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem em uma relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal.

O requerente traçou, ainda, comentários acerca da aplicação de sanções e multas conforme a normatização e a jurisprudência (fls. 38-40).

Afirmou (fls. 40-41), a título de considerações finais, que, ao ser informado sobre a ocorrência de irregularidades nos processos, não faltou com a responsabilidade de tomar as providências administrativas cabíveis. Atribuiu, assim, a sua inércia à ausência de comunicação por parte dos setores responsáveis em fazê-la.

Trouxe também a discussão (fls. 41-43) acerca da natureza das sanções aplicáveis por parte do Tribunal de Contas de Santa Catarina e questões relativas ao incidente de uniformização de jurisprudência no âmbito dos tribunais.

Colacionou trechos do Regimento Interno dessa Corte de Contas que demonstrariam o caráter discricionário da aplicação de sanção administrativa pelo Tribunal de Contas, alegando que não poderia ser penalizado em razão da falta de dano ao erário, dolo, culpa ou má-fé em seus atos.

Pois bem.

Inicialmente, no que diz respeito ao Relatório e Voto proferidos pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior nos autos do processo PCR n. 08/00460294, o relatório técnico apontou (fls. 57v) que na ocasião do julgamento, tal voto divergente sequer foi colocado em votação, tendo prevalecido o voto apresentado pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall. Contudo, tal posicionamento pela adoção da tese da continuidade das infrações administrativas teria sido posteriormente acatado, quando da deliberação referente ao processo REC n. 14/00274831 (fl. 58).

Conforme já referido, o Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior laborou tese fundada na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal, notadamente com a adoção da regra que trata dos crimes continuados para as multas aplicadas ao requerente, que exerceu a gestão da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de 01/07/2007 a 31/03/2010.

A consequência prática da adoção dessa tese seria o cancelamento de diversas multas já aplicadas em diversos processos cujas decisões acolheram a imputação de irregularidades ao requerente, para que se aplicasse somente uma multa passível de majoração/agravamento.

Trata-se de medida com a qual este órgão ministerial discorda. Ora, a tese defendida pelo ilustre Conselheiro cinge-se a aplicar, indiscriminadamente, institutos do Direito Penal a circunstâncias fáticas albergadas pela sistemática do Direito Administrativo. Diversas são as razões que permitem discordar desse posicionamento.

Inicialmente, é importante discorrer acerca da finalidade da sanção com sua natureza e incidência. Explica-se: em que pese o fato de, ontologicamente, as sanções civis, penais e administrativas estarem voltadas a um mesmo fim precípuo, diversas são as suas naturezas e a maneira pela qual incidem.

Conforme ensina o Juiz Federal Heraldo Garcia Vitta[6], discorrendo acerca do tema:

A doutrina enfatiza, normalmente, a identidade ontológica dos ilícitos; com isso significando não haver distinção substancial entre os ilícitos penal e administrativo; mas se esquece da identidade ontológica das sanções.

Pode-se alegar que a sanção penal teria por escopo punir os infratores, e, assim, seria diferente da finalidade da sanção administrativa, pois esta visaria a desestimular os prováveis infratores.

Contudo, esse modo de pensar não tem consistência; toda sanção tem por finalidade desestimular as pessoas a cometerem ilícitos. A punição não é o fim da pena; é efeito, apenas, do ato impositivo desta, ao sujeito. Toda sanção acarreta a punição do infrator, mas o fim dela não é este, é o de evitar condutas contrárias ao Direito. Isso decorre do regime democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do respeito aos valores fundamentais da sociedade.

Embora não concordemos plenamente com os argumentos expendidos quanto à finalidade das penas, tal qual expõe Nelson Hungria, convém recordarmos suas palavras, com as quais esclarece a identidade ontológica delas: “Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito, à semelhança das penas criminais (...)”.

As sanções penais e administrativas são iguais, homogêneas, e eventuais divergências de gravidade não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais. Apesar disso, mencionam-se sanção penal e sanção administrativa, que são tipos ou espécies delas; o critério adotado para distingui-las, como visto, é o da autoridade competente para impô-las, segundo o ordenamento jurídico (critério formal). (grifei)

Note-se, portanto, que apesar de direcionadas a uma mesma finalidade última, as sanções penais e administrativas diferem essencialmente em função da autoridade competente para sua imposição e o ordenamento jurídico do qual extraem seu fundamento de validade.

