Despacho no:

 

GPDRR/204/2015

 

 

Processo nº:

 

DEN 12/00091458

 

 

 

Origem:

 

Município de Florianópolis

 

 

 

Assunto:

 

Irregularidades atinentes à venda de área pública (Ponta do Coral) e alteração de zoneamento visando beneficiar empreendimento privado

 

Trata-se de denúncia formulada pelo Sr. Loureci Ribeiro, relatando possíveis irregularidades na transação da área pública da Ponta do Coral, a qual se encontra situada no Município de Florianópolis, bem como na aprovação da Lei Complementar Municipal nº 180/2005.

Na ocasião, acostaram-se aos autos os documentos de fls. 03-72.

Ao receber o feito, a Diretoria de Controle dos Municípios entendeu que o assunto em análise não diz respeito ao Município de Florianópolis, razão pela qual remeteu os autos à Diretoria de Controle da Administração Estadual - DCE (fls. 73-74).

A DCE, por sua vez, examinou o caderno processual e, sob o relatório de nº 265/2012, manifestou-se no seguinte sentido (fls. 75-81):

 

3.1 Não conhecer da presente denúncia, por não atender aos requisitos de admissibilidade de que trata o art. 65, § 1º da Lei Complementar nº 202/2000 (estadual), por não se tratar de matéria de competência deste Tribunal, vez que se trata de área de marinha, de propriedade da União.

3.2 Encaminhar cópia integral destes autos ao Tribunal de Contas da União (TCU), para as providências que entender cabíveis.

3.3 Dar ciência da decisão ao interessado, Sr. Loureci Ribeiro.

3.4 À Secretaria-Geral (SEG/DICE), deste Tribunal, nos termos do art. 36 da Resolução nº TC-09/2002, alterado pelo art. 7º da Resolução nº TC-05/2005, para que proceda à ciência do despacho do Relator aos Conselheiros e aos Auditores Substitutos de Conselheiros.

 

É o relatório.

A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da entidade em questão está inserida entre as atribuições dessa Corte de Contas, consoante os dispositivos constitucionais, legais e normativos vigentes (art. 31 da Constituição Federal, art. 113 da Constituição Estadual, art. 1º, inciso III, da Lei Complementar Estadual nº 202/2000, arts. 22, 25 e 26, da Resolução TC nº 16/1994 e art. 8° c/c art. 6° da Resolução TC nº 06/2001).

 

1. Dos requisitos de admissibilidade

 

Ressalte-se, inicialmente, que qualquer cidadão é parte legitima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas do Estado (art. 65, caput, da Lei Complementar Estadual nº 202/2000).

À vista disso, cabe aqui mencionar que a denúncia está sujeita a requisitos de admissibilidade, a saber: a) matéria de competência do Tribunal de Contas; b) administrador sujeito à jurisdição do Tribunal de Contas; c) linguagem clara e objetiva; d) indícios de prova; e) nome legível do denunciante, com a sua assinatura, qualificação e endereço.

Para a Diretoria de Controle da Administração Estadual, o Tribunal de Contas de Santa Catarina não tem competência para analisar o presente feito, uma vez que a área objeto da denúncia faz parte de terreno de marinha, sendo, portanto, propriedade da União (art. 20, inciso VII, CR/88).

Com a devida vênia, tenho para mim que não foi dada ao caso a melhor conclusão, já que a área técnica não se atentou à propalada Emenda Constitucional nº 46/2005 e às particularidades que envolvem a conjuntura fática trazida à baila.

Com efeito, registre-se que, em 05.05.2005, promulgou-se a EC nº 46/2005, a qual excluiu do rol de bens da União as ilhas costeiras que contenham a sede de Municípios, como é o caso de Florianópolis.

Para tanto, alterou-se o inciso IV, do art. 20, da Carta Magna de 1988, nos seguintes moldes:

 

Art. 20. São bens da União:

[...]

IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 46, de 2005)

 

 

Ao analisarem a referida emenda constitucional, Gabriel Quintão Coimbra e Aloísio Krholing[1] aduzem:

 

O art. 20 da Constituição assegurou à União a propriedade sobre os terrenos de marinha e acrescidos (VII), bem como sobre as ilhas costeiras que não pertencessem aos Estados, particulares ou municípios (IV), na antiga redação deste último dispositivo. Trata-se, portanto, de disciplinas constitucionais distintas (ilhas costeiras, terrenos de marinha e acrescidos), conquanto normalmente haja áreas de contato entre elas.

Os próprios senadores da República, ao votarem pela aprovação da PEC n. 15/2004 (EC n. 46/2005), tinham como objetivo excluir do rol de bens da União todo o interior das ilhas costeiras que tenham sede de município, como é o caso de Vitória, Florianópolis e São Luís. Tal entendimento foi consignado nos registros históricos dos trabalhos parlamentares na votação da Emenda Constitucional nº 46/2005, os quais podem ser utilizados para comprovar a mens legislatoris. (Grifou-se)

 

Dito isso, cabe aqui mencionar que, dentre os bens da União, estão os “terrenos de marinha e seus acrescidos”, conforme apontou a área técnica.

