PARECER
nº: |
MPTC/665/2011 |
PROCESSO
nº: |
REP-09/00511303 |
ORIGEM: |
Companhia de Urbanização de Blumenau - URB |
INTERESSADO: |
Oscar Krost |
ASSUNTO: |
Peças de Ação Trabalhista - contratação sem concurso
público. |
Trata-se de Representação apresentada
pelo Exmo. Sr. Juiz da 2° Vara do Trabalho de Blumenau, Oscar Krost, para
apreciação dessa Corte de Contas (fls. 2-7).
Foi encaminhada a decisão proferida
nos autos da Ação Trabalhista – RT 02308-2006-018-12-00-6 ajuizada por Marisa
Maria Fiamoncini em face da Companhia de Urbanização de Blumenau, na qual
postula indenização por danos materiais e morais em decorrência de contratação
irregular da servidora, sem prévia aprovação em concurso público (fls. 3-7).
A Diretoria de
Controle da Administração Estadual apresentou relatório técnico (fls. 8-11)
propondo o conhecimento da representação.
Na mesma trilha o
parecer deste Órgão Ministerial às fls. 12-13 e o despacho do Relator (fls.
14-15), determinando que a Diretoria de Controle de Atos de Pessoal adotasse as
providências necessárias com vistas à apuração do fato indicado como irregular.
Por ordem do
Diretor Geral de Controle Externo, os autos foram redistribuídos à Diretoria de
Atividades Especiais, por motivos de excesso de processos na Diretoria de Controle
da Administração Estadual (fl. 17).
Realizada
diligência junto à Companhia de Urbanização de Blumenau para apresentação de
documentos e informações necessários, os mesmos foram juntados às fls. 20-26.
Em suma, constata-se que a reclamante
da ação trabalhista foi admitida para o cargo de escrituraria em 5.10.1976
aposentando-se voluntariamente em 31.8.2000, conforme consta às fls. 23-36.
Contudo, a servidora permaneceu desenvolvendo a mesma atividade, por meio de
novo contrato, de 1.9.2000 a 21.1.2002, tendo este último sido declarado nulo
pela justiça trabalhista, haja vista que dada a natureza jurídica da URB
(sociedade de economia mista), seria indispensável a aprovação da servidora em
concurso público para sua nova admissão.
A Unidade Técnica argumentou em seu
parecer que a aposentadoria espontânea não extinguiria, por si só, o vínculo de
emprego, permitindo a continuidade da prestação de serviços, com fundamento na
decisão proferida na ADI n° 1.721.
Contudo, esta Representante
Ministerial já se manifestou em sentido diverso do exposto pela Unidade Técnica
em sede de consulta, no Processo CON-08/00541537, ao entender que se faz
necessário interpretar a decisão da Suprema Corte de modo que haja uma
diferenciação entre as regras pertinentes aos empregados públicos em detrimento
aos demais celetistas.
E conclui ao final que a melhor
interpretação com o intuito de preservar o princípio constitucional do
amplo acesso aos cargos públicos, as regras que impõe o provimento após prévio
concurso e a não-acumulação remunerada de cargos e, de forma reflexa, a
cidadania e o princípio da igualdade jurídica , é a de que a aposentadoria voluntária de empregados
públicos (administração direta e indireta) extingue o contrato de trabalho.
Por oportuna, transcrevo a referida
manifestação ministerial, da qual se extrai os fundamentos que levaram ao
referido entendimento:
No seu parecer, a Consultoria-Geral, ao analisar o caso à luz das
recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 1721-3 e
1770-4, concluiu, em síntese, que a aposentadoria espontânea não extingue o
contrato de trabalho, mas é vedado ao empregado que mantém vínculo com a
Administração Pública perceber concomitantemente proventos e vencimentos, salvo
nas hipóteses em que os cargos, empregos e funções forem acumuláveis em
atividade.
