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ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO |
Processo nº: |
REC-05/04111019 |
Unidade Gestora: |
Câmara Municipal de Campos Novos |
Responsável: |
Sr. Rui
Jorge Thomazoni |
Assunto: |
Recurso de Reconsideração (art. 77 da LC 202/2000)
- TCE-02/06795050 + AOR-8858505-99 + REC-05/04110802 |
Parecer nº: |
GC/WRW/2009/132/ES |
Servidor público. Concessão
de vantagem. Idêntico fundamento.
A acumulação de vantagens concedidas
sob o mesmo título (por exemplo, tempo de serviço público), como o adicional
bienal e qüinqüênios, incide na vedação contida no art. 37, inciso XIV da
Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal assentou
que a Constituição da República veda a acumulação de acréscimos pecuniários
para fins de cálculo de acréscimos ulteriores, sob o mesmo fundamento.
Tribunal
de contas. Exame da inconstitucionalidade.
Não pode o Tribunal de Contas
declarar a inconstitucionalidade de norma para retirá-la do ordenamento
jurídico, tal prerrogativa cabe ao Poder Judiciário. Contudo, ‘o exame concreto
de possível inconstitucionalidade de norma deve ser feito pelos Tribunais de
Contas sempre que, ao julgar certo ato amparado em lei, verificar que essa
norma é conflitante com uma de hierarquia superior – Constituição Estadual ou
Constituição Federal’.(Angélica Petian.
Boletim de Direito Administrativo-BDA. Fev.2008, p. 191)
1. RELATÓRIO
Cuidam os autos de
recurso interposto pelo Sr. Rui Jorge Thomazoni, ex-Presidente da Câmara de
Campos Novos, em face do Acórdão n. 1.733/2005, proferido nos autos n.
TCE-02/06795050.
A peça recursal foi
examinada pela Consultoria-Geral, que, mediante o Parecer n. COG-710/06, e, no
mérito, propôs o provimento parcial.[1]
O Ministério
Público, em manifestação subscrita pela Procuradora Cibelly Farias divergiu do
órgão consultivo e se posicionou pelo não provimento do recurso.[2]
Autos conclusos ao
Relator.
Este o sucinto e
necessário relatório.
2. DISCUSSÃO
Registro
inicialmente que o acórdão atacado foi vazado nos seguintes moldes:
6.1. Julgar irregulares, com
imputação de débito, com fundamento no art. 18, inciso III, alínea
"c", c/c o art. 21, caput, da Lei Complementar n. 202/2000, as contas
pertinentes à presente Tomada de Contas Especial, que trata de irregularidades
constatadas quando da auditoria ordinária realizada na Câmara Municipal de
Campos Novos, envolvendo a avaliação dos mecanismos de controle interno e a
fiscalização financeira e orçamentária, referentes ao exercício de 1998, e
condenar o Responsável – Sr. Rui Jorge Thomazoni - Presidente daquele Órgão em
1998, CPF n. 076.421.649-04, ao pagamento da quantia de R$ 18.609,18 (dezoito
mil seiscentos e nove reais e dezoito centavos), atualizada monetariamente a
partir da data da ocorrência do fato gerador do débito (arts. 40 e 44 do mesmo
diploma legal), relativa a despesas com pagamento em 1998, irregularmente de
forma cumulativa, de vantagens pecuniárias aos servidores Luiz Sérgio Gris (R$
2.828,55 de adicional e R$ 4.954,90 de quinquênio + biênio) e Luiz Eliziário
Nogueira (R$ 3.511,10 de adicional, R$ 4.213,20 de qüinqüênio e R$ 3.101,13 de
biênio), em descumprimento ao art. 37, XIV, da Constituição Federal, conforme
apontado no item 1.3 do Relatório DMU, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias,
a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do Estado, para
comprovar, perante este Tribunal, o recolhimento do valor do débito aos cofres
do Município, atualizado monetariamente e acrescido dos juros legais (arts. 40
e 44 da Lei Complementar n. 202/2000), calculados a partir da data da
ocorrência do fato gerador do débito, ou interpor recurso na forma da lei, sem
o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança
judicial (art. 43, II, da Lei Complementar n. 202/2000).
6.2. Aplicar ao Sr. Rui Jorge Thomazoni -
anteriormente qualificado, com fundamento nos arts. 70, II, da Lei Complementar
n. 202/00 e 109, II, c/c o 307, V, do Regimento Interno instituído pela
Resolução n. TC-06/2001, as multas abaixo especificadas, com base nos limites
previstos no art. 239, III, do Regimento Interno (Resolução n. TC-11/1991)
vigente à época da ocorrência das irregularidades, fixando-lhe o prazo de 30
(trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do
Estado, para comprovar ao Tribunal o recolhimento ao Tesouro do Estado das
multas cominadas, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da
dívida para cobrança judicial, observado o disposto nos arts. 43, II, e 71 da
Lei Complementar n. 202/2000:
6.2.1. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face
da nomeação de pessoal para cargos comissionados cujas atribuições a serem
desempenhadas pressupõem trabalho eminentemente técnico e/ou sem identificação
hierárquica específica, caracterizando burla ao concurso público, previsto na
Constituição Federal, art. 37, II e V (item 1.1 do Relatório DMU);
6.2.2. R$ 400,00 (quatrocentos
reais), em face da não-retenção em folha de pagamento, e conseqüente
não-recolhimento, de valores devidos à Previdência Social, bem como
não-recolhimento da parte patronal respectiva, em descumprimento ao art. 195, I
e II, da Constituição Federal (item 1.2 do Relatório DMU).
6.3. Dar ciência deste Acórdão, do
Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, bem como do Relatório DMU n.
1096/2005, à Câmara Municipal de Campos Novos e ao Sr. Rui Jorge Thomazoni -
Presidente daquele Órgão em 1998.
Examino
primeiramente a irregularidade ensejadora da imputação de débito, consistente
na concessão e pagamento de forma cumulativa de adicional de tempo de serviço,
qüinqüênio e biênio, inobservando, portanto, a vedação contida no art. 37,
inciso XIV, da Constituição Federal.
Com efeito, aduziu
o Recorrente, em síntese, que apenas cumpriu determinação legal quanto ao
pagamento das referidas vantagens.