Nesse sentido, imprescindível que se tenha em mente que o Tribunal se orienta pelas prescrições contidas na Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica) e na Resolução n. TC-06/2001 (Regimento Interno) para examinar a ocorrência de irregularidades e aplicar as respectivas penalidades.

Atente-se, igualmente, para o fato de que o âmbito de trabalho é o administrativo. Por outro lado, o Código Penal traz em seu corpo regramento específico para aplicação de penas de acordo com as respectivas cominações legais, observando toda uma estrutura de regras a serem adotadas conforme cada tipo penal específico e segundo o sistema trifásico de estabelecimento da pena.

É exatamente neste contexto formal que se cinge a discussão: haveria possibilidade de aplicação de determinada regra específica do Código Penal para, lançando-se mão da analogia, orientar a aplicação de multas em face de irregularidade no âmbito desta Corte de Contas? Poderia se cogitar da aplicação das especificidades do concurso de crimes (continuidade delitiva) e do princípio do non bis in idem?

Entende-se que não, pois a mera transposição de tais caracteres ínsitos à seara penal para o presente contexto fático administrativo significaria ruptura divorciada da realidade.

Não se está aqui a pregar um repúdio absoluto à tese da existência de zonas de contato entre as esferas administrativa e penal, mas sim a defender a impossibilidade de que ambas se imiscuam pelo mero alvedrio do intérprete, sem que haja substrato fático-normativo ou jurisprudencial hábil a permitir a ocorrência de tais pontos de contato.

Sobre tal entendimento, necessário que se observem os comentários traçados por Fábio Medina Osório[7], mesmo autor utilizado pelo nobre Conselheiro para construção de sua tese:

Também no Direito Administrativo Sancionatório pode ocorrer continuidade de infrações, uma continuação de fatos ilícitos que recomenda cautelas na imposição cumulativa de sanções. Aqui, na prática, há uma série de fatos autônomos. Todavia, por um princípio humanitário de política repressiva, não se tem descurado do tratamento mais benigno, ou pelo menos não tão severo, que têm merecido tais hipóteses de infrações. É certo que, no sistema pena, existe previsão expressa dessa espécie de tratamento mais favorável ao agente. É comum, até rotineiro, constatar a omissão das legislações de Direito Administrativo Sancionador, desde as que se aplicam diretamente no interior do sistema judicial, até as que alcançam as instâncias administrativas em sentido estrito nos entes federados.

É preocupante, certamente, o silêncio sistemático e nocivo do Direito Administrativo Sancionador pátrio, como regra geral, no trato dessa matéria, sendo forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase totalidade das legislações administrativas repressoras no campo federal, nos Estados e Municípios, embora não se possa generalizar a esse respeito, até mesmo por ausência de pesquisas de campo nesse sentido. Pela percepção empírica que se tem, calcada em amostragens significativas oriundas das chamadas instituições de controle, raramente se menciona algo positivo a respeito da continuidade de infrações, como se esta figura inexistisse no terreno disciplinar ou administrativo lato sensu. Uma falha legislativa alastrada em nosso ordenamento sancionador, sem dúvida. (grifei)

Como se vê, no excerto colacionado o autor destaca exatamente o caráter de excepcionalidade da questão da continuidade delitiva no âmbito administrativo, pontuando a omissão legislativa a respeito, reforçando a tese exposta até aqui. Não se desconhece que exista intenção sincera por parte daqueles que esposam a defesa do uso da analogia no caso, mas o fato é que esta não encontra ressonância legal e, quiçá, jurisprudencial.

Imperioso que se opere uma breve análise do instituto da continuidade delitiva.

O instituto do crime continuado está previsto no art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:

Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

De acordo com a obra do Promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches Cunha[8]:

Estampado no art. 71 do CP, verifica-se a continuidade delitiva (ou crime continuado) quando o sujeito, mediante pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie, guardando entre si um elo de continuidade (em especial, as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução).

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli denominam esta espécie de concurso de “concurso material atenuado” ou “falso crime continuado”, alegando que “onticamente, não é um verdadeiro crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos”. [...]