Inobstante essa linha exegética, anote-se que após a EC nº 46/2005 criaram-se interpretações divergentes quanto à situação dos terrenos de marinha localizados nas ilhas costeiras.

Para Gabriel Quintão Coimbra e Aloísio Krholing, a interpretação sistemática dos incisos IV e VII, do art. 20, da CRFB/1988 conduz à seguinte conclusão: “se os terrenos de marinha e acrescidos estão localizados em municípios com sede em ilhas costeiras, não há que se falar em propriedade da União, salvo nos casos mencionados no próprio dispositivo, a saber, áreas afetadas ao serviço público federal, à unidade ambiental federal e as referidas no art. 26, II da Carta Maior”.

É sabido, entretanto, que o assunto é controvertido, o que levou o Supremo Tribunal Federal, em 26.09.2013, a reconhecer a repercussão geral da matéria, nos seguintes termos:

 

BEM PÚBLICO. TERRENO DE MARINHA. ILHAS COSTEIRAS. SEDE DE MUNICÍPIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 20, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL APÓS EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 46/2005. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada[2].

 

Em tempo, sublinhe-se que o recurso supracitado ainda não foi julgado pela Suprema Corte, o que faz com que o assunto continue a suscitar diversas discussões.

Em razão disso, entendo que a Corte de Contas Catarinense não pode afastar sua competência com fulcro no art. 20, inciso VII, da CRFB/88, pois é essencial, no presente caso, considerar os efeitos da EC nº 46/2005.

Independentemente da tese que se desenvolva quanto à matéria, cabe ressaltar que somente o Supremo Tribunal Federal, na condição de intérprete da norma constitucional, pode direcionar o caminho a ser trilhado.

Havendo divergências, não coaduno do posicionamento de que os autos devam ser remetidos à Corte de Contas da União, pois, ao chegar àquele Tribunal, poder-se-ia, nesse ínterim, haver decisão do STF reconhecendo que os terrenos de marinha situados nas ilhas costeiras não são de propriedade da União, o que atrairia a competência do TCE/SC.

Note que os presentes autos foram protocolizados em 05.12.2011 e, até o momento, a denúncia sequer foi conhecida. Encaminhar os autos ao TCU culminaria no retardamento processual, mormente porque o feito poderia retornar ao TCE/SC, com base na decisão proferida pelo STF.

Além disso, impõe-se consignar que o Estado de Santa Catarina possuía o domínio útil do imóvel em discussão, conforme se depreende da certidão imobiliária que, neste momento, colaciono ao caderno processual.

Nesse trilhar, cabe lembrar que o domínio útil confere ao enfiteuta o direito de usar, gozar e usufruir, de modo mais completo possível, de todas as qualidades da coisa enfitêutica[3].

Quanto ao assunto, cabe trazer à colação o escólio de Adriano Martins de Paiva[4]:

 

A enfiteuse administrativa, apesar de se originar da enfiteuse do direito civil, com ela não se confunde, já que está regulamentada em legislação própria, através das normas de direito público contidas no Decreto-lei 9.760/46.

No entanto, o conceito é o mesmo, segundo dispõe o art. 678 do antigo CCB, o qual informa que o instituto constitui espécie de direito real sobre coisa alheia, na qual a propriedade se decompõe em nua-propriedade e domínio útil, ficando o proprietário de fato, enfiteuta, no uso, gozo e fruição da coisa, podendo até dispor da mesma, desde que antes dê o direito de preferência ao nu-proprietário. (Grifou-se)

 

De igual sorte, eis o magistério de Gabriel Quintão Coimbra e Aloísio Krholing:

 

Em suma, o titular do domínio útil (foreiro ou enfitêuta) apresenta-se em posição jurídica inferior em relação àquele que detém a propriedade plena de um imóvel, no que toca à sua segurança patrimonial, por força dos vários elementos já expostos, como o pagamento do foro anual, laudêmio, etc. Por outro lado, em algumas circunstâncias, o enfiteuta sujeitar-se-á aos mesmos ônus do titular do domínio pleno, como a possibilidade de desapropriação de seu domínio útil, sujeição a impostos, submissão ao poder de polícia da Administração Pública, dentre outros. Por isso, costuma-se afirmar que o foreiro (enfiteuta) consiste num verdadeiro “pseudoproprietário”. (Grifou-se)

 

Dessarte, vê-se que Estado, ao possuir um título que lhe confere o domínio útil de terreno de marinha, tem, na verdade, a “propriedade de fato” desse imóvel.

No meu sentir, essa situação reforça, mais uma vez, o dever da Corte de Contas Catarinense de examinar a matéria trazida à lume pelo denunciante.