Em que pese as razões apresentadas no bem lançado parecer, esta
representante ministerial diverge parcialmente do entendimento firmado pelo
Órgão Técnico, por entender que:
a) a orientação firmada pelo STF no julgamento das ADIs 1721-3 e 1770-4
não se aplica à hipótese dessa consulta;
b) nos casos em que o vínculo celetista se dá com a Administração
Pública – sobretudo com a administração direta, como parece ser a situação-alvo
da presente consulta – a aposentadoria espontânea extinguiria o contrato de
trabalho;
c) entendimento contrário representaria, na prática, permitir a
acumulação remunerada de proventos e vencimentos decorrentes de um mesmo cargo
público à margem das hipóteses constitucionais permissivas e, ainda, a ocupação
de um cargo público por um agente que não prestou concurso para tal fim, e por
um prazo indefinido, o que viola, mais, o princípio constitucional que trata do
amplo acesso aos cargos públicos.
Se não, vejamos.
1. Das hipóteses tratadas no
julgamento da ADI 1.721-3 e da ADI 1.770-4
Eis as ementas das decisões proferidas no julgamento das
citadas ações diretas de inconstitucionalidade.
1. ADI 1.721-3:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 3º DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.596-14/97,
CONVERTIDA NA LEI Nº 9.528/97, QUE ADICIONOU AO ARTIGO 453 DA CONSOLIDAÇÃO DAS
LEIS DO TRABALHO UM SEGUNDO PARÁGRAFO PARA EXTINGUIR O VÍNCULO EMPREGATÍCIO
QUANDO DA CONCESSÃO DA APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
2. ADI 1.770-4:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. READMISSÃO DE EMPREGADOS DE EMPRESAS PÚBLICAS E
SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. ACUMULAÇÃO DE PROVENTOS E VENCIMENTOS. EXTINÇÃO
DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO POR APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. NÃO-CONHECIMENTO.
INCONSTITUCIONALIDADE. Lei 9.528/1997, que dá nova redação ao § 1º do art. 453
da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT -, prevendo a possibilidade de
readmissão de empregado de empresa pública e sociedade de economia mista aposentado
espontaneamente. Art. 11 da mesma lei, que estabelece regra de transição. Não
se conhece de ação direta de inconstitucionalidade na parte que impugna
dispositivos cujos efeitos já se exauriram no tempo, no caso, o art. 11 e
parágrafos. É inconstitucional o § 1º do art. 453 da CLT, com a redação dada
pela Lei 9.528/1997, quer porque permite, como regra, a acumulação de proventos
e vencimentos - vedada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal -, quer
porque se funda na idéia de que a aposentadoria espontânea rompe o vínculo
empregatício. Pedido não conhecido quanto ao art. 11, e parágrafos, da Lei nº
9.528/1997. Ação conhecida quanto ao § 1º do art. 453 da Consolidação das Leis
do Trabalho, na redação dada pelo art. 3º da mesma Lei 9.528/1997, para declarar
sua inconstitucionalidade.
Da leitura dessas ementas depreende-se que:
Nenhuma das duas hipóteses parece se coadunar com a que se
trata nestes autos.
Isso porque, conforme dito no Parecer da Consultoria-Geral e
confirmado após pesquisas e contatos firmados por esta Procuradoria, o
Município de Araranguá adota, desde a edição da Lei Complementar Municipal n.
2, de 22 de agosto de 2007, o “regime jurídico único celetista” para todos os seus empregados,
indistintamente.
Além disso, esta Procuradoria também foi informada de que
não há nenhuma empresa pública ou sociedade de economia mista vinculada ao
referido Município.
Assim, os questionamentos formulados tem como foco principal
esclarecer a situação de empregados celetistas que laboram no âmbito da administração direta do
Município, situação diversa da apreciada nos referidos julgados da Suprema
Corte.
Em ambas as decisões, os votos condutores deixam claro que
as razões que levaram ao entendimento de que a concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador não tem por efeito
extinguir, instantânea e automaticamente, o seu vínculo de emprego, cingem-se à
interpretação conferida em conformidade com o art. 7º, inciso I, da
Constituição Federal, que prevê a proteção da relação de emprego contra a
despedida arbitrária ou sem justa causa.