Invocou os arts.
177 a 179 da Lei Municipal n. 1742/1990 e o art. 14 da Lei Municipal n.
1981/1993 como fundamento dos pagamentos das referidas vantagens.
Alegou a
impossibilidade de descumprir preceito legal, por vício de
inconstitucionalidade, antes de um pronunciamento definitivo do órgão
jurisdicional competente.
Argumentou ter
agido calcado nos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, porquanto as
ditas vantagens funcionais foram deferidas anteriormente à sua gestão.
Aduziu a
inexistência de dolo ou culpa para induzir à sua responsabilização.
Assinalou a
impossibilidade de alterar os atos administrativos praticados no exercício de
1998.
A Consultoria-Geral
acolheu os argumentos sustentados pelo Recorrente da seguinte maneira:
Desde já, mister ressaltar que a
matéria é regulamentada pelo disposto no artigo 37, inciso XIV, da Constituição
da República Federativa do Brasil, o qual expressa ad litteram:
Art. 37. Administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
XIV - os acréscimos pecuniários
percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins
de concessão de acréscimos ulteriores. (grifo nosso).
A respeito do artigo
supramencionado, José Afonso da Silva delineia, in verbis:
Os acréscimos pecuniários ao padrão
de vencimento dos servidores públicos continuam admitidos pela Constituição, em
relação a vencimentos e remuneração; não aos subsídios, que não os admitem. Dos
acréscimos se trata não tanto para erigi-los em direito dos servidores, mas
para estabelecer limites, vedando seu cômputo ou acumulação, para fins de
concessão de acréscimos ulteriores. É a proibição dos chamados
"repicão" e "repiquíssimo", que consistem na incidência de
adicionais sobre adicionais, sobre sexta-parte, sobre salário-família, e
reciprocamente. Significa dizer que só podem ser percebidos singelamente,
sem acumulações ou repiques de qualquer natureza. Não se somam ao
vencimento para a constituição de base sobre a qual eles mesmos incidiriam.
(grifo nosso)1
Esclarecendo a impossibilidade de
acumulação dos acréscimos pecuniários para fins de concessão de acréscimos
ulteriores, o Supremo Tribunal Federal, em seus julgados já se manifestou, ad
litteram:
(...)
A Constituição da República veda a acumulação de acréscimos pecuniários para
fins de cálculo de acréscimos ulteriores, sob o mesmo fundamento (...).” (AI 392.954-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ
05/03/04)
O pressuposto para a aplicação do art. 17, caput,
ADCT/1988, isto é, para a redução do vencimento, remuneração, vantagem e
adicional, bem como de provento, é que estes estejam em desacordo com a
Constituição de 1988. Ora, a Constituição de 1988 não estabeleceu limites ao
critério do cálculo do adicional por tempo de serviço, em termos de percentuais.
O que a Constituição vedou no art. 37, XIV, é o denominado ‘repique’, ou o
cálculo de vantagens pessoais uma sobre a outra, assim em ‘cascata’.” (MS 22.891, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ
07/11/03)
"Acumulação de vantagens
concedidas sob o mesmo título. Vedação constitucional (CF, artigo 37, XIV). Adicional
bienal e qüinqüênios: acréscimos à remuneração que têm o tempo de serviço
público como fundamento." (RMS 23.458, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ
03/05/02)
No entanto, apesar da inequívoca
impossibilidade de acumulação dos acréscimos pecuniários nos termos
supramencionados, quanto a imputação de débito, mister considerar o fato de
que, à época, o Recorrente apenas cumpriu com o expresso nos arts. 177 a 179 da
Lei Municipal nº 1.742, de 21/11/1990, que instituiu o Estatuto dos Servidores
Públicos Municipais de Campos Novos, concedendo o direito aos servidores ao
qüinqüênio e ao adicional por tempo de serviço e no art. 14 da Lei nº 1.981/93,
de 23/07/1993, a qual concedeu o direito ao biênio, conforme se extrai, ipsis
litteris:
Lei 1.742/90
Art. 177. Serão concedidas ao
servidor, provido em caráter efetivo ou em comissão, avanços periódicos de
vencimento à razão de cinco por cento por qüinqüênio de serviço público
municipal, os quais serão sempre proporcionais aos vencimentos básico e
acompanhar-lhe-ão oscilações;
Art. 178. Além dos avanços de
que trata o artigo anterior, conceder-se-á adicional por tempo de serviço à
razão de vinte e cinco por cento ao servidor que completar vinte e cinco anos
de serviço público.
Art. 179. As vantagens de que tratam
os artigos 177 e 178 serão pagas com os vencimentos e as estes incorporados
para efeito de aposentadoria.
Lei 1.981/93
Art. 14. Para efeito de promoção, a
antigüidade é determinada pelo tempo de serviço público municipal, o que
ocorrerá, automaticamente, de dois em dois anos, obedecendo as Referências do
Quadro de Vencimentos (Anexo IV)
Nesse norte,
levando-se em conta a competência desta Corte de Contas de apreciar a
constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, nos termos dispostos
pela Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal2 e do art. 149 do
Regimento Interno3, questiona-se acerca da responsabilização do
Presidente da Câmara pela prática de atos fundados em legislação municipal, a
princípio, inconstitucional, mas que até o momento não havia sido declarada
expressamente sua impropriedade material.
[...]
Nesse sentido, já
se manifestou esta Corte de Contas, por meio do Parecer COG nº 289/04, nos
seguintes termos, verbis:
RECURSO DE
RECONSIDERAÇÃO. ADMINISTRATIVO.
RESPONSABILIZAÇÃO E MULTA. CONHECER E DAR PROVIMENTO PARCIAL.
1. A despesa
decorrente de ato respaldado em Lei Municipal não deve ser levada a
responsabilização do Administrador. Uma vez considerada inconstitucional pela
Corte de Contas a lei autorizativa da despesa pública, os atos que antecederam
esta manifestação são considerados lícitos e regulares, não sendo passíveis de
débitos.
2. É inadequada a
aplicação de multa a prefeito municipal por omissão que antecede a sua gestão
relativo à contribuição previdenciária, considerando-se ainda que os fatos
ocorreram antes da Emenda Constitucional nº 18/98, sob a égide do Regime Único,
não tendo o Município até então regulado o sistema previdenciário próprio,
quando deveria ter sido feito pelos antecessores do atual administrador.