Além disso, acrescente-se que, nos termos da peça inicial, houve um dano ao Estado de Santa Catarina, situação, por si, que confere legitimidade ao TCE/SC para examinar o mérito processual.

Ainda que eventualmente a Suprema Corte reconheça que os terrenos de marinha situados em ilhas costeiras são bens da União, note que o Estado de Santa Catarina possui um prejuízo de grande relevo, caso confirmados os fatos noticiados pelo denunciante.

É importante deixar assente que não existem dúvidas de que o imóvel denominado “Ponta do Coral” era de domínio do Estado de Santa Catarina. Entretanto, importante esclarecer todos os fatos que envolveram a venda do bem público ao particular, pois, em princípio, essa transação ocorreu de forma ilegal e, por consequência, gerou prejuízos ao Estado Catarinense.

A meu ver, a denúncia deve ser conhecida, para que, assim, sejam realizadas diligências relacionadas ao assunto, nos seguintes aspectos: a) lei/decreto que concedeu o domínio útil da Ponta do Coral ao Estado de Santa Catarina ou a terceiros; b) previsão legal/constitucional para alienar imóveis com enfiteuse administrativa; c) autorização da Secretaria do Patrimônio da União para realizar a transação; d) autorização legislativa estadual; e) procedimento licitatório; f) destinação dos recursos oriundos da venda; g) legislação em vigor à época.

Para encerrar a análise dos requisitos de admissibilidade, anote-se que os demais elementos também foram preenchidos, vez que a exordial possui linguagem clara, está assinada, com nome legível do denunciante, sua qualificação e endereço e, ainda, há indícios de provas nos autos.

No tocante à Lei Complementar Municipal nº 180/2005, cabe pontuar que os Tribunais de Contas não possuem competência para fazer o controle concentrado de constitucionalidade, cuja atribuição é do Poder Judiciário.

Lado outro, sabe-se que “o Tribunal de Contas[5], no exercício de suas atribuições, poderá pronunciar-se, em casos concretos, sobre a inconstitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” (art. 149, caput, do Regimento Interno do TCE/SC).

Em face disso, entendo que não deve ser afastada, de pronto, a possibilidade de análise da norma, consoante o fez a Diretoria de Controle da Administração Estadual.

Contudo, tenho para mim que esse estudo deve ser efetuado no momento em que se realizar o exame meritório, razão pela qual considero desnecessárias maiores digressões quanto ao assunto.

Por fim, acrescente-se que, neste momento, estou acostando aos autos documentos de suma importância à análise processual, a saber: a) lei (nº 2.166/1959) que autorizou o Estado de Santa Catarina a adquirir o imóvel denominado Ponta do Coral; b) decreto (nº 11.708/1980) que permitiu alienar o imóvel; c) escritura pública de compra e venda do terreno alodial e transferência de domínio útil de terreno de marinha; d) certidão imobiliária.

Ante o exposto, o Ministério Público de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, incisos I e II, da Lei Complementar nº 202/2000, manifesta-se:

1. Por conhecer da denúncia formulada pelo Sr. Loureci Ribeiro, nos termos do art. 65, § 1º, da Lei Complementar Estadual nº 202/2000;

2. Por realizar diligências junto à Secretaria de Estado da Administração, a fim de que o aludido órgão preste informações, as quais devem ser corroboradas por provas documentais, quanto aos seguintes aspectos:

2.1. Lei/decreto que concedeu o domínio útil da Ponta do Coral ao Estado de Santa Catarina ou a terceiros;

2.2. Previsão legal/constitucional para alienar imóveis com enfiteuse administrativa;

2.3. Autorização da Secretaria do Patrimônio da União para efetuar a transação;

2.4. Autorização legislativa estadual para a realização da venda da Ponta do Coral;

2.5. Procedimento licitatório;

2.6. Destinação dos recursos oriundos da venda;

2.7. Legislação em vigor à época.

2.8. Outras informações e documentos que entender pertinentes.

Florianópolis, 14 de julho de 2015.

 

Diogo Roberto Ringenberg

Procurador do Ministério

Público de Contas

 



[1] COIMBRA, Gabriel Quintão; KRHOLING, Aloísio. Terrenos de Marinha e Acrescidos: novas perspectivas para o debate. Disponível em:  http://www.fdv.br/publicacoes/periodicos/revistadepoimentos/n10/4.pdf. Acesso em: 14 jul. 2015.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 636.199, do Espirito Santo. Relatora: Min. Rosa Weber, em 26 set. 2013. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 13 jul. 2015.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 601.

[4] PAIVA, Adriano Martins de. As repercussões da EC n. 46/2005 que exclui do domínio da União as ilhas costeiras que contenham sede de município. Disponível em: file:///C:/Users/9684301/Downloads/asrepercussoesdaec46_adrianomartins%20(2).pdf. Acesso em: 14 jul. 2015.

[5] Súmula nº 347, do Supremo Tribunal Federal: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.