PARECER nº: |
MPTC/39701/2016 |
PROCESSO nº: |
REC
15/00552426 |
ORIGEM : |
Fundo
Estadual de Incentivo à Cultura - FUNCULTURAL |
INTERESSADO: |
Gilmar
Knaesel |
ASSUNTO : |
Recurso
de Reconsideração da decisão exarada no processo nº PCR-11/00463230 |
1
– RELATÓRIO
Cuida-se de
Recurso de Reconsideração interposto pelo Sr. Gilmar Knaesel em face do Acórdão
nº 523/2015,[1]
em que se decidiu pela aplicação de multa ao recorrente, por irregularidades na
concessão de repasse autorizado por meio do Fundo Estadual de Incentivo à
Cultura – FUNCULTURAL.
Auditores da
Diretoria de Recursos e Reexames – DRR sugeriram o conhecimento do recurso,
para negar-lhe provimento, com a ratificação na íntegra do julgamento recorrido
(fls. 34/51).
2
– ADMISSIBILIDADE
O recurso é
singular, tempestivo,[2] e
foi manejado por responsável legitimado para tanto.
Preenchidos os
requisitos de admissibilidade previstos no art. 77 da Lei Complementar n°
202/2000, o recurso merece ser conhecido.
3
– ANÁLISE
3.1
– Prescrição administrativa
O recorrente
suscitou a ocorrência de prescrição administrativa relativamente aos fatos em
análise, sob o argumento de que, entre a data dos repasses (26-10-2005 e
13-4-2006) e a data da publicação do julgamento (14-9-2015), teriam
transcorrido mais de 5 anos.
A Constituição de 1988 adotou a
prescritibilidade como regra, no Capítulo dos Direitos Individuais e Coletivos,
explicitando as exceções em outros capítulos, como a referente às ações de
ressarcimento por prejuízos causados ao erário, que são imprescritíveis (art.
37, § 5º, da Constituição).
No âmbito do Tribunal de Contas
da União, no que concerne à prescrição para imposição de multas, tem
prevalecido a tese da aplicação de regras legais vigentes no Direito Civil
(Acórdãos nºs 8/97 - 2ª Câmara; 11/98 - 2ª Câmara; 210/99 – 1ª Câmara; 71/2000
– Plenário; 1.715/2006 – 1ª Câmara).[3]
O art. 205 do Novo Código Civil
preconiza que a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado
prazo menor, devendo este ser o prazo aplicado ao caso.
Considerando que o período
transcorrido entre a realização do repasse e a citação do responsável, ocorrida
em 12-11-2013,[4] não ultrapassou 10 anos,
não há que se falar em prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de Contas.
Por oportuno, insta sublinhar que
a prescrição intercorrente quinquenal prevista na Lei Complementar Estadual nº
588/2013 também não incide no caso.
A teor do que dispõe o art. 24-A,
§ 2º, da Lei Complementar Estadual nº 202/2000, o prazo de cinco anos para o
julgamento da ação deve ser contado a partir da citação do administrador, ou da
data de sua exoneração do cargo, considerando-se a mais recente.
Como a citação do Sr. Gilmar
Knaesel ocorreu em 12-11-2013, o lustro prescricional somente ocorrerá no ano de 2018.
Ainda que se olhe a questão sob a
óptica do art. 2º, IV, da Lei Complementar nº 588/2013,[5]
melhor sorte não assiste ao recorrente, uma vez que a referida lei completará 5
anos apenas em 2018.
Por tais razões, não merece
acolhimento a prejudicial ventilada.
3.2
– Valor das multas aplicadas
O recorrente
insurge-se contra o valor das multas aplicadas, procurando demonstrar, em
tabela específica,[6]
que o Tribunal vem arbitrando, em relação a irregularidades idênticas, sanções
pecuniárias em valores variáveis, sem um critério lógico.
A fixação de
multas pelo Plenário do Tribunal de Contas, nos termos do art. 70 da Lei
Complementar nº 202/2000, não atende a critérios quantitativos pré-fixados.
Pelo
contrário, cabe aos julgadores, atentos às peculiaridades do caso concreto,
arbitrar o valor das multas dentro do parâmetro legal estabelecido, em atuação
discricionária legalmente autorizada.
Sobre o
assunto, trago o preclaro voto proferido pelo Conselheiro Salomão Ribas Júnior,
posteriormente chancelado pelo Egrégio Tribunal Pleno:[7]
Expressamente,
no tocante aos Tribunais de Contas, o art. 73, caput, da CF, assegura,
no que couber, ao Tribunal de Contas da União (TCU), o exercício das
atribuições previstas no art. 96 (dispõe sobre a competência privativa dos
tribunais judiciários) e, quanto aos Ministros do TCU, as garantias,
prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do STJ (§
3º). Extensivamente, essas disposições são aplicadas às Cortes de Contas
Estaduais por força do art. 75 da CF. Quanto ao valor das multas, a
Constituição Federal assevera que estas devam ser proporcionais ao dano causado
ao erário (art. 71, inc. VIII).