3. Pode-se rever a
multa aplicada pela ausência de formalidade imposta na lei licitatória, em face
das circunstâncias dos fatos, caracterizada a situação emergencial, evidenciada
a ausência de má-fé do administrador, possibilidade prevista no artigo 241 do
Regimento Interno vigente à época. Resolução TC. 11/91. (grifo nosso)7
[...]
Ademais, verifica-se do contexto
fático que o Recorrente agiu de boa-fé, tendo em vista que estava respaldado em
legislação que não tinha sido em momento algum declarada inconstitucional,
funcionando como mero pagador dos adicionais, dando cumprimento ao disposto nas
Leis Municipais vigentes desde 1990 e, desse modo, anterior à sua gestão como
Presidente da Câmara Municipal de Campos Novos.
Além do mais, como bem ressaltado
nas razões recursais, verifica-se que no momento em que o Recorrente assumiu a
Presidência da Câmara Municipal de Campos Novos as ditas vantagens já estavam
sendo concedidas e, portanto, apenas continuou procendendo, em decorrência do
princípio constitucional da legalidade.
Outrossim, não se
deve também esquecer que as leis gozam da presunção de constitucionalidade.
Assim, ausentes os aspectos objetivos que possam evidenciar a má-fé e o dolo,
não se pode penalizar aquele que agiu de boa-fé.
[...]
Nesta senda, observando-se os
aspectos supramencionados, principalmente o disposto no art. 27 da Lei nº
9.868/99, a ausência de má-fé do Recorrente e a presunção de
constitucionalidade das leis, sugere-se o cancelamento do débito para o caso em
enfoque, considerando despesas irregulares tão-somente os atos praticados após
o pronunciamento desta Corte de Contas a respeito da inconstitucionalidade da
legislação municipal em análise.[3]
A Procuradora
Cibelly Farias divergiu do posicionamento defendido pela Consultoria,
sustentando, em suma, o seguinte:
“Na análise destes autos, a
Consultoria-Geral não refuta a irregularidade constatada na tomada de contas
especial, ao contrário, reafirma a ‘inequívoca
impossibilidade dos acréscimos pecuniários nos termos supramencionados’
(fl. 25 - grifei), citando, inclusive,
doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que confirma tal
entendimento.
E veja-se outras decisões oriundas
da Suprema Corte seguindo a mesma linha de orientação, pacificando o
entendimento de que é flagrantemente
inconstitucional os pagamentos em análise, e mais, registrando, ainda,
que não direito adquirido nessas
hipóteses.
[...]
Então, ante o exposto, parece
incontestável o fato de que as gratificações pagas com fundamento nas citadas
leis municipais são, à luz das normas vigentes, inconstitucionais.
Entretanto, a Consultoria-Geral
propõe, nesta oportunidade, o cancelamento do débito, sob o principal argumento
de que não se poderia responsabilizar o gestor pela prática de atos amparados
em leis vigentes e, ainda, de que a declaração de inconstitucionalidade
proferida nessa Corte de Contas somente poderia surtir eficácia futura, ex nunc, em analogia com o disposto no
art. 27 da Lei n. 9.868/99.
Discordo da manifestação técnica,
pelas razões que passo a expor.
Inicialmente, cumpre registrar que,
de fato, o Acórdão n. 1733/2005 foi omisso quanto à declaração preliminar de
inconstitucionalidade dos dispositivos das leis municipais que instituíram tais
gratificações, apesar de toda a fundamentação que o embasa apontar claramente
para essa violação da Lei Maior.
Dessa forma, impõe-se a reforma do
julgado para, preliminarmente, proceder à argüição de inconstitucionalidade dos
arts. 177, 178 e 179 da Lei Municipal n. 1742/90 e do art. 14 da Lei Municipal
n. 1.981/93, na forma prevista pelos arts. 149 a 153 do Regimento Interno deste
Tribunal de Contas, [...] por instituir gratificações cumulativas a servidores
municipais sob o mesmo fundamento e em efeito ‘cascata’, em afronta ao disposto
no art. 37, inciso XIV, da Constituição Federal.
[...]
No que tange aos efeitos da pronúncia de
inconstitucionalidade, entendo como equívoco traçar qualquer parâmetro
analógico com o disposto no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, que trata especificamente do processo e
julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
[...]
Outro argumento consignado pela
Consultoria-Geral seria o de que a não-comprovação da má-fé do responsável
impede a imputação de débito em face dos pagamentos irregulares.
Inicialmente ressalto que não há
nenhum dispositivo na Lei Complementar n. 202/2000 tampouco nas normas
regimentais dessa Corte que imponha a comprovação de má-fé do responsável para
imputação de débito ou aplicação da respectiva sanção pelo ato irregular.
É que no âmbito do direito
administrativo não há que se perquirir acerca de boa ou má-fé do agente, mas
sim, quanto à voluntariedade, ao animus de
praticar a conduta e, quanto a esse aspecto, o comportamento do responsável não
deixa margem de dúvida.
[...]
Dessa forma, concluo que, na
ausência de algum dispositivo legal que imponha a comprovação da má-fé para
imputação de débito ou aplicação de sanção correspondente ao ato irregular, não
há motivo para afastar qualquer uma delas com base nesse argumento.
Por fim, no que tange aos argumentos
relativos à segurança jurídica, estes não prosperam, pois não se trata nesse
tópico de aplicação de multa, a qual estaria sujeita ao instituto da
prescrição, mas de pagamento irregular, que resulta em dano ao erário, cujo
dever de ressarcir é imprescritível, à luz do disposto no art. 37, inciso XXII,
§5º, da Constituição Federal.[4]
Feita a síntese,
passo às minhas considerações.