Nota-se, portanto, que o instituto está baseado em razões de política criminal. O juiz, ao invés de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em continuidade, por ficção jurídica, para fins da pena, considera como se um só crime foi praticado pelo agente, devendo ter a sua reprimenda majorada. (grifei)

Por sua vez, o Procurador de Justiça e penalista Rogério Greco[9], ao comentar sobre as origens do instituto, traz a seguinte lição:

Afirma Bettiol que “a figura do crime continuado não é de data recente. As suas origens ‘políticas’ acham-se sem dúvida no favor rei que impeliu os juristas da Idade Média a considerar como furto único a pluralidade de furtos, para evitar as consequências draconianas que de modo diverso deveriam ter lugar: a pena de morte ao autor de três furtos, mesmo que de leve importância. Os nossos práticos insistiam particularmente na contextualidade cronológica da prática dos crimes, para considerá-los como crime único, se bem que houvesse também quem se preocupasse em encontrar a unidade do crime no uno impetu com o qual os crimes teriam sido realizados”. (grifei)

Nesse mesmo sentido, referenciando às origens históricas do crime continuado, o magistrado e professor Guilherme de Souza Nucci[10]:

[...] quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição de que os subsequentes são uma continuação  do primeiro, formando o crime continuado. É a forma mais polêmica de concursos de crimes, proporcionando inúmeras divergências, desde a natureza jurídica até a conceituação de cada um dos requisitos que o compõem. Narram os penalistas que o crime continuado teve sua origem entre os anos de 1500 e 1600, em teoria elaborada pelos práticos italianos, dos quais ressaltam-se os trabalhos de Prospero Farinacio e Julio Claro. Naquela época, a lei era por demais severa, impondo a aplicação da pena de morte quando houvesse a prática do terceiro furto pelo agente (Potest pro tribos furtis quamvis minimis poena imponi). O tratamento era, sem dúvida, cruel, mormente numa época de tanta fome e desolação na Europa. Por isso, escreveu Claro: “Diz-se que o furto é único, ainda que se cometam vários em um dia ou em uma noite, em uma casa ou em várias. Do mesmo modo se o ladrão confessou ter cometido vários furtos no mesmo lugar e em momentos distintos, interpretando-se tal confissão favoravelmente ao agente, isto é, que suas ações, em momentos distintos, continuadamente, são um só furto e não vários...” (Carlos Fontán Balestra, Tratado de derecho penal, t. III, p. 60). E, ainda, Farinacio: “Tampouco existem vários furtos senão um só, quando alguém roubar de um só lugar e em momentos diversos, mas continuada e sucessivamente, uma ou mais coisas: ... não se pode dizer ‘várias vezes’ se os roubos não se derem em espécie e tempo distintos. O mesmo se pode dizer daquele que, em uma só noite e continuadamente, comete diversos roubos, em lugares distintos, ainda que de diversos objetos... a esse ladrão não se lhe pode enforcar, como se lhe enforcaria se tivesse cometido três furtos em momentos distintos e não continuados” (Balestra, ob. Cit., p. 61). (grifei)

Dos excertos colacionados extrai-se que o instituto tem suas raízes num contexto histórico em que sua gênese e aplicação se fizeram necessárias no intuito de temperamento das penas aplicadas, eis que se corria o risco de penalização excessiva e alheia a quaisquer critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Era necessário proteger-se o acusado em face da sociedade e do ordenamento.

Hodiernamente, configura-se como elemento de política criminal, cuja natureza de ficção jurídica[11] orienta-se no sentido de beneficiar o agente para que não seja sobremaneira penalizado pelos diversos núcleos do tipo por ele praticados, considerando-os como interligados por um mesmo fio condutor que costura elementos como os crimes propriamente ditos, as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

Tratamento divergente merece o presente caso dos autos, uma vez que de natureza diversa daquela que serve de substrato à seara penal. Isso porque aqui as condutas do requerente ensejam a reprovabilidade ínsita aos crimes que ferem o erário e, por tabela, a sociedade.

No caso da maioria dos tipos penais previstos no Código Penal, os objetos materiais e jurídicos constituem uma miríade de atingidos, ao passo que naquelas irregularidades abrangidas pela competência das Cortes de Contas, tais objetos são coincidentes, resumindo-se na figura do erário.