Ou seja, o entendimento da Suprema
Corte sobre o tema tem como pano de fundo a proteção ao trabalhador, como um
valor constitucional supremo e que, como tal, deve ser preservado em face de
uma eventual disposição que permitisse a extinção do vínculo de emprego sem o
cometimento de falta grave pelo empregado, in
casu, o § 2º do art. 453 da Consolidação das Leis do Trabalho.
E para corroborar tal afirmação, veja-se alguns trechos
desses votos:
1. Da ADI 1.721-3,
Relator Ministro Carlos Britto:
[...]
14. Debruço-me, agora, sobre a questão de fundo. Fazendo, entendo que a
Constituição de 1988 substituiu a garantia "absoluta n do emprego (a
estabilidade decenal de que trata o art. 492 da CLT) por outras modalidades de
proteção: a) aquela que se viabiliza
pelas hipóteses listadas em lei complementar; b) a que se dá pela majoração do custo das despedidas sem outra
causa que não seja a vontade unilateral do empregador. Confira-se:
[...]
15. De se notar, então, que a Magna Carta Federal outorgou à lei
complementar duas específicas funções: a)
a de instituir as hipóteses em que não pode ocorrer despedida arbitrária ou sem
justa causa; b) a de fixar,
"entre outros direitos", os parâmetros de indenização compensatória
aos trabalhadores que vierem a ser despedidos, exatamente, sem justa causa ou
pelo exclusivo arbítrio do seu empregador.
16. Isso não obstante, a própria Lei Maior, sem esperar pela edição da
sobredita lei complementar, avançou algumas regras de Proteção do trabalhador
empregado, de sorte a lançar algumas hipóteses proibitivas da demissão
arbitrária ou sem justa causa. Demais disso, também limitou o quantum da
indenização compensatória a quatro vezes o valor da percentagem a que se refere
o § 1" e o caput do art. 6" da Lei n" 5.107, de 13 de setembro
de 19662• Tudo de acordo com os seguintes dispositivos:
[...]
19. Sucede que o novidadeiro § 2" do art. 453 da CLT, objeto da
presente ADI, instituiu uma outra modalidade de extinção do vínculo de emprego.
E o fez inteiramente à margem do cometimento de falta grave pelo empregado e
até mesmo da vontade do empregador. Pois o fato é que o ato em si da concessão
da aposentadoria voluntária a empregado passou a implicar automática extinção da relação laboral (empregado, é certo,
"que não tiver completado trinta e cinco anos, se homem, ou trinta, se
mulher ( ... )" (inciso I do § 72 do art. 201 da CF).
20. Ora bem, a Constituição versa a aposentadoria do trabalhador como um
benefício. Não como um malefício. E se tal aposentadoria se dá por efeito do
exercício regular de um direi to (aqui se cuida de aposentadoria voluntária), é
claro que esse regular exercício de um direito não é de colocar o seu titular
numa situação jurídico-passiva de efeitos ainda mais drásticos do que aqueles
que resultariam do cometimento de uma falta grave. Explico. Se um empregado
comete falta grave, assujeita-se, lógico, a perder c seu emprego. Mas essa
causa legal de ruptura do vínculo empregatício não opera automaticamente. É
preciso que o empregador, no uso de sue autonomia de vontade, faça incidir o
comando da lei. Pois o certo é que não se pode recusar a ele, empregador, a
faculdade de perdoar seu empregado faltoso.
21. Não é isto, porém, o que se contém no dispositivo legal agora
adversado. Ele determina o fim, desfazimento da relação laboral, pelo exclusivo
fato da opção do empregado por um tipo de aposentadoria (a voluntária) que lhe
é juridicamente franqueada. Desconsiderando, com isso, a própria e eventual
vontade do empregador de permanecer com o seu empregado. E também desatento
para o fato de que o direito à aposentadoria previdenciária, uma vez
objetivamente constituído, se dá no âmago de uma relação jurídica entre o
"segurado" do Sistema Geral de Previdência e o Instituto Nacional de
Seguro Social. Às expensas, portanto, de um sistema atuarial-financeiro que é
gerido por esse Instituto mesmo. Não às custas desse ou daquele empregador. O
que já significa dizer que o financiamento ou a cobertura financeira do
benefício da aposentadoria passa a se desenvolver do lado de fora da própria
relação empregatícia, pois apanha o obreiro já na singular condição de titular
de um direito à aposentadoria, e não propriamente de assalariado de quem quer
que seja. Revelando-se equivocada, assim penso, a premissa de que a extinção do
pacto de trabalho é a própria condição empírica para o desfrute da
aposentadoria voluntária pelo Sistema Geral de Previdência Social.