Examinando os autos
principais, constato que a Instrução apurou que a Câmara Municipal de Campos
Novos efetuou pagamentos a servidores municipais de vantagens a título de
qüinqüênios e biênios de forma cumulativa, com base no mesmo fundamento, isto
é, o tempo de serviço público, conforme demonstra a legislação, a seguir,
transcrita:
Lei Municipal n. 1.742/90
Art. 177. Serão concedidas ao
servidor, provido em caráter efetivo ou em comissão, avanços periódicos de
vencimento à razão de cinco por cento por qüinqüênio de serviço público
municipal, os quais serão sempre proporcionais aos vencimentos básicos e
acompanhar-lhe-ão oscilações;
Art. 178. Além dos avanços de
que trata o artigo anterior, conceder-se-á adicional por tempo de serviço à
razão de vinte e cinco por cento ao servidor que completar vinte e cinco anos
de serviço público.
Art. 179. As vantagens de que tratam
os artigos 177 e 178 serão pagas com os vencimentos e as estes incorporados
para efeito de aposentadoria.
Lei Municipal n. 1.981/93
Art. 14. Para efeito de promoção, a
antigüidade é determinada pelo tempo de serviço público municipal, o que
ocorrerá, automaticamente, de dois em dois anos, obedecendo as Referências do
Quadro de Vencimentos (Anexo IV)
A meu ver, a
inconstitucionalidade dos dispositivos legais transcritos é inconteste,
porquanto ofende o preceito contido no art. 37, XIV da Constituição Federal:
Art. 37 – omissis.
[...]
XIV – os acréscimos pecuniários
percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins
de concessão de acréscimos ulteriores.
Tal disposição é
repetida na Constituição Estadual no inciso VII, do art. 23.
O Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a tema,
posicionou-se pela impossibilidade de cumulação de gratificação bienal com
adicional por tempo de serviço, conforme os arestos abaixo transcritos:
CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. GRATIFICAÇÃO
BIENAL. IMPOSSIBILIDADE DA SUA CUMULAÇÃO COM ADICIONAL POR TEMPO DE SERVIÇO,
POR DECORREREM DE IDÊNTICO FUNDAMENTO. ART. 37, XIV CF E 17 DO ADCT. AUSÊNCIA
DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO QUE DISCUTEM NOVAMENTE A
MATÉRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. (RMS-AgR-ED 23319 / DF - DISTRITO FEDERAL - EMB.DECL.NO
AG.REG.NO RECURSO EM MANDADO SEGURANÇA - Relator(a): Min. NELSON JOBIM -
Julgamento: 20/08/2002 - Órgão Julgador: Segunda
Turma -Publicação DJ 19-12-2002 PP-00126)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR
PÚBLICO. REMUNERAÇÃO. ADICIONAL BIENAL: CUMULAÇÃO COM GRATIFICAÇÃO POR TEMPO DE
SERVIÇO. I. - Não são acumuláveis o adicional bienal e o adicional por tempo
de serviço, acréscimos pecuniários de idêntico fundamento. II. - Agravo não
provido. (RMS-AgR 25155 / DF -
AG.REG.NO
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Relator(a): Min.
CARLOS VELLOSO
Julgamento:
29/03/2005 Órgão
Julgador: Segunda Turma Publicação: DJ
15-04-2005 PP-00035)
Constitucional. Administrativo. Servidor
Público. Vantagens funcionais em "cascata": vedação. C.F., art. 37,
XIV, redação originária. I. - O art. 37, XIV, C.F., na sua redação originária,
veda o acúmulo de vantagens pecuniárias concedidas sob o mesmo título ou
idêntico fundamento, assim vantagens em "cascata". RE 206.117/ES,
Pertence, 1ª T., 21.3.2000. II. - RE inadmitido. Agravo não provido. (RE-AgR 291987 / SE - SERGIPE
AG.REG.NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO
-Julgamento: 22/10/2002 - Órgão Julgador: Segunda Turma –
Publicação: DJ 22-11-2002 PP-00078)
Acumulação
de vantagens concedidas sob o mesmo título. Vedação constitucional (CF, artigo
37, XIV). Adicional bienal e qüinqüênios: acréscimos à remuneração que têm o
tempo de serviço público como fundamento." (RMS 23.458,
Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 03/05/02)
Considero
a situação constatada na Câmara Municipal como flagrantemente inconstitucional,
porquanto o confronto entre as disposições contidas nas leis municipais - que
serviram de supedâneo ao pagamento das ditas vantagens – e a norma
constitucional que trata da matéria, evidencia o patente desrespeito a esta
última.
A seguir, apresento
breves considerações acerca da situação do servidor que percebeu a vantagem
indevida e do gestor que autorizou o pagamento da mencionada vantagem, em consonância
com os princípios jurídicos e a jurisprudência dos tribunais superiores e do Tribunal
de Contas da União-TCU.
Exame da situação do servidor que percebeu
vantagem indevida
Com efeito,
examinando julgados recentes percebo que a investigação acerca da má-fé ou
boa-fé, para decidir sobre a devolução ou não da vantagem recebida
indevidamente, é requerida quando se trata do servidor que recebe
vantagem indevida.
Nesse sentido, a
Súmula n. 106 do TCU:
O julgamento, pela
ilegalidade, das concessões de reforma, aposentadoria e pensão, não
implica por si só a obrigatoriedade da reposição das importâncias já recebidas
de boa-fé, até a data do conhecimento da decisão pelo órgão competente.
g. n.
Assevera-se
que tal entendimento deve ser cotejado com o da Súmula 235 do mesmo Tribunal:
Os servidores ativos e
inativos e os pensionistas estão obrigados, por força de lei, a restituir ao
erário, em valores atualizados, as importâncias que lhes forem pagas
indevidamente, mesmo que reconhecida a boa-fé, ressalvados apenas os casos
previstos na Súmula n. 106 da Jurisprudência deste Tribunal.[5]
No mesmo
diapasão, o pacífico entendimento do Superior Tribunal de Justiça-STJ:
AGRAVO
REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. SERVIDOR
PÚBLICO. PERCEPÇÃO DE VANTAGEM INDEVIDA. BOA-FÉ. DEVOLUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Este
Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de não ser devida a
restituição de valores pagos indevidamente a servidores de boa-fé, com base em
interpretação errônea, má aplicação da lei, ou equívoco da Administração. [...]