Assim, entende-se impossível a aplicação analógica do instituto do crime continuado, sobretudo em função de seu objetivo primordial, pois que não se observa imperiosa a preservação ou garantia de o requerente não será excessivamente penalizado. No caso, se do cotejamento dos objetos jurídicos e materiais atingidos fosse aplicável algum brocardo latino notoriamente penalístico, seria certamente o pro societate e não o pro reo, eis que as irregularidades cabalmente demonstradas repercutem direta e indiretamente nos interesses da sociedade, muito mais do que as multas afetam qualquer subjetividade do requerente enquanto responsável apenado.

Ademais, não bastassem os argumentos de cunho interpretativo, normativo e histórico-filosófico até aqui perfilados, há que se destacar também o fato de que os requisitos do crime continuado não poderiam ser observados e respeitados caso houvesse a adoção do instituto no presente caso. De acordo com a doutrina[12], o crime continuado apresenta os seguintes requisitos:

(A)   Pluralidade de condutas: mais de uma ação ou omissão que implique em vários crimes;

(B)    Pluralidade de crimes da mesma espécie: aproxima-se do concurso material ao exigir condutas provocando vários crimes. Diferencia-se, no entanto, ao restringir sua aplicação a crimes da mesma espécie.

(C)   Elo de continuidade: é também requisito do crime continuado o elo de continuidade entre as condutas. Esse elo se revela através:

(C.1) Das mesmas condições de tempo: a lei não anuncia qual o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito da cadeia, alertando a jurisprudência que não pode suplantar 30 (trinta) dias.

(C.2) Das mesmas condições de lugar: para a jurisprudência, haverá as mesmas condições de lugar quando os crimes são praticados na mesma comarca (ou em comarcas vizinhas).

(C.3) Da mesma maneira de execução (modus operandi): como bem alerta Bitencourt, a lei exige semelhança e não identidade. A semelhança na maneira de execução se traduz no modus operandi de realizar a conduta delitiva maneira de execução é o modo, a forma, o estilo de praticar o crime, que, na verdade, é apenas mais um dos requisitos objetivos da continuação criminosa.

(C.4) Outras circunstâncias semelhantes: abrangendo quaisquer outras circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade. (grifos do original)

Nesse sentido, destaque-se que o item C.1 do trecho acima aponta que o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito na cadeia fática é de 30 dias.

Ora, levando-se em consideração que o requerente vem sendo recorrentemente penalizado em função de irregularidades constatadas durante todo o tempo em que ocupou a Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Cultura de Santa Catarina (período que vai de 01/07/2007 a 31/03/2010), conclui-se que o requisito temporal restaria desatendido, caso fosse aplicada a continuidade delitiva, descaracterizando-a, portanto. Note-se que quaisquer pontos de referência dentro do período referido extrapolariam os 30 dias adotados pacificamente pela jurisprudência[13].

Há, ainda, outro requisito apontado por boa parte da doutrina e da jurisprudência para o reconhecimento da configuração da continuidade delitiva: que a atuação do agente se dê mediante unidade de desígnios, isto é, mediante um só plano delituoso. Esse requisito traduz a adoção da teoria objetivo-subjetiva, assim explicada por Rogério Greco[14]:

A última teoria, que possui natureza híbrida, exige tanto as condições objetivas como o indispensável dado subjetivo, ou seja, deverão ser consideradas não só as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, como também a unidade de desígnio ou relação de contexto entre as ações criminosas.

Acreditamos que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz. (grifei)

Trata-se de teoria adotada pela jurisprudência tanto do STF[15] quando do STJ[16].

Mais uma vez, tem-se retratada a impossibilidade de aplicação analógica da continuidade ao presente caso, uma vez que despiciendo o exame da unidade de desígnios nas condutas por parte do requerente, uma vez que, se o liame subjetivo por muitas das vezes é de difícil comprovação caso a caso, justamente ensejando a aplicabilidade das teorias da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, que dirá em uma cadeia sucessiva de atos.

Não obstante, cada conduta é una e destacada (possibilitando, eventualmente, a aplicação analógica do concurso material de crimes, consoante o posicionamento reiterado do Tribunal), ensejando seus respectivos exame e processo, inclusive representando afastamento da alegação de bis in idem, a ser oportunamente analisado.