[...]
23. Não enxergo, portanto, fundamentação jurídica para deduzir que a
concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador deva extinguir,
instantânea e automaticamente, a relação empregatícia. Quanto mais que os “valores sociais do trabalho” se põem
como um dos explícitos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso IV
do art. P). Também assim, base e princípio da “Ordem Econômica”, voltada a
“assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (
... )” (art. 170 da CF), e a “busca do pleno emprego” (inciso VIII). Sem falar
que o primado do trabalho é categorizado como “base” de toda a ordem social, a
teor do seguinte dispositivo constitucional:
2. Da ADI 1.770-4,
Relator Ministro Joaquim Barbosa:
[...]
Levando-se em conta também essa perspectiva, haveria
inconstitucionalidade no § 1º do art. 453 da CLT, porquanto fundado nas mesmas
premissas em que elaborado o § 2º do mesmo dispositivo: o de que a
aposentadoria espontânea do empregado, no caso, de empresa pública ou sociedade
de economia mista gera o rompimento do vínculo empregatício, o que traz como
conseqüência a despedida arbitrária ou sem justa causa, não tendo o empregado
nenhum direito à indenização.
[...]
Entretanto, ao se tratar de empregados vinculados à
administração pública – sobretudo àqueles que laboram na administração direta –
não se pode olvidar que não se aplicam indistintamente as disposições da CLT.
Isso porque, em que pese a relação contratual entre
empregados e ente público se dar com base nas normas celetistas, os
dispositivos constitucionais referentes aos servidores públicos abrange também
tais empregados e traz para esse regime de trabalho algumas particularidades –
o que inclui direitos, deveres, garantias e prerrogativas – típicas das
relações laborais com o Poder Público.
É de se dizer, quando se trata de empregados públicos, o
regime de trabalho aplicado na relação laboral não se rege pura e simplesmente
pelas normas da CLT, há que se observar todo o arcabouço normativo previsto na
Carta Magna que, assim como impõe algumas restrições (por exemplo, à livre
contratação, pois deve preceder de aprovação em concurso público),
indiscutivelmente traz maiores garantias e proteção à relação de emprego.
Sobre o tema, colho da doutrina de José dos Santos Carvalho
Filho[1]
o seguinte comentário sobre as normas atinentes ao regime de emprego público,
por esclarecedor:
O recrutamento para o regime de emprego público exige prévia aprovação
em concurso público de provas ou de provas e títulos, o que não poderá ser
diferente ante o disposto no art. 37, II, da Lei Fundamental. O vínculo laboral
tem natureza contratual e se formaliza pela celebração de contrato por prazo
indeterminado. O contrato só pode ser rescindido quando houver: 1) prática de
falta grave, tal como relacionado no art. 482, da CLT; 2) acumulação ilegal de
cargos, empregos ou funções públicas; 3) necessidade de redução de quadro, no
caso de excesso de despesa, como previsto no art. 169 da CF[2];
4) insuficiência de desempenho apurada em processo administrativo[3]. Essas regras indicam não só que ficou
excluída a hipótese de resilição unilateral[4]
do contrato por parte do Estado-empregador, não sendo assim aplicável nesse
aspecto o art. 479 da CLT, mas também que é vinculada à atividade da União no
que tange às hipóteses de desfazimento do vínculo: em nenhuma hipótese a
rescisão contratual poderá dar-se ao mero alvedrio da Administração Federal,
decorrente da valoração de
conveniência e oportunidade[5] [grifei].
