Despacho no:

 

GPDRR/40/2011

                       

 

 

Processo nº:

 

DEN 06/00470202

 

 

 

Origem:

 

Secretaria de Estado da Administração

 

 

 

Assunto:

 

Desaparecimento de nove mil resmas de papel

           

 

Os requisitos de admissibilidade foram, há muito, atendidos.

O presente feito foi protocolado no Tribunal de Contas em 14/09/2006. Pouco tempo depois a instrução técnica da DDR opinava pelo seu arquivamento.

Por intervenção deste Ministério Público foram carreados aos autos documentos que comprovam a ocorrência do ilícito (fls. 09-772).

A Diretoria de Controle da Administração Estadual opinou finalmente pelo acolhimento da denúncia em 04 de abril de 2008, sendo que em 09 de abril de 2008 o Coordenador da Inspetoria 1 opinou no sentido do encaminhamento dos autos novamente a esta Procuradoria.

Desde então o feito permaneceu 1044 (!) dias em poder do Diretor da DCE, sem evidenciar qualquer tipo de tramitação, diligências ou análises que pudessem justificá-lo...

O longo prazo de tramitação já decorrido nesta Corte e aquele que ainda deverá decorrer fará escoar, por certo, a possibilidade de se buscar a apuração de eventual ato de improbidade administrativa, caso os representantes tenham confiado apenas na Corte de Contas para a apuração da presente denúncia[1].

Este fato, é preciso reconhecer, revela o absurdo da previsão contida no art. 65, § 5º da Lei Complementar nº 202/2000[2], que permite a comunicação de irregularidades graves como esta que se está apurar apenas após o trânsito em julgado administrativo na Corte.

O arcabouço constitucional vigente irradia por todo o ordenamento a obrigação de cuidar, inclusive sob a especial perspectiva da obrigação de cooperar.  um verdadeiro regime de vedação da omissão, solidamente fundado no ordenamento pátrio, com implicações no campo da responsabilidade dos Órgãos e agentes públicos.

Assim, no exercício do controle da atividade pública, muitas vezes, os mesmos fatos jurídicos podem (e devem) ser apreciados segundo perspectivas distintas, por distintos Poderes, Órgãos e agentes públicos. A respeito do tema observa Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, “O amplo espectro da competência restaria vazio se não pudessem os tribunais de contas buscar em outras esferas de competência a restauração da regularidade, a correção de rumos, a efetiva ação redirecionadora”[3].

Apenas para exemplificar, o Ministério Público cuidará, em regra, das implicações criminais e no âmbito da probidade administrativa de atos jurídicos. Os Tribunais de Contas aferirão, por vezes, os mesmos atos, consoante as regras da prestação de contas, e a adequação aos comandos constitucionais e legais diretivos da gestão pública. Para RIBAS JUNIOR,

os Tribunais de Contas estão mais centrados no exame da regularidade da arrecadação e da despesa, estando sujeitos à prestação de contas todos os que, de alguma forma, trabalhem com recursos públicos. E é no exame dessas contas que podem surgir casos de improbidade administrativa, dentre os tantos que são tipificados na lei própria, no Código Penal, e examinados na doutrina pátria. Os tribunais não trabalham apenas na busca da improbidade ou exclusivamente na sua presença manifesta, como ocorre com o Ministério Público e o Judiciário, nas ações penais e civis públicas com vistas ao ressarcimento de eventuais prejuízos ao Erário. A matéria-prima dos Tribunais de Contas é a verificação, de ofício, da boa aplicação dos recursos públicos, onde a improbidade é um incidente a ser considerado[4]. (...) É nesse ponto que, comumente, o Tribunal de Contas representa ao MP, com indícios de prova do ilícito de que dispuser, e para o caso da competente ação penal ou civil pública[5].

 

Assim, atos ilícitos (ou indícios deles) de que tomar conhecimento um agente público, independentemente de estarem ou não inseridos dentro do micro-sistema normativo em que opera o agente público, não podem ser ocultados ao conhecimento dos órgãos competentes, consoante as respectivas atribuições, sob pena mesmo de constituir, a omissão na comunicação, ilícito perpetrado pelo agente inoperante.

Todo o ordenamento vigente repugna a omissão enquanto fato atribuível a agentes a serviço do Estado.

O art. 11, inciso II, da Lei de Improbidade Administrativa preconiza a sanção ao mau comportamento administrativo, levando-se em conta espécie de lesão imaterial, caracterizada pelo retardamento ou omissão na prática de ato de ofício. A respeito, Fábio Medina Osório ensina que:

Uma autoridade que deixa de prestar contas de seus atos, quando é instada a tanto, poderia incorrer nessa modalidade. Uma autoridade fiscalizadora que, vulnerando deveres elementares, “engaveta” processos de sua competência, produzindo prescrições e impunidade, sem justificação alguma, poderia estar incorrendo neste tipo sancionador. Toda e qualquer omissão, em realidade, sem justificativa razoável, pode ensejar responsabilidades, mormente quando seus efeitos são deletérios no setor público e suas causas injustificáveis.[6] Grifei.