De todo modo,
incontáveis princípios e diretrizes norteiam as ações deste Tribunal, o qual,
através do Corpo Deliberativo, exara suas decisões com fundamentos próprios do
Relator e/ou com apoio nas manifestações técnicas e/ou do Ministério Público de
Contas.
Quando se trata
das multas a serem aplicadas aos responsáveis a Lei Orgânica do Tribunal de
Contas Catarinense estabelece o valor máximo da multa (até R$ 5.000,00, art.
70, caput, Lei Complementar Estadual n. 202, de 2000); as hipóteses em
que pode ser cominada; e remete ao Regimento Interno (RI) a gradação dessa
multa (art. 70 da LC), a qual é especificada por meio dos dispositivos do art. 109
do RI (Resolução n. TC-06/2001).
Ao Relator, que
preside a instrução dos processos distribuídos para sua relatoria (arts. 35 da
LC 202 e 123 do RI) e formula relatório e voto – cabe a avaliação do conteúdo
do processo, a existência de ilegalidades, sua gravidade, a complexidade do(s)
ato(s), reincidências e outros aspectos específicos – e com base nessas
informações extraídas dos autos, mensurar o valor da multa a ser cominada,
submetida à deliberação do Órgão Colegiado do Tribunal de Contas. Isto significa
que a multa não constitui ato pessoal, isolado, injustificado; sua aplicação
resulta de deliberação coletiva, o que por si só afasta hipótese de abuso de
poder, e conduz seguramente para a observância do princípio da razoabilidade.
[...]
É competência do
Relator e do Colegiado mensurar, segundo sua convicção, a multa a ser aplicada.
Deste modo, as
alegações ventiladas não merecem prosperar.
3.3
– Tese da infração continuada e da violação ao princípio do non bis in idem
Ao tecer
comentários acerca das sanções impostas pelo Tribunal de Contas, o recorrente
invocou, em sua defesa, a recente tese formulada pelo Exmo. Conselheiro
Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, acerca da aplicação de multas em infrações
administrativas continuadas.
Auditores da
DRR recomendaram a desconsideração da tese invocada, argumentando, entre outros
pontos, que as multas aplicadas seguidamente ao Sr. Gilmar Knaesel nos últimos
anos não ofendem o princípio do non bis
in idem, tampouco caracterizam infrações continuadas nos moldes
estabelecidos no Direito Penal.
Em voto
divergente apresentado no julgamento do processo n° PCR-08/00460294, o
Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior propôs o cancelamento das
multas impostas ao Sr. Gilmar Knaesel, em função de irregularidades cometidas
durante o processamento de pedido de repasse junto ao Fundo Estadual de
Incentivo ao Turismo -FUNTURISMO.
Na
oportunidade, o Exmo. Conselheiro sustentou que multas análogas foram
sistematicamente aplicadas pela Corte de Contes ao longo dos últimos anos,
acarretando penalização desproporcional e indevida ao recorrente.
Muito embora a
tese não tenha sido acatada pelos demais Conselheiros no processo em questão,
voltou a ser objeto de debate no julgamento do processo nº REC-14/00274831,
oportunidade em que o Egrégio Tribunal Pleno adotou a linha divergente
propugnada, exarando o Acórdão nº 725/2015.
Considerando o
recente Acórdão, torna-se necessário tecer considerações sobre o ponto, no
intuito de contribuir para o amadurecimento da questão.
Nos termos do
voto divergente proferido no processo nº PCR-08/00460294, a tese calca-se nos
seguintes argumentos principais: a) as reiteradas multas aplicadas pelo
Tribunal ao Sr. Gilmar Knaesel ofendem o princípio do non bis in idem; e b) as irregularidades formais cometidas pelo Sr.
Gilmar Knaesel ao longo de sua gestão na SOL configuram infrações
administrativas continuadas, devendo ser tratadas de modo análogo aos crimes
continuados, tal qual previsto na legislação penal (art. 71 do CP), em atenção
ao princípio da proporcionalidade das sanções.
No que tange
ao primeiro argumento, cabe esclarecer que o princípio do non bis in idem não incide sobre o caso em questão.