Nessa trilha, considerando que empregados públicos gozam de
maiores prerrogativas e proteção com relação à despedida arbitrária, essa é mais
uma razão que leva à conclusão de que a linha de orientação firmada no
julgamento das ADIs n. 1.721-3 e 1.770-4 não se aplica à presente consulta,
quer seja pelo próprio conteúdo dos julgados, que não abrangem especificamente
os empregados públicos da administração direta, quer pelos seus fundamentos,
diretamente relacionados com a proteção à relação de emprego.
2. Do princípio do livre
acesso aos cargos públicos e da regra geral da não-acumulação remunerada
Cumpre registrar, ainda, um outros dois fatores que, a meu
ver, impedem o reconhecimento de que se aplica à presente consulta o
entendimento das citadas ADIs, pois se tratam de princípios e regras
constitucionais aplicáveis à toda a Administração Pública, de forma indistinta,
e condicionantes ao provimento de cargos e empregos públicos.
O princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos
consagrou-se na Declaração dos Direitos do Homem (1948), no seu art. 21, que
diz:
Artigo XXI
1.
Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, diretamente ou
por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2.
Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A
vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Da leitura desse dispositivo merece especial atenção dois
aspectos que se pode extrair de tal enunciado: o primeiro, que respeita ao direito
fundamental conferido a todo o cidadão de participar da Administração Pública
de seu país, como um requisito ao exercício da sua cidadania; e o segundo, que
tal acesso às funções públicas seja promovido em condições igualitárias a todos
os cidadãos, o que só pode se dar levando-se em consideração a sua qualificação
pessoal.
Nesse passo, o princípio da ampla acessibilidade aos cargos
públicos de um país está intrinsecamente coligado ao pleno exercício da
cidadania e ao princípio constitucional da igualdade jurídica.
Tal postulado tem sido tradição no nosso direito
constitucional.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes[6],
já a Constituição do Império consagrava a fórmula de que “todo o cidadão pode
ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra
diferença que não seja a dos seus talentos e virtudes”.
A Constituição de 1934, no seu art. 170, § 2º, previu que “a
primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e
nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e
concurso de provas e títulos”.
Seguiu a mesma trilha as Constituições de 1937 e de 1946,
estabelecendo
A Constituição de 1967 trouxe como única ressalva à
obrigatoriedade de aprovação em concurso público apenas os cargos em comissão
de livre nomeação e exoneração, redação atenuada pela Emenda Constitucional n.
1, de 1969, que restabeleceu a sistemática da “primeira investidura”,
ressalvando apenas os casos “previstos em lei”.
Na Constituição vigente, tal princípio vem insculpido no
art. 37, inciso II, que, na sua atual redação, diz:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista
em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre
nomeação e exoneração;
[...]
E é pacífico o entendimento de que tal disposição aplica-se
também ao provimento dos empregos públicos, conforme explicitamente enunciado
no julgamento do MS 21.322, Relator Ministro Paulo Brossard, DJ de 23.4.1993, verbis:
EMENTA: CARGOS e EMPREGOS
PUBLICOS. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA, INDIRETA e FUNDACIONAL. ACESSIBILIDADE.
CONCURSO PÚBLICO. A acessibilidade aos cargos públicos a todos os brasileiros,
nos termos da Lei e mediante concurso público e princípio constitucional
explicito, desde 1934, art. 168. Embora cronicamente sofismado, mercê de
expedientes destinados a iludir a regra, não só foi reafirmado pela
Constituição, como ampliado, para alcançar os empregos públicos, art. 37, I e
II. Pela vigente ordem constitucional, em regra, o acesso aos empregos
públicos opera-se mediante concurso público, que pode não ser de igual
conteúdo, mas há de ser público. As autarquias, empresas publicas ou sociedades
de economia mista estão sujeitas à regra, que envolve a administração direta,
indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios. Sociedade de economia mista destinada a
explorar atividade econômica está igualmente sujeita a esse princípio, que não
colide com o expresso no art. 173, PAR. 1. Exceções ao princípio, se existem,
estão na própria Constituição [grifei].