 

A Lei 8.429/92[7] estabelece, em seu art. 14, que qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade. Previsão semelhante encontra-se na imposição da Lei federal 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública)[8]:

Art. 6º Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção.

 

Art. 7º Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.

 

RIBAS JUNIOR[9] sustenta que

quase sempre a deflagração de ações civis públicas pelo Ministério Público ocorre com base nos levantamentos e auditorias dos Tribunais de Contas, mesmo as inconclusas ou sem deliberação dos mesmos. Basta a requisição de documentos com base no art. 22 da lei em exame.

 

É necessário atentar, aquilo que para o cidadão é uma faculdade, em se tratando de agentes públicos, converte-se em obrigação, podendo inclusive a sua inobservância tipificar contravenção penal, nos termos do art. 66 do Decreto-Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais)[10]:

Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:

I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;

(...)

Penamulta, de trezentos mil réis a três contos de réis.

 

O Código Penal[11], ultima ratio da imposição do poder estatal, possui dois tipos orientados à conduta de agentes do Estado, que bem exemplificam a que ponto é rejeitada a inação de agentes aos quais são confiados interesses públicos:

Prevaricação

Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

 

Condescendência criminosa

Art. 320 - Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente:

Pena - detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.

 

Não se pode olvidar da necessária submissão à ética da responsabilidade pública de todos aqueles que se dedicam ao cuidado da coisa pública, sejam eles servidores de todos os escalões, membros do ministério público ou de colegiados julgadores. Esta ética deve nortear a atuação de qualquer agente público, orientado-a no sentido da busca do interesse geral da comunidade.

Nãonada que permita, recomende ou justifique manterem-se em segredo possíveis atos ilícitos que não podem ser processados em determinada esfera de controle, deixando de levá-los à autoridade competente para a apuração.

Infelizmente, verifica-se com certa freqüência, que autoridades que identificam condutas ilícitas que não são de sua competência, algumas vezes a pretexto de um encerramento “definitivo” do processo, observe-se, de um processo que nem mesmo poderá apurar o fato cujos indícios de irregularidade se anunciam, patrocinam o desmonte da atuação do Estado, pelo decurso de prazo, pela inviabilização da tempestiva coleta de provas ou, pela pura e simples, às vezes deliberada, ocultação do ilícito para a autoridade competente. Estes agentes, descomprometidos com a atuação plena do Estado, devem ser responsabilizados pela conduta omissiva.

Ao conduzir-se desta forma, o agente público omisso obsta a atuação sobre matéria que não é da sua alçada (por falta de atribuição constitucional) e, desta forma, opera na contramão do interesse público, promovendo a impunidade, comprometendo a produção tempestiva da prova e, muitas vezes, inviabilizando o ressarcimento do erário.

É por esta razão que, omitir a comunicação de ilícitos ou indícios deles, ou aguardar o “trânsito em julgado”, para somente então promover a devida comunicação a outros Órgãos de controle que também possuem competência sobre a matéria, revelar-se-ia medida absolutamente despropositada e distanciada do interesse público que deve, sempre, ser perseguido por qualquer dos Órgãos e agentes de controle. O dever de comunicar que alcança a todos os agentes do controle é, antes mesmo de constituir uma decorrência da obrigação geral de diligência que se impõe a cada um dos agentes públicos, corolário dos deveres de cuidado e cooperação, uma conseqüência concreta do compromisso com a eficiência que deve ser assumido por todos os Poderes, Órgãos e agentes públicos.

Assim, se um órgão público tomou conhecimento de um ato ilícito (ou de indícios dele) que ultrapasse o seu âmbito de atuação, deve fazer com que a informação sobre este ato chegue tempestivamente ao conhecimento do (s) órgão (s) competente (s).

Não faria sentido que, não obstante tendo se revelado determinado ilícito, ou indício dele, em um órgão público, se impusesse ao acaso a descoberta do mesmo fato pelas demais estruturas de controle. Tal conduta, além de ineficiente, logo ilícita, patrocinaria maiores gastos do erário para superar o manto que naturalmente oculta as práticas perniciosas ao bom funcionamento do Estado, além de estimular, pela impunidade que possivelmente se confirmará, tais condutas delituosas.

Os Poderes e Órgãos públicos devem atuar de forma concatenada e harmônica, até mesmo como meio de otimizar a aplicação dos recursos públicos. Isto é o que se impõe para a concreção do princípio da eficiência. FREITAS[12] sustenta que

faz-se imprescindível que o controle sinérgico e cooperativo dos atos administrativos liberte, com ânimo novo, os princípios objetivos e direitos fundamentais da vacuidade ‘programática’ e do limbo em que se encontram, deslocados e exilados por uma ‘ideologiaretrógrada, que sustenta uma visão abstrata e frouxa da incidência do Estatuto Fundamental nas relações de administração.

 

E conclama, asseverando que os agentes do controle assumam o compromisso em fazer prevalecer o texto constitucional, “hora e vez de proclamar, no Direito Administrativo, ‘a Constituição que administra’, assumindo tal idéia-chave até o fim, é dizer, como parâmetro último da sindicabilidade dos atos administrativos[13]. RIBAS JUNIOR[14] sustenta que

no fundo, o que temos a anotar é que o combate à corrupção, genericamente falando, e aos atos de improbidade administrativa depende da sociedade e da cooperação dos órgãos de controle e de defesa dos interesses indisponíveis dessa mesma sociedade.