Com efeito, o
referido princípio se traduz na vedação imposta ao Estado de responsabilizar o
acusado mais de uma vez pela mesma conduta,[8]
aplicando reiteradas sanções por um mesmo ilícito, na mesma esfera de
competência.[9]
As reiteradas
multas aplicadas ao Sr. Gilmar Knaesel decorrem de irregularidades distintas,
ainda que análogas, relativas a diferentes repasses autorizados pelo
responsável como gestor máximo dos Fundos Estaduais de Incentivo à Cultura,
Esporte e Turismo.
O Exmo. Conselheiro
Adircélio de Moraes elencou, em seu voto divergente, uma série de julgados
desta Corte de Contes que ilustrariam a aplicação do referido princípio.
A análise dos
casos citados demonstra que a jurisprudência da Corte de Contas se inclina em
aplicar o princípio somente em relação a irregularidades que tratem de fatos
coincidentes, no todo ou em parte, mas não de fatos análogos praticados em
contextos próprios (processos nºs REC 08/00316096,[10]
TCE-04/05443897,[11]
RE-05/00513937,[12]
REC-10/00811694,[13]
RLI-11/00314668[14]
e SLC-07/00446192[15]).
É certo que,
em determinados processos que envolvam, por exemplo, o exame de duas ou mais licitações
e contratos, o Tribunal tem por hábito aplicar apenas uma sanção em virtude de
irregularidades análogas.
Tal exemplo
foi empregado para justificar a aplicação do princípio do non bis in idem no caso que ora se analisa, argumentando-se ser
inconcebível conferir à matéria trato processual diverso em um e outro caso.
Todavia, na
hipótese acima ventilada, não se está diante de aplicação do princípio do non bis in idem, mas de mera otimização
de análise, considerando a pluralidade de objetos análogos porventura julgados
no mesmo processo.
Ao decidir
pela aplicação de apenas uma multa em virtude de irregularidades análogas
praticadas em dois ou mais contratos analisados no mesmo processo, o julgador
invariavelmente levará em conta tal fato para majorar o valor da multa, já que
as irregularidades, embora análogas, não se confundem, posto que decorrem de
condutas diversas e fatos diferentes.
Dessa feita, o
princípio do non bis in idem encontra
aplicação somente nos casos de penalizações cumulativas pela mesma conduta, de
modo que a primeira sanção imposta exclui a possibilidade de aplicação de
outras da mesma natureza.
Neste sentido,
caso a hipótese esboçada realmente tratasse da aplicação do referido princípio,
não seria possível (e necessária) a majoração da multa considerando a
reiteração de condutas, já que o princípio, repita-se, pressupõe que se esteja
analisando rigorosamente a mesma conduta, ou condutas substancialmente
interligadas, de modo que a sanção seja aplicada levando em conta apenas uma única
irregularidade, e não várias da mesma natureza.
Interessante
notar, ao arremate, a incompatibilidade que existe entre o argumento da
infração continuada, o qual será melhor analisado a seguir, e o argumento
baseado no princípio do non bis in idem.
É que, ou se
está diante de irregularidades diferentes, porém análogas, que justificam em
tese a caracterização da infração como continuada, ou se está diante de
irregularidades iguais, no todo ou em parte, baseadas no mesmo fato, que
justificam a aplicação de apenas uma penalidade, com exclusão das demais, em
aplicação ao princípio do non bis in idem.
À vista das
razões expostas, inaplicável o aludido princípio ao caso em análise.
Relativamente
ao segundo argumento, pretende-se utilizar, por analogia, a teoria penal dos
crimes continuados, para o fim de relativizar a grande quantidade de multas
aplicadas ao recorrente, ao longo dos últimos anos.
A teoria da
continuidade delitiva decorre basicamente do art. 71 do Código Penal, o qual
dispõe:
Art.
71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução
e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do
primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais
grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
O Código Penal
prevê a possibilidade de, considerando-se as circunstâncias similares de tempo,
lugar e maneira de execução, tratar-se uma multiplicidade de crimes idênticos
como delito único, por ficção jurídica, para fins de se aplicar punição mais
branda.
As irregularidades
análogas praticadas pelo Sr. Gilmar Knaesel teriam resultado em uma “repetição
infindável de multas com razão fática idêntica, ao mesmo gestor, sem a mínima
atenção ao contexto global da gestão, ou conexão entre os processos diversos e
específicos que resultam na mesma sanção”.[16]
Diante de tal
situação, propôs-se a aplicação analógica do art. 71 do Código Penal ao caso em
apreço, a fim de conferir “proporcionalidade e justiça no apenamento do
responsável”.