Quanto ao argumento apresentado pela Área Técnica, no sentido de que o art. 72 trataria as penas de multa diferentemente das restritivas de liberdade em delito continuado ou em concurso material (fl. 59v), fundamentando assim parte de sua discordância com a aplicabilidade da continuidade delitiva, discorda-se parcialmente.

Em princípio, compartilha-se a tese central da inaplicabilidade da continuidade delitiva; contudo, cabe ressaltar meramente a título informativo que, em que pese a previsão do art. 72 do Código Penal, doutrina e jurisprudência vislumbram tratamento específico das penalidades de multa no âmbito da continuidade delitiva. Veja-se[17]:

O art. 72 do CP avisa: “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente”.

Nota-se que a pena de multa não obedece às regras diferenciadas do tratamento dispensado ao concurso de crimes. Para a fixação da multa, portanto, só se aplica uma regra: aplicação distinta e integral.

Não se descarta doutrina lecionando que essa regra não serve para o crime continuado. Para fins de aplicação de pena, no direito brasileiro, o crime continuado, por ficção jurídica, é considerado crime único. Logo, aplica-se a pena de multa uma única vez.

Nesse sentido vem decidindo o STJ: “’A pena de multa, aplicada no crime continuado, escapa à norma contida no art. 72 do Código Penal’ (Resp nº 68.186/DF, Relator Ministro Assis Toledo, in DJ 18/12/1995). As penas de multa, no caso de concurso de crimes, material e formal, aplicam-se cumulativamente, diversamente do que ocorre com o crime continuado, induvidoso concurso material de crimes gravados pela menor culpabilidade do agente, mas que é tratado como crime único pela lei penal vigente, como resulta da simples letra dos artigos 71 e 72 do Código Penal, à luz dos artigos 69 e 70 do mesmo diploma legal”.

Apesar dessa previsão, entende-se inócuo seu conteúdo ao presente exame, eis que já fartamente comprovada a impossibilidade da incidência da tese da continuidade delitiva sobre o objeto destes autos.

Ressalte-se que o argumento da Área Técnica seria plenamente cabível aqui levando-se em conta, num exercício hipotético, se no presente caso se admitisse o concurso material de crimes (o único que se afigura admissível, diga-se de passagem), uma vez que aí sim aplicável o previsto no art. 72, incidindo as penas de multa distinta e integralmente, cumulando-se.

No que diz respeito ao argumento de que a aplicação de penalidades de multa em função de irregularidades apontadas nos processos envolvendo o requerente implicaria em violação ao princípio do non bis in idem, entende-se igualmente não assistir razão ao requerente e ao ilustre Conselheiro.

Acerca desse princípio, Rogério Sanches Cunha[18] ensina o seguinte:

Este princípio não está previsto expressamente na Constituição, mas sim no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional:

“Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição em contrário do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por actos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2 – Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

Entende-se, majoritariamente, que o princípio em estudo não é absoluto. O próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, prevê a possibilidade de julgamento por mesmo fato nos casos dos crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desde que o primeiro tribunal a realizar o julgamento tenha tentado subtrair a competência do Tribunal Internacional ou não tenha havido a imparcialidade necessária à ação da justiça. Entre nós, a exceção ao princípio do non bis in idem se encontra no artigo 8º, que autoriza novo julgamento e condenação pelo mesmo fato, nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira (vide item “eficácia da lei penal no espaço”).

O princípio do non bis in idem tem três significados:

(A)   Processual: ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo crime;

(B)    Material: ninguém pode ser condenado pela segunda vez em razão do mesmo fato;

(C)   Execucional: ninguém pode ser executado duas vezes por condenações relacionadas ao mesmo fato. (grifos do original)