(AgRg no Recurso Especial n. 963.437 -
DF (2007/0144307-5) - Relatora : Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJe: 08/09/2008)
Por fim, o Supremo
Tribunal Federal adotou tal entendimento no seguinte julgado:
MANDADO DE SEGURANÇA. ATO DO
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE CONSIDEROU ILEGAL APOSENTADORIA E DETERMINOU A
RESTITUIÇÃO DE VALORES. ACUMULAÇÃO ILEGAL DE CARGOS DE PROFESSOR. AUSÊNCIA DE
COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. UTILIZAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO PARA OBTENÇÃO DE
VANTAGENS EM DUPLICIDADE (ARTS. 62 E 193 DA LEI N. 8.112/90). MÁ-FÉ NÃO
CONFIGURADA. DESNECESSIDADE DE RESTITUIÇÃO DOS VALORES PERCEBIDOS. INOCORRÊNCIA
DE DESRESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL E AO DIREITO ADQUIRIDO.
1. A compatibilidade de horários é
requisito indispensável para o reconhecimento da licitude da acumulação de
cargos públicos. É ilegal a acumulação dos cargos quando ambos estão submetidos
ao regime de 40 horas semanais e um deles exige dedicação exclusiva.
2. O § 2º do artigo 193 da Lei n.
8.112/1990 veda a utilização cumulativa do tempo de exercício de função ou
cargo comissionado para assegurar a incorporação de quintos nos proventos do
servidor (art. 62 da Lei n. 8.112/1990) e para viabilizar a percepção da
gratificação de função em sua aposentadoria (art. 193, caput, da Lei n.
8.112/1990). É inadmissível a incorporação de vantagens sob o mesmo fundamento,
ainda que em cargos públicos diversos.
3. O reconhecimento da ilegalidade da
cumulação de vantagens não determina, automaticamente, a restituição ao erário
dos valores recebidos, salvo se comprovada a má-fé do servidor, o que não foi
demonstrado nos autos. [...]. (Mandado de Segurança n. 26.085-5 – DF- Relatora:
Ministra Carmén Lúcia - DJe: 13/06/2008)
No que tange à
existência de boa-fé na acumulação indevida de remuneração, a Ministra Carmén
Lúcia Antunes Rocha, assim leciona:
Se a acumulação apurada em dada
situação administrativa mostrar-se duvidosa quanto à sua validade
constitucional, há se examinar e concluir quanto à sua licitude. Se ilícita, a
acumulação haverá de ser declarada nula.
Contudo, os seus efeitos são
diferentes, conforme se esteja ante de um caso de ilicitude decorrente de má fé
do servidor ou de sua boa fé.
De má fé estará o servidor que
subtrair ou faltar com a verdade sobre a sua situação, deixando, por exemplo,
de declarar a sua condição de titular de outro cargo público, quando de sua
nomeação para um segundo cargo, função ou emprego.
[...] quanto à remuneração pelas
funções exercidas pelo servidor durante a acumulação indébita, é de ser
reconhecida como necessária a sua concessão, por inexistir a possibilidade de
se ter por não feito o que tenha sido feito, ou por não praticado o que o tenha
sido. Contudo, aumentos que tenham sido concedidos no período de acumulação
ilícita decorrentes de promoções ou por ajustes feitos e conferidos apenas aos
servidores que nessa função estejam regularmente não poderão ser tidos como
devidos, e se pagamento desse molde tiver sido feito há de ser devolvido à
entidade pública. É dever da Administração Pública retomar aquilo que repassou,
indebitamente, ainda que por equívoco seu, a servidor, pois se trata de
recursos públicos, que não podem deixar de ser retomados, pena de ilegalidade e
responsabilidade de quem o tiver autorizado e não tiver providenciado o seu
retorno na forma legalmente prevista.[6]
Pontifica Edilson
Pereira Nobre Júnior que:
[...] a reposição somente é
manejável nas hipóteses de má-fé do funcionário, não suscetíveis de presunção.
A título de exemplo, sugira-se que, para a obtenção de determinada vantagem,
apresente o servidor documento de escolaridade falso, havendo a Administração
deferido o solicitado. Posteriormente, descoberta a falsidade, será cassada a
vantagem. A repetição dos valores recebidos indevidamente terá lugar, tendo em
vista a ausência de boa-fé do interessado.[7]
In casu, como não ficou comprovado nos autos que
os servidores beneficiados com as vantagens indevidas agiram com má-fé, não há
que se falar em ressarcimento das importâncias recebidas pelos mesmos até a
data do pronunciamento definitivo deste Tribunal.
Exame da situação do gestor público que autorizou
o pagamento de vantagem indevida com
fundamento em lei considerada inconstitucional pelo Tribunal de Contas
Para perquirir
acerca da responsabilidade do gestor, forçoso tecer algumas considerações
acerca da responsabilidade subjetiva e objetiva do administrador público.
Valho-me da lição de
Benjamin Zymler, Ministro do Tribunal de Contas da União-TCU, no seguinte
sentido:
A responsabilidade subjetiva,
deve-se ressaltar, contrapõe-se à responsabilidade objetiva. Da
responsabilidade objetiva decorre a obrigação de reparar o dano causado, desde
que estejam presentes os seguintes requisitos básicos:
a) ação (comissiva ou omissiva) e
antijurídica do agente;
b) existência de dano;
c) nexo de causalidade entre a ação e o
dano verificado.
Ao se tratar, porém, da
responsabilidade subjetiva, exige-se, além dos elementos anteriormente
relacionados, a identificação da culpa do agente. Ressalte-se, a propósito, que
a culpa abrange as modalidades de culpa em sentido estrito (negligência,
imprudência e imperícia) e o dolo, que é caracterizado pela intenção deliberada
de produzir determinado resultado ilícito. Vale frisar que a culpa em sentido
estrito, cinge-se ao critério do homem médio, de quem não se espera
providências de cautela extrema e a quem não se permite o descuido excessivo.
A responsabilidade objetiva
configura exceção à regra geral e se impõe ao Estado e aos entes a ele
vinculados, na medida revelada pela norma contida no § 6º do art. 37 da
Constituição Federal, a seguir transcrita:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado
o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[...]