 

Há, aparentemente, uma exacerbada preocupação como o status de inocência, para alguns, presunção de não-culpabilidade[15] (CF, art. 5º, LVII), do possível autor de condutas ilícitas (algumas delas muito graves), por parte dos agentes públicos que se omitem em comunicar tempestivamente os ilícitos ou indícios deles de que têm conhecimento. Levar extramuros tais fatos ou indícios é, por muitos, considerado, talvez, um ato de deslealdade, para com aquele status constitucional, ou, talvez ainda, para com o próprio possível implicado; uma severapena”...

É de lamentar que estas mesmas preocupações não movam tais agentes na defesa das prerrogativas do verdadeiro titular do poder (CF, art. 1o, parágrafo único), que financia a atuação do Estado, esperando o seu bom funcionamento, esperando que condutas ilícitas sejam amplamente apuradas e o ordenamento jurídico seja confirmado!

A comunicação dos fatos jurídicos ilícitos ou de seus indícios não representa qualquer juízo de valor por parte do órgão que a promove, em relação aos referidos fatos ou aos agentes possivelmente responsáveis, mas apenas o desincumbir de uma obrigação geral de vigilância e de um compromisso geral com o bom funcionamento do Estado. Tampouco se poderá cogitar estar sendo mitigada a presunção de inocência (ou de não-culpabilidade) que protege o agente pretensamente responsável pelo fato possivelmente ilícito.

Comunicar a possível ocorrência de um ilícito nunca afastou esta presunção de inocência. Se nem mesmo as prisões cautelares afastam tal presunção, vez que servem apenas ao resguardo de prerrogativas do Estado, a simples informação, dando conta de indícios de ilicitude a um órgão que detenha a obrigação de investigá-los, apenas confirma a regra da presunção de inocência, pois revela a submissão do Estado aos pesados, mas necessários, trâmites e formas legalmente impostos para cogitar de eventual dúvida sobre a consistência desse manto presuntivo de inocência.

ainda, em larga escala, uma falsa impressão de que as interações orgânicas entre as estruturas do Estado necessitam sempre de algo que ainda não está desenvolvido, da assinatura de protocolos de intenções, convênios e acordos. Há por parte de alguns agentes do Estado um gosto muito apurado por essas liturgias, principalmente se através delas for possível colher alguma manchete midiática, sendo de somenos importância que esses instrumentos nunca cheguem a ser colocados em prática, o que ocorre com certa freqüência.

 

Por todo o exposto, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso II, da Lei Complementar no 202/2000, opino:

1)  pelo acolhimento da representação e determinação das medidas necessárias à apuração dos fatos;

2) pela imediata comunicação dos fatos ao Ministério Público Estadual, para que aquele Órgão atue como melhor entender, notadamente em face da possível tipificação do crime de peculato.

 

Florianópolis, 23 de fevereiro de 2011.

 

 

Diogo Roberto Ringenberg

Procurador do Ministério

Público de Contas

 



[1] Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:

I - até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança;

II - dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego. In: BRASIL. Lei federal 8.429/92 - Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8429.htm Acesso em: 23/02/2011.

[2] Art. 65. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas do Estado.

(...)

§ 5º Confirmada irregularidade grave, o Tribunal, após o trânsito em julgado da decisão, representará ao Ministério Público Estadual para os devidos fins ao Governador do Estado e à Assembléia Legislativa, se apurados no âmbito da administração estadual, e ao Prefeito Municipal e à Câmara de Vereadores, se no âmbito municipal, para conhecimento dos fatos. In: SANTA CATARINA. Lei Complementar nº 202/2000 - institui a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Disponível em: WWW.tce.sc.gov.br. Acesso em: 23/02/2011.

 

[3] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de contas do Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 415.

[4] RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção endêmica: os tribunais de contas e o combate à corrupção. Florianópolis: Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina; Co-edição Autor, 2000. p. 152.

[5] Ibid. p. 154.

[6] MEDINA OSÓRIO, Fábio. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 410-411.

[7] BRASIL. Lei 8.429/92. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8429.htm. Acesso em: 03 mar. 2010.

[8] BRASIL. Lei 7.347/85. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347orig.htm. Acesso em: 03 mar. 2010.

[9] RIBAS JUNIOR, Salomão. Op. cit., p. 153.

[10] BRASIL. Decreto-Lei 3.688/41. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del3688.htm. Acesso em: 03 mar. 2010.

[11] BRASIL. Decreto-Lei no 2.848/40. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 03 mar. 2010.

[12] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. Op. cit. p.33.

[13] Ibid idem.

[14] RIBAS JUNIOR, Salomão. Op. cit. p. 155.

[15] “A Constituição estabelece, no art. 5o, LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, consagrando, de forma explícita, no direito positivo constitucional, o princípio da não-culpabilidade ou o princípio da presunção de inocência...” In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 629.