Consoante se extrai da legislação pátria[7],
é certo que a aposentadoria é uma das formas de vacância dos cargos públicos.
Portanto, permitir a continuidade laboral daquele que se
encontra aposentado, no mesmo cargo no qual se deu a inatividade (agora, vago),
sem exigir que o empregado preste concurso público para o seu provimento,
implica em frontal ofensa ao disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal.
Além disso, tal procedimento poderia implicar, ainda, em
violação à regra constitucional que impede a acumulação remunerada de cargos e
empregos públicos, desde que os cargos não sejam passíveis de cumulação, ainda
que se trate de proventos e vencimentos[8].
Já de longa data a Suprema Corte afirma e reafirma a
impossibilidade desse tipo de acumulação remunerada. No julgamento do Recurso
Extraordinário n. 163204-
[...]
No que concerne aos servidores federais, a Lei
8.112, de 1990, disciplina a aposentadoria nos artigos 185, § 4º,
Registre-se, de outro lado, o elemento histórico, a
conspirar contra a tese dos acumuladores. Em trabalho que escreveu sob o tema,
o Prof. Caio Tácito anotou que "as acumulações remuneradas nasceram no
Brasil, como herança recebida da corte portuguesa, na qual o privilégio de
poucos monopolizava os empregos públicos" e que "Barbalho mostrou, em
página célebre, como a acumulação remunerada era fruto originário do validismo
palaciano ("Comentários à Constituição Federal Brasileira” 1902, pág. 339).” (Caio Tácito, “Acumulação de Cargos na Constituição do
Brasil”, RDP 7/16). Já no Império, procurou-se impedir o duplo ganho no serviço
público. Proclamada a República, a proibição foi constitucionalizada (CF/1891,
art. 73). Os interesses, entretanto, lembra Caio Tácito, eram enormes.
Surgiram, então, as exceções, mas o Supremo Tribunal Federal, “em inúmeros
acórdãos, declarou, repetidamente, a inconstitucionalidade das acumulações
remuneradas”, lembra o ilustre publicista. Não obstante as exceções que os
acumuladores sempre imaginavam, na 1ª República, muita vez com sucesso, certo é
que, a partir de 1930 "voltaria, porém, a mentalidade de saneamento de mal
secular. O decreto n. 19.576, de 08.01.1931, estabelece norma severa contra as
acumulações remuneradas, tornando-as ilícitas, salvo, temporariamente, as
funções de magistério, ou deste com cargo técnico ou científico”, esclarece o
autor. A regra, então, persiste na Constituição de 1934 e nas Constituições
seguintes, certo que o sentido da proibição sempre foi o de impedir o duplo
ganho, a dupla remuneração, assim na linha da lição de Carlos Maximiliano,
citada por Haroldo Valadão: “Em suma: não se acumulam cargos; pouco importa que
sejam federais, estaduais ou municipais; nem proventos, quer eles resultem de
aposentadoria, jubilação ou reforma, quer se denominem ordenado, gratificação,
soldo, subsídio, emolumentos ou custas. (Ob. cit., pág. 826)." (Ap.
Haroldo Valadão, ob. e loc. cits., pág. 332).
Tenho, pois, como acertado o parecer do ilustre
subprocurador-Geral Antonio Fernando de Souza, quando escreve:
24. Ora, se é a própria Constituição que mantém o
aposentado umbilicalmente ligado ao cargo em que se deu a inatividade,
aquinhoando-o com todos os benefícios e vantagens a ele atribuídos após a
aposentadoria, inclusive quando ocupante de cargo público, para os fins do art.
37, inciso XVI, da Constituição Federal.
[...]
Em conclusão, no inciso XVI do art. 37, da
constituição , que estabelece o princípio da inacumulabilidade de cargos
públicos, está compreendida a vedação de acumulação de aposentadoria em cargo
público com o exercício de outro cargo público, vedação que se aplica a todas
as espécies de acumulações, submetida a uma única exceção: quando se tratar de
acumulação que seria lícita também na atividade (letras a, b e c, do inciso
XVI, do art. 37, CF/88).