De outra volta, pela explicação do já citado jurista Fábio Osório Medina[19],

Intimamente ligado aos princípios da legalidade e da tipicidade, o princípio da proibição do bis in idem, cujas raízes remontam ao devido processo legal anglo-saxônico, também atua em matéria de Direito Administrativo Sancionador, possuindo um largo alcance teórico e restritos alcance e significados práticos. Tal princípio, em nosso sistema, está constitucionalmente conectado às garantias de legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88. Suas consequências e desdobramentos, no entanto, são bastante tímidos na jurisprudência e na doutrina brasileiras, deixando lacunas consideráveis ao crivo dos juristas. Trata-se de um tema que frequente, curiosamente, mais o imaginário do inconsciente do que a ostensividade da consciência jurídica nacional. Sabe-se que se trata de um princípio ligado à justiça e a outros valores não menos nobres, mas a construção de seus significados e significantes passa por uma compreensão acerca das estruturas de gestão das normas sancionadoras.  A teoria não pode dissociar-se da realidade, e assim ocorre com a jurisprudência. Por isso, um novo patamar de compreensão para o non bis in idem pressupõe, de um lado, a descrição e o diagnóstico do panorama vigente e, de outro, a proposição de novas alternativas hermenêuticas, ainda que desde um ponto de vista geral.

Insistimos, de qualquer sorte, no seguinte ponto: pensar o non bis in idem é, acima de tudo, refletir sobre as delicadas relações entre as esferas penal e administrativa, problema que não é novidade no Brasil ou no exterior. [...]

A ideia básica do non bis in idem é que ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato, eis uma concepção praticamente universal, que desde as origens algo-saxônicas encontra-se presente nos ordenamentos democráticos (v.g. art. 8º, n. 4, do Pacto de San José da Costa Rica). (grifei)

À vista dos ensinamentos colacionados, torna-se óbvia a inocorrência de violação ao referido princípio, uma vez que o requerente vem sendo sucessivamente considerado responsável por irregularidades passíveis de penalidade de multa em processos distintos oriundos de condutas distintas, nos quais foram amplamente respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Note-se que, tangencialmente aos três significados do princípio apontados acima, o presente caso não se enquadra em nenhum. Isso porque, processualmente, o requerente foi processado duas ou mais vezes por condutas diversas; materialmente, vem sendo condenado em função de fatos distintos; e no plano execucional, poderia ser executado em virtude de condenações relacionadas a fatos múltiplos.

Neste mesmo sentido se posicionou a Área Técnica, argumentando que (fls. 59v-60v):

A ofensa ao princípio do “non bis in idem”, como se sabe, caracteriza-se pela duplicidade de penalização aplicada ao indivíduo, em razão dos mesmos fatos, o que não se verifica nas situações objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas em relação às prestações de contas referentes aos fundos do SEITEC. [...]

Embora os atos praticados irregularmente pelo Gestor sejam da mesma ordem, tais ações são praticadas em fatos administrativos distintos. [...]

Deste modo, o ato administrativo típico é sempre manifestação volitiva da Administração, no desempenho de suas funções de Poder Público, visando a produzir algum efeito jurídico, o que o distingue do fato administrativo, que, em si, é atividade pública material, desprovida de conteúdo de direito.

Como fato administrativo devemos entender toda realização material da Administração em cumprimento de alguma decisão administrativa, tal como a concessão de recursos do Fundo do SEITEC, que se constitui, como materialização da vontade administrativa, e só reflexamente interessa ao Direito, em razão das consequências jurídicas que dele possam advir para a Administração e para os administrados.

Portanto, não há que se falar em ofensa ao princípio do “non bis in idem”, em razão de o Tribunal de Contas julgar e penalizar os atos jurídicos praticados pelo Gestor dos Fundos do SEITEC, em processos que tem como objeto fatos administrativos distintos, muito embora, a irregularidade dos atos que dão origem as penalizações sejam da mesma natureza e tenham a mesma identidade.

Ademais, esclareça-se que o Doutrinador Fábio Medina Osório, na sua obra, empregada pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior para sustentar a tese ora rebatida, menciona a questão do princípio do “non bis in idem” interprocessos não exatamente na mesma instância de julgamento, mas nas situações de independência das instâncias de julgamento (Penal, Civil e Administrativo), a qual se submete o ato administrativo.

Considerando os argumentos postos, bem como os excertos doutrinários e as jurisprudências que lhes serviram de suporte técnico-jurídico, entende-se pela manutenção da linha de posicionamento que vinha sendo adotada majoritariamente pelo Tribunal de Contas, em prejuízo da tese da continuidade delitiva.

Relativamente à não uniformização dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas características, também não assiste a razão ao recorrente.