O Tribunal de Contas da União, em
síntese, ao extrair dos atos que examina as conseqüências de natureza civil ou
administrativa pondera o elemento subjetivo da conduta do responsável. Ao
desempenhar essa tarefa, busca dosar suas decisões levando em consideração o
referencial do ‘administrador médio’. Avalia, também, as condições concretas
que circundavam a realidade vivenciada pelo agente que tem suas contas
examinadas e indaga se teria ele atuado de forma satisfatória ou se seria
razoável exigir-lhe que houvesse adotado providências distintas das que adotou.[8]
Grifo nosso
Acerca dos
pressupostos para imputação de responsabilidade ao gestor esclareceu ainda, o
eminente Ministro que:
[...] há de se perquirir se restou
configurada violação a normas legais e regulamentares [...]. A norma violada
deve ser sempre identificada e explicitamente mencionada.
[...] Superada a etapa anterior
(verificação da existência da irregularidade), impõe-se avaliar se o agente
efetivamente praticou o ato impugnado (ato comissivo). Ou, ainda, se deixou de
agir, quando estava obrigado a fazê-lo (conduta omissiva). [...]
Verificada a ocorrência de ilicitude
e também que determinado agente foi responsável pelo seu cometimento, impõe-se,
ainda, indagar se o agente operou com culpa. Não é possível, como registrei
anteriormente, a apenação de responsável sem que tenha sido demonstrada a culpa
sem senso estrito ou o dolo.
Freqüentemente,
o agente depara-se com situações em que é chamado a extrair de norma de difícil
interpretação uma conseqüência jurídica. Pode ocorrer, por exemplo, que conclua
pela necessidade de pagamento de gratificação a certos servidores, a partir de
razoável interpretação do preceito legal. Tal interpretação, porém, pode
também, revelar-se, posteriormente, inadequada. Não se poderia, nessa hipótese,
ainda que daí resultasse dano ao Erário, cogitar de apenação do responsável.[9]
Grifo nosso
Na
mesma esteira, o ensino de Heraldo Garcia Vitta:
[...] Apenas haverá ilícito
administrativo, quando houver, por parte do agente, condição para eleger a
conduta tal ou qual, isto é agir com plena
consciência e liberdade de escolha
(voluntariedade), além do dolo ou da culpa.[10]
Embora
não seja unânime na doutrina a necessidade de investigar o “elemento subjetivo”
do ilícito administrativo, a doutrina gradativamente tem se inclinado pela
exigência do dolo ou da culpa[11].
Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Contas da União, anteriormente
mencionado.
Assevero,
no entanto, que o ressarcimento, em decorrência de dano causado ao erário, não
constitui uma sanção ou forma de apenação do gestor.
Na
lição de Alexandre Araújo Costa e Henrique Araújo Costa:
O
ressarcimento ao erário tem uma função compensatória, visando a reparar
prejuízos causados ao patrimônio público por atos ilícitos, sejam eles crimes,
infrações disciplinares, atos de improbidade ou meros atos de gestão ilícita do
dinheiro público.
[...]
O ressarcimento de danos ao erário,
portanto, não deve ser considerado como uma pena decorrente de condenação, tal
como a multa ou a perda de bens, mas apenas como uma conseqüência patrimonial
da aplicação de uma penalidade. [...]
Também no controle exercido pelo TCU
ocorre situação idêntica. Quando um processo de Tomada de Contas conclui pela
ocorrência de irregularidade nas contas apresentadas pelos administradores
públicos, o Tribunal deve quantificar o dano e determinar aos responsáveis o
ressarcimento do erário. Assim, o dever
de ressarcir tanto pode decorrer da prática de infrações disciplinares ou
penais, quanto pode se originar de situações em que a irregularidade na gestão
dos bens públicos não decorre de má-fé, mas resulta de uma interpretação
equivocada das normas do direito administrativo. De todo modo, o
‘julgamento pela irregularidade das contas não constitui apenação’, tratando-se
de uma decisão administrativa que pode gerar conseqüências tanto na esfera
civil (com a determinação do ressarcimento de eventuais prejuízos) quanto na
esfera administrativa (com a aplicação das multas previstas nos artigos 57 e 58
da Lei n. 8.443, de 1992). [12]
grifo nosso
Ora,
se o ressarcimento do dano ao erário não é uma penalidade, mas sim uma medida
compensatória ou reparatória, não há que se questionar da existência de boa-fé
como entendeu a Consultoria.
Parece
ser neste sentido o posicionamento de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, quando
trata da boa-fé do gestor:
[...]
Independentemente do pagamento do
débito, é possível oferecer defesa com o único objetivo de demonstrar a boa-fé
na prática do ato.
É consabido que a quitação não
afasta a possibilidade de o julgamento ser pela irregularidade da conta,
ensejando inclusive a inelegibilidade do agente para cargo público.
A
boa-fé pode não elidir diretamente o dever de pagar o erário pelo dano
experimentado, mas
certamente constituirá elemento importante em relação ao animus do agente e
permitirá à Corte contextualizar as várias dificuldades e pressões de toda a
ordem que foram sopesadas pelo agente no momento da decisão.
[...]
É interessante notar que, na maioria
dos casos, a boa-fé não constitui condição suficiente para afastar a
irregularidade até porque, no caso de contas, o ônus da prova é do agente que
gere os recursos públicos.[13]
Grifo nosso
Sendo
assim, não vejo necessário investigar acerca da boa ou má-fé do gestor para a
imputação de débito, em razão de o ressarcimento constituir uma medida compensatória, visando recompor o
erário do prejuízo sofrido. Caso contrário, todo gestor público,
comprovadamente responsável por dano ao erário, poderia se socorrer da boa-fé
para não restituir os cofres públicos e este Tribunal quedar-se-ia inerte
diante de atos de gestão ilegais, ilegítimos e antieconômicos, que redundassem
em prejuízo monetário ou financeiro à administração pública.
Parece-me
ser esta a distinção contida no art. 68 da Lei Complementar n. 202/2000, que,
de forma inequívoca, separa o ressarcimento da sanção de multa:
Art. 68 - Quando o responsável for
julgado em débito, além do ressarcimento
a que está obrigado, poderá ainda o
Tribunal aplicar-lhe multa de até
cem por cento do valor do dano causado ao erário. Grifo nosso
A
multa prevista no referido preceptivo legal pode ser dosada de acordo com a existência de boa-fé do administrador
público, já que o seu quantum é de
até cem por cento do valor do dano.