[...]
O entendimento do STF é cristalino, dele se conclui que a
vedação à acumulação remunerada de cargos públicos é a regra; não se pode,
portanto, aplicar nenhum tipo de interpretação extensiva e inferir tal
possibilidade além do próprio permissivo constitucional (alíneas a, b
e c do inciso XVI do art. 37), e pouco
importa quem é a fonte pagadora, releva verificar, sim, se se trata
efetivamente de cargos vinculados à Administração Pública.
Portanto, ainda que se entendesse que a aposentadoria dos
empregados públicos não romperia o vínculo laboral e que seria permitido ao
aposentado continuar a trabalhar no mesmo cargo, à toda vista, não se poderia
permitir uma acumulação remunerada
pelo exercício do cargo público (na inatividade e na ativa), à margem da
permissão constitucional.
Tais peculiaridades abrangem evidentemente todos os
empregados vinculados à Administração Pública, que, por estarem submetidos a
regramentos especiais não aplicáveis à iniciativa privada, não podem ser
atingidos – repiso – pelo entendimento generalizado aplicado a todos os
celetistas, descrito na ADI n. 1.721-3.
3. Do confronto de
princípios constitucionais e da sua harmonização
Considerando todas as colocações elencadas nos item 1 e 2
deste parecer, pode-se concluir que a solução da controvérsia objeto principal
da presente consulta – legalidade ou não da manutenção do vínculo de emprego de servidores municipais celetistas
após o advento da aposentadoria espontânea – passa
necessariamente por uma análise de dois princípios constitucionais de igual
relevância: de um lado, o que trata da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa e,
de outra banda, o princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, que
passa pela obrigatoriedade do seu provimento por meio de prévia aprovação em
concurso público e pela regra geral da não-cumulação de vencimentos e proventos
decorrentes desses cargos.
Gilmar Ferreira Mendes[9],
ao tratar dos princípios de interpretação constitucional, propõe uma solução
para as hipóteses em que concorrem bens constitucionalmente protegidos:
adotar-se uma solução que otimize a aplicação de todos, sem negar validade a
nenhum. Ou seja, no momento de aplicação do texto, deve-se atentar para o
contexto do caso concreto e, a partir de então, “coordenar, ponderar e, afinal,
conciliar os bens ou valores constitucionais em “conflito”, dando a cada um o
que for seu”. É o por ele chamado princípio da harmonização ou da concordância
prática.
Seguindo a mesma trilha, Luis Roberto Barroso[10]
aduz que “o problema passa a ser resolvido pela aplicação técnica de subsunção
dos fatos com a norma, bem como ponderação de interesses na aplicação dos
princípios constitucionais”.
A técnica interpretativa referente à ponderação de interesses –
intrinsecamente correlacionado com o princípio da proporcionalidade – consiste,
em apertada síntese, em solucionar conflitos normativos sem implicar na
exclusão de nenhuma regra do ordenamento vigente, decidindo, à luz das
circunstâncias concretas e das suas particularidades, qual norma(s) deve(m)
prevalecer em detrimento de outra(s).
4. Da conclusão
Retornando à hipótese consultada e apreciando as circunstâncias do caso
concreto, conclui-se que elas apontam para uma evidente diferenciação entre as
regras pertinentes aos empregados públicos em detrimento aos demais celetistas:
aqueles portadores de prerrogativas e de maior proteção na relação laboral
contra despedidas arbitrárias ou sem justa causa, como decorrência lógica do
regime jurídico-administrativo a que também se submetem.
De outra face, toda a Administração Pública sujeita-se, necessariamente,
às normas constitucionais que conduzem ao princípio do amplo acesso aos cargos
públicos: a obrigatoriedade quanto à aprovação em prévio concurso e à
não-acumulação remunerada. São regras constitucionalmente consagradas ao longo
do nosso processo democrático e que não podem, a meu ver, sofrer nenhum tipo de
flexibilização ou mesmo de interpretação extensiva, sob pena de comprometer
outros valores e princípios já consolidados e diretamente vinculados à condição
humana: a cidadania e o direito à igualdade.