Conforme já exaustivamente delineado ao longo deste Parecer, o requerente vem sendo sucessivamente responsabilizado por irregularidades em processos específicos, que abrangem cada conduta de acordo com suas respectivas peculiaridades, ponderadas de acordo com os critérios de convicção de cada Relator e do Plenário, dentro dos limites legais insculpidos no art. 70, inciso II, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

A posição aqui adotada coaduna-se com aquela já externalizada pela Área Técnica (fls. 62-63v):

No que se refere ao pedido de uniformização de jurisprudência, não procede o recurso proposto.

Cada processo possui suas peculiaridades e é decidido com base nas especificidades do caso concreto, além do que, especificamente, em relação aos paradigmas mencionados pelo Recorrente não trata das mesmas questões que deram razão a multa aplicada no presente processo.

Faz-se necessário trazer à baila especificamente o incidente de Uniformização de Jurisprudência previsto no Código de Processo Civil em seus artigos 476 a 479.

Os autores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, em seu Manual de Processo de Conhecimento, dizem o seguinte a respeito da Uniformização de Jurisprudência:

A divergência externa há de ser verificada entre a orientação que se esboça no julgamento do caso concreto e outra anteriormente dada por outro órgão do tribunal, não sendo viável admitir-se o incidente apenas porque existem, no tribunal, em diversos órgãos, orientações divergentes sobre a mesma questão jurídica. (Grifou-se)

A divergência de entendimento sobre a mesma questão jurídica não é capaz de gerar o incidente de uniformização de jurisprudência e não se enquadra no artigo 301, IV do Código de Processo Civil, que é o caso dos autos.

Assim, apesar de o Tribunal Pleno ter deixado de aplicar a multa em situações semelhantes, tal fato não tem o condão de sanar as irregularidades apontadas no Acórdão recorrido, pois este Tribunal tem a competência para rever os seus entendimentos.

Da mesma forma, tampouco procede a alegação do Recorrente de que não agiu com dolo ou má-fé. Convém lembrar que, diferentemente do direito penal, nos processos referentes à comprovação de utilização regular de recursos públicos não cabe a aplicação do princípio do in dubio pro reo, no qual a boa-fé é presumida.

Isso porque, neste tipo de processo prevalece o princípio da supremacia do interesse público, fazendo com que se tenha a inversão do ônus da prova, cabendo, pois, ao gestor público comprovar a boa-fé na gestão dos valores públicos sob sua responsabilidade.

Nessa linha, é importante salientar que no uso do dinheiro público, não basta ao responsável estar imbuído de boa-fé, exige-se, também, do gestor, a comprovação de ter agido nos termos da lei.

Em sendo assim, considerando que os argumentos apresentados pelo Recorrente, em suas razões de recurso, não têm o condão de alterar a Decisão Recorrida, manifesta-se pela manutenção do decisum na sua íntegra.

Ainda, não procede a tentativa de eximir-se da responsabilidade sob o argumento de que não foi devidamente comunicado pelos setores responsáveis, pois não é crível que o ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte alegue a falta de informação a respeito da ausência de prestação de contas dos recursos repassados pelo Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE) à Associação Amigos do Esporte Amador de Jaraguá do Sul, pois a atribuição de responsabilidade ao Sr. Gilmar Knaesel decorre do seu dever de supervisão e fiscalização dos serviços executados no órgão de sua competência.

Nesse sentido, repita-se que cabe ao gestor a responsabilização em face das chamadas culpa in eligendo e culpa in vigilando, significando esta a ausência de fiscalização das atividades de seus subordinados, ou dos bens e valores sujeitos a esses agentes, ao passo que aquela representa a responsabilidade atribuída a quem deu causa à má escolha de seu representante ou preposto.

A responsabilidade do gestor, frisa-se novamente, decorreu de seu comportamento omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o que se tornou, no caso em comento, uma das causas determinantes da irregularidade assinalada, tudo consoante já exaustivamente delineado no item 2.1 deste Parecer.

Quanto à alegação de ausência de dolo ou má-fé, no que compete a esse Tribunal de Contas, não há qualquer dispositivo na Lei Complementar Estadual n. 202/2000 que exija comprovação de má-fé para com o imputável. Mais ainda, no âmbito do direito administrativo, não há que se indagar sobre a boa ou má-fé do agente, mas sim sobre sua voluntariedade ao ato de praticar a conduta, o qual se constata nesses autos.