Tenho
para mim que a questão preponderante para o cancelamento do débito imputado ao
Recorrente não é diretamente a sua boa-fé, mas o fato de agir resguardado por
lei.
Na
situação examinada nos presentes autos, verifico que as leis municipais que
amparam o pagamento das gratificações, tidas por inconstitucionais, vigoram
desde 1990 e que a tomada de contas especial deste Tribunal enfocou os atos
pertinentes ao exercício de 1998, isto é, o Recorrente apenas deu continuidade
a um procedimento que já estava ocorrendo.
Sublinho
que as leis municipais n. 1742/90 e 1981/93 estavam em plena vigência, gozando,
por isso, da presunção de legitimidade
das leis, segundo a qual toda norma jurídica presume-se legítima (ou
constitucional) enquanto não declarada, efetivamente, a existência de um vício
de inconstitucionalidade.
No
caso em exame, entendo que, primeiramente, caberia aos servidores beneficiados
pelo pagamento das vantagens indevidas, o ressarcimento do erário, conforme o
art. 135, §1º, II, do Regimento Interno deste Tribunal.[14]
Ocorre
que, de acordo com a análise anterior, a ausência de comprovação de má-fé dos
servidores e o princípio da segurança jurídica impedem que os mesmos restituam o
valor imputado ao gestor como débito.
Entretanto,
entendo que, de igual modo, não há supedâneo, para sustentar a imputação de
débito ao Recorrente, posto que o mesmo se amparou em norma legal, plenamente
vigente, a qual fundamentava o pagamento das citadas vantagens antes da gestão
do Recorrente.
Assim,
acompanho a consultoria no que tange ao cancelamento do débito, embora discorde
parcialmente dos fundamentos utilizados na manifestação do órgão consultivo.
Ressalto
que não houve uma decisão desta Corte de Contas se pronunciando acerca da
inconstitucionalidade das normas municipais, quando do exame dos autos
principais.
Por
este motivo entendo pertinente que este Tribunal - ante a inconstitucionalidade
das referidas leis municipais - negue cumprimento aos referidos dispositivos
normativos, nos termos dos arts. 149 a 153 do Regimento Interno deste Tribunal,
bem como recomende à Administração Municipal a adoção de medidas para eliminar ou
adequar à Constituição Federal as referidas normas, a fim de evitar a
continuidade do pagamento a outros servidores ou novas concessões das
mencionadas vantagens, que venham a lesar ainda mais o erário.
Nesta
senda, pontifica Angélica Petian que:
Os Tribunais de Contas descumpririam
o dever de analisar a legalidade do ato se se recusassem a confrontar a norma
que o autoriza e disciplina com a letra da Constituição. Não seria razoável
que, ao realizar auditorias e verificar a regularidade de licitações e contratos
ou de atos de admissão de pessoal, os Tribunais de Contas examinassem apenas o
ato e seus reflexos financeiros, sem perquirir se a norma na qual a
Administração o fundou está em consonância com as normas que lhe são
hierarquicamente superiores.
[...]
A impossibilidade de os Tribunais de
Contas declararem a inconstitucionalidade de uma norma com o objetivo de
retirá-la do ordenamento jurídico é indiscutível. [...]
No entanto, o exame concreto de
possível inconstitucionalidade de norma deve ser feito pelos Tribunais de
Contas sempre que, ao julgar certo ato amparado em lei, verificar-se que essa
norma é conflitante com uma de hierarquia superior – Constituição Estadual ou
Constituição Federal. Se os Tribunais de Contas não podem eximir-se de julgar os
atos sob sua competência, deparando-se com a situação acima exposta, deverão
pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade da norma que fundamentou o ato,
afastando-a em caso de inconstitucionalidade.[15]
Realço
que, a partir da decisão proferida nos presentes autos, caberá ao Poder
Executivo adotar as providências cabíveis junto à Câmara de Vereadores para eliminar
a inconstitucionalidade das normas municipais mencionadas, já que se apresenta
inconcebível a existência de norma municipal que afronte a Constituição
Federal.
Irregularidades passíveis de aplicação de
multa
No
tocante à irregularidade relacionada à nomeação de pessoal para cargo
comissionado, mas com atribuições eminentemente técnicas e sem identificação
hierárquica específica, acompanho a Consultoria para manter a sanção aplicada,
pois se tratou de contratação de contador para cargo em comissão.
Anoto
que tal situação não se coaduna aos termos do recente Prejulgado n. 1939,
editado por este Tribunal acerca da matéria, conforme assinalou o Ministério
Público.
Concernente
à multa em face da não-retenção em
folha de pagamento e conseqüente não-recolhimento de valores devidos à
Previdência Social, acolho o entendimento do órgão consultivo para cancelar a
multa aplicada e afasto a argumentação do Parquet
para alterar a redação da irregularidade, a fim de punir o gestor por infração
diversa (não-contabilização dos
valores), por caracterizar reformatio in
pejus, vedada em sede recursal.
3. PROPOSTA DE DECISÃO
CONSIDERANDO o que mais dos autos consta, submeto à
apreciação deste Tribunal a seguinte proposta de decisão:
6.1.
Conhecer do Recurso de Reconsideração, nos termos do art. 77 da Lei
Complementar n. 202/2000, interposto contra o Acórdão n. 1733/2005 exarado na
Sessão Ordinária de 29/08/2005, nos autos do Processo n. TCE-02/06795050 e, no
mérito, dar-lhe provimento parcial, para:
6.1.1. cancelar o débito
constante do item 6.1 da decisão recorrida;
6.1.2. cancelar a multa
constante do item 6.2.2 da decisão recorrida.
6.1.3. conferir nova
redação à decisão recorrida, nos seguintes moldes:
“6.1. Preliminarmente,
com fulcro nos arts. 149 a 152 da Resolução n. TC-06/2001, negar cumprimento
aos arts. 177 a 179 da Lei Municipal n. 1.742/1990 e o art. 14 da Lei Municipal
n. 1.981/1993, por instituir gratificações cumulativas aos servidores
municipais, sob o mesmo fundamento e em efeito “cascata”, em afronta ao
disposto no art. 37, inciso XIV, da Constituição Federal.