Feitas essas considerações, concluo que a melhor solução que se possa
aplicar à presente hipótese com o intuito de preservar o princípio
constitucional do amplo acesso aos cargos públicos, as regras que impõe o
provimento após prévio concurso e a não-acumulação remunerada de cargos e, de
forma reflexa, a cidadania e o princípio da igualdade jurídica , é a de que a aposentadoria voluntária de
empregados públicos (administração direta e indireta) extingue o contrato de
trabalho.
[...]
1. A aposentadoria voluntária
de empregados públicos extingue o contrato de trabalho, portanto, é ilegal a
manutenção do vínculo de emprego sem nova aprovação em concurso público para o
mesmo cargo e, ainda, fora das hipóteses em que seria possível a acumulação
remunerada de cargos, em respeito ao disposto no art. 37, incisos II, XVI e
XVII da Constituição Federal;
2. Ao empregado público
que requer a aposentadoria são devidas as verbas rescisórias de acordo com a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Na hipótese de o Relator
entender que a aposentadoria espontânea não extingue o contrato de trabalho dos
empregados celetistas e que seria possível a continuidade laboral no mesmo
cargo, após a aposentadoria, mesmo sem a aprovação em concurso público, então,
esta representante ministerial opina pela impossibilidade de acumulação
remunerada de proventos e vencimentos decorrentes do mesmo cargo, em
consonância com as conclusões do Parecer COG n. 761/08.
Ressalto que o processo no qual foi
exarada essa manifestação (CON-08/00541537) ainda não tem decisão de mérito e
se encontra na Consultoria-Geral, conforme trâmite relatado no site www.tce.sc.gov.br.
Entretanto, em que pese a ausência de
manifestação definitiva sobre essa matéria em sede de consulta, entendo
prudente a determinação para realização de audiência do responsável, para
evitar a ocorrência de prescrição, e, se for o caso, o posterior sobrestamento
até a decisão a ser proferida no Processo CON-08/00541537.
Ressalto ainda que há a possibilidade
de que a Sra. Marisa Maria Fiamoncini tenha acumulado a remuneração e os
proventos do mesmo cargo público, o que, por si só, vai de encontro ao
entendimento firmado no Parecer COG 16/2009, descrito pela instrução à fl. 41.
Ante o exposto, o Ministério Público
de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso II, da Lei
Complementar no 202/2000, manifesta-se pela AUDIÊNCIA do responsável, com fundamento no art.
35 e parágrafo único da Lei Complementar n. 202/2000, para apresentação de
alegações de defesa acerca da irregularidade referente à contratação irregular
de Marisa Maria Fiamoncini sem prévia aprovação em concurso público e após a
extinção de anterior contrato de trabalho por aposentadoria voluntária.
Florianópolis, 11 de
março de 2011.
Cibelly
Farias
Procuradora
do Ministério Público de Contas
[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16
ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 508-509.
[2] A Lei Complementar n. 101, de 4/5/2000, regulamenta
o art. 169 no que toca aos limites com gastos de pessoal.
[3] Há dois aspectos exigíveis para a licitude do
processo: 1º) que haja ao menos um recurso com efeito suspensivo; 2º) que se
tenham divulgado previamente os padrões mínimos necessários para continuidade
da relação de emprego, fixados em conformidade com a natureza da função
pertinente (art. 3º, IV, da lei).
[4] Adotamos aqui a lição de DÉLIO MARANHÃO, que, com
base
[5] Diante da exigência legal de rescisão vinculada, o
empregado é titular do direito à reintegração no emprego, se a Administração
extinguir o pacto laboral fora das hipóteses da lei ou em situação contaminada
de vício de legalidade.
[6] MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 834-836.
[7] Vide art. 33. inc. VII, da Lei Federal n. 8.112/1990
e art. 168, inciso IV, da Lei Estadual n. 6.745/1985.
[8] Conforme art. 37, incisos XVI e XVII da Constituição
Federal.
[9] MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio
Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 114-115.
[10] BARROSO. Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.