Sobre o tema, destaco as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello[20], que bem sintetiza esse entendimento:

11. (d) Princípio da exigência de voluntariedade para incursão na infração – O Direito propõe-se a oferecer às pessoas uma garantia de segurança, assentada na previsibilidade de que certas condutas podem ou devem ser praticadas e suscitam dados efeitos, ao passo que outras não podem sê-lo, acarretando conseqüências diversas, gravosas para quem nelas incorrer. Donde, é de meridiana evidência que descaberia qualificar alguém como incurso em infração quando inexista a possibilidade de prévia ciência e prévia eleição, in concreto, do comportamento que o livraria da incidência na infração e, pois, na sujeição às sanções para tal caso previstas. Note-se que aqui não se está a falar de culpa ou dolo, mas de coisa diversa: meramente do animus de praticar dada conduta.

Por fim, não deve ser acolhida a singela alegação de ausência de dano ao erário, visto que o descumprimento de preceitos normativos que resultam, como consequência, em desvirtuamento dos objetivos da norma estabelecida, implica em dano ao interesse público, de maneira que tal conduta, por si só, é passível de responsabilização.

Desse modo, por tudo quanto referido e examinado no corpo deste Parecer, bem como em função da inexistência manifesta de superveniência de documentos ou argumentos com eficácia probatória, entende-se não lograr êxito o recorrente em seu intuito desconstitutivo da Decisão Monocrática recorrida.

3.     Conclusão

Ante o exposto, o Ministério Público de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso II da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, manifesta-se pelo CONHECIMENTO do Recurso de Reconsideração e, no mérito, pelo seu DESPROVIMENTO, mantendo-se hígido o teor da Decisão Monocrática proferida pelo Auditor Cleber Muniz Gavi nos autos do processo PCR n. 08/00624661.

Florianópolis, 16 de agosto de 2016.

 

 

Cibelly Farias Caleffi

Procuradora

 



[1] Note-se que embora, tecnicamente, o prazo de 30 dias para a apresentação do Recurso de Reconsideração só tenha iniciado a partir da publicação da Portaria n. TC-0240/2016 no Diário Oficial Eletrônico desse Tribunal de Contas, a peça apresentada deve ser conhecida por ausência de prejuízo na sua interposição antes da referida publicação da portaria na imprensa oficial.

[2] Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

[3] A Lei Estadual n. 13.336/05 (alterada pelas Leis Estaduais n. 14.366/08, n. 14.600/08, n. 14.967/09 e n. 16.301/13, e atualmente regulamentada pelo Decreto Estadual n. 1.309/12, com alterações posteriores) – considerando, também, o disposto no art. 130, da Lei Complementar Estadual n. 381/2007 –, criou o Fundo Estadual de Incentivo à Cultura (FUNCULTURAL), o Fundo Estadual de Incentivo ao Turismo (FUNTURISMO) e o Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte (FUNDESPORTE), todos no âmbito do Sistema Estadual de Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte (SEITEC), com o objetivo de estimular o financiamento de projetos culturais, turísticos e desportivos na esfera da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte (SOL) e de todas as Secretarias de Estado de Desenvolvimento Regionais (SEDRs).

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 247-248.

[5] Ibidem, p. 1008-1009.

[6] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66-68.

[7] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 347.

[8] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 458-459.

[9] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015, p. 227.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 400.

[11] STJ, HC n. 262842/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 16/05/2014. STJ, REsp n. 1196299/SP,  Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, 5ª T., DJe 8/05/2013. STJ, HC n. 141239/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T, DJe 15/03/2010.

[12] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 459-461.

[13] STF, HC 73219/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 26/04/1996. STF, HC 69896, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02/04/1993.

[14] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015, p. 230-231.

[15] STF, RHC 85577/RJ, 2ª Turma.

[16] STJ, HC 54802/SP, 5ª Turma. STJ, HC 206784/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 29/06/2012. STJ, RHC 22800/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., DJe 02/08/2010. STJ, HC 128756/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 29/03/2010.

[17] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 463-464.

[18] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 98-99.

[19] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 281-283.

[20] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed., p. 805.