6.2. Representar ao Procurador-Geral de Justiça, nos
termos do art. 153 do Regimento Interno deste Tribunal, para a adoção das
providências que entender pertinentes.
6.3. Julgar irregulares, sem imputação de débito,
na forma do art. 18, III, alínea “b”, c/c o art. 21, parágrafo único, da Lei
Complementar n. 202/2000, as contas pertinentes à presente Tomada de Contas
Especial, que trata de irregularidades acerca de irregularidades constatadas
quando da auditoria ordinária realizada na Câmara Municipal de Campos Novos,
envolvendo a avaliação dos mecanismos de controle interno e a fiscalização
financeira e orçamentária, referentes ao exercício de 1998.
6.4. Aplicar ao Sr. Rui Jorge Thomazoni –
Presidente da Câmara de Vereadores em 1998, CPF n. 076.421.649-04, multa
prevista no art. 69 da Lei Complementar n. 202/2000 c/c o art. 108, parágrafo
único, do Regimento Interno, no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face da nomeação de pessoal para cargos
comissionados cujas atribuições a serem desempenhadas pressupõem trabalho
eminentemente técnico e/ou sem identificação hierárquica específica, caracterizando
burla ao concurso público, previsto na Constituição Federal, art. 37, II e V
(item 1.1 do Relatório DMU), fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar
da publicação deste Acórdão no Diário Oficial Eletrônico desta Corte de Contas,
para comprovar ao Tribunal o recolhimento da multa ao Tesouro do Estado, sem o
que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança
judicial, observado o disposto nos arts. 43, II, e 71 da Lei Complementar n.
202/2000.”
6.2. Recomendar ao Sr.
Vilibaldo Erich Schmid, Prefeito Municipal de Campos Novos, que adote
providências junto ao Poder Legislativo Municipal, com vistas a adequar os
arts. 177 a 179 da Lei Municipal n. 1.742/1990 e o art. 14 da Lei Municipal n.
1.981/1993 ao preceituado no art. 37, inciso XIV, da Constituição Federal.
6.3. Determinar ao Sr.
Maurílio
Castro Campagnoni, Presidente da Câmara Municipal de Campos Novos que
cesse o pagamento cumulativo das vantagens sob o mesmo fundamento, bem como
evite novas concessões, por afrontarem o art. 37, inciso XIV, da Constituição
Federal, configurando dano ao erário.
6.4. Alertar a Câmara
Municipal de Campos Novos, na pessoa do Sr. Maurílio Castro Campagnoni,
acima qualificado, que o não-cumprimento do item 6.3 desta deliberação
implicará a cominação das sanções previstas no art. 70, VI e § 1º, da Lei
Complementar (estadual) n. 202/00, conforme o caso, e o julgamento irregular
das contas, na hipótese de reincidência no descumprimento de determinação, nos
termos do art. 18, § 1º, do mesmo diploma legal.
6.5. Determinar à
Secretaria Geral - SEG, deste Tribunal, que, após o trânsito em julgado,
comunique à Diretoria Geral de Controle Externo - DGCE, para fins de registro
no banco de dados.
6.6. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator
que o fundamentam, bem como do Parecer COG n. 710/06 ao Sr. Vilibaldo Erich
Schmid,
Prefeito do Município de Campos Novos,
ao Sr.
Maurílio
Castro Campagnoni, Presidente da Câmara Municipal de
Campos Novos, ao Sr. Rui Jorge Thomazoni, ex-Presidente da citada Casa
Legislativa, e à Sra. Ana Carla Wolff Lopes, responsável pelo
Controle Interno do Poder Legislativo Municipal.
Gabinete do Conselheiro, em 13 de abril de 2009.
Conselheiro Relator
[1] Fls. 17/40 dos autos n. REC-05/04111019.
[2] Fls. 41/54 dos autos n. REC-05/04111019.
[3] Fls. 23/31 dos autos n. REC-05/04111019.
[4] Fls. 42/47 dos autos n. REC-05/04111019.
[5] Conforme Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:
[...] ficou assentado definitivamente que a boa-fé não é motivo suficiente para afastar o dever de recompor a despesa ilegal realizada, sendo ainda necessária a ocorrência simultânea de outros requisitos, quais sejam:
a) que se trate de reforma, aposentadoria e pensão;
b) que fique caracterizada a boa-fé e, portanto, não apenas a ausência de má-fé;
c) que a despesa, cuja reposição se dispensa, refira-se à efetivada até a data do conhecimento da decisão pelo órgão competente, pois as realizadas posteriormente evidenciam a recalcitrância e descaracterizam a boa-fé. (Tomada de Contas Especial: Processo e Procedimento na Administração Pública e nos Tribunais de Contas. 3. ed.Belo Horizonte: Fórum, 2005.p.193).
[6] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p.278/279.
[7] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 271.
[8] ZYMLER, Benjamin. Direito administrativo e controle. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p.337/338.
[9] Idem. Ibidem.p.339/342.
[10] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p.35/36.
[11] Idem, ibidem, p. 37.
[12]
ARAÚJO COSTA, Alexandre, ARAÚJO COSTA, Henrique. A prescrição da pretensão de ressarcimento ao erário no âmbito do TCU. Disponível
em:< http://www.arcos.adv.br/artigos/a-prescricao-da-pretensao-de-ressarcimento-ao-erario/2-o-carater-compensatorio-do-ressarcimento>. Acesso em: 02 de abril de 2009.
[13] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Tribunais de Contas do Brasil – Jurisdição e Competência. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p.637.
[14] Art. 135 – omissis.
§- Não se conhecerá dos recursos previstos neste Capítulo interpostos fora do prazo, salvo para corrigir inexatidões materiais e retificar erros de cálculo e, ainda, em razão de fatos novos supervenientes que comprovem:
II – que o débito imputado ao Responsável era proveniente de vantagens pagas indevidamente a servidor, cuja devolução caberia originariamente ao beneficiário, em consonância com o disposto neste Regimento.
[15] PETIAN, Angélica. O controle de constitucionalidade das leis e atos normativos pelos Tribunais de Contas. In: Boletim de Direito Administrativo – BDA – Fev/2008, p. 190/191.