Embora seja
factível tratar questões do Direito Administrativo Sancionador sob a óptica do
Direito Penal, em função da raiz punitiva comum que une ambas as esferas, tal
fato não implica em permissivo irrestrito para o intercâmbio de institutos e
regramentos, porquanto cada esfera legal possui edifício próprio de princípios
e normas que lhes são aplicáveis.
Neste sentido,
conforme atesta o próprio Fábio Medina Osório,[17]
há no Direito Administrativo Sancionador pátrio um “sistemático silêncio” sobre
a possibilidade de aplicação da teoria da continuidade delitiva ao campo
administrativo, sendo “forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase
totalidade das legislações administrativas repressoras no campo federal, nos
Estados e nos Municípios”.[18]
O “sistemático
silêncio” do legislador pátrio sobre o assunto deve ser interpretado em termos
restritivos, posto que as regras penais de concurso de crimes têm caráter específico,
não podendo ser aplicadas, à míngua de autorização legislativa própria, a
outros campos do direito sancionador.
Neste sentido,
preciso ensinamento de Heraldo Garcia Vitta:[19]
Se no Direito Penal
brasileiro há regras explícitas sobre o concurso real de normas, em virtude das
quais há redução de pena, como devemos encarar o problema sobre o prisma do
Direito Administrativo? Simplesmente, aplicaremos as normas daquela seara do
Direito?
No direito italiano, ao
menos durante a vigência da Lei 689/81, o artigo 8º, 1º, regula o concurso
formal de infrações, mas não a continuidade delas. Por isso, neste caso, ocorre
o cúmulo das sanções, ou seja, “sem qualquer desconto decorrente de eventual
unidade de desígnio”, na expressão de Pasquale Cerbo (nota 9). [...]
O Direito Penal é especial,
contém normas particulares, próprios desse ramo jurídico; em princípio, não
podem ser estendidas além dos casos para os quais foram instituídas. De fato,
não se aplica norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi estabelecida;
não se pode pôr de lado a natureza da lei, nem o ramo do Direito a que pertence
a regra tomada por base do processo analógico. Na hipótese de concurso de
crimes, o legislador escolheu critérios específicos, próprios desse ramo de
Direito. Logo, não se justifica a analogia das normas do Direito Penal no tema
concurso real de infrações administrativas.
A forma de sancionar é
instituída pelo legislador, segundo critérios de discricionariedade.
Compete-lhe elaborar ou não regras a respeito da concorrência de infrações
administrativas. No silêncio, o cúmulo material é de rigor.
Mais adiante,
Heraldo Garcia Vitta sustenta seu posicionamento citando outros autores:[20]
Régis Fernandes de Oliveira,
de forma objetiva, resume seu entendimento, explicando que, no silêncio da lei,
aplicam-se as regras do cúmulo material, isto é, as penas são somadas para
todos os efeitos.
Susana Lorenzo entende não
ser possível utilizar, analogicamente, normas do Direito Penal; segundo a autora,
“em derecho administrativo, la regla es que se sancionará por todas las
infracciones que se cometan, aplicándose las penas em su totalidade”.
Perfilhamos o entendimento
segundo o qual, na falta de texto expresso, ocorre o cúmulo material, pois nas
palavras de Zanobini, “Se a pessoa tinha um duplo dever de não cometer o fato,
cometendo-o, viola duas diversas obrigações e deve suportar as consequências da
dupla transgressão”.
Aliás,
importante notar que, no Direito Administrativo brasileiro, o legislador tem
procurado determinar o cúmulo material de infrações, conforme se observa, por
exemplo, no art. 266 da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro),
segundo o qual “quando o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais
infrações, ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as respectivas penalidades”.
Da mesma
forma, o art. 72, § 1º, da Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre sanções penais e
administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente: “Se o infrator
cometer, simultaneamente, duas ou mais infrações [administrativas, pois o
disposto está inserido no Capítulo VI – Da Infração Administrativa] ser-lhe-ão
aplicadas, cumulativamente, as sanções a elas cominadas”.
E também o
art. 56, parágrafo único, da Lei nº 8.078/90, que regula a proteção do
consumidor: “As sanções [administrativas] previstas neste artigo serão
aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo
ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar antecedente ou
incidente de procedimento administrativo”.[21]
Como se vê,
evidente a inclinação do legislador pela cumulação material das infrações
administrativas, razão pela qual não se justifica a transposição da teoria
penal da continuidade delitiva.
É certo que a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera aplicável, em caráter
excepcional, a teoria da continuidade delitiva às infrações administrativas de
mesma espécie, condicionando a caracterização, todavia, a infrações apuradas na
mesma oportunidade, em uma única ação fiscal (REsp nº 948.728-RJ, DJ 25-2-2008;
REsp nº 643.634-PE, DJ 17-5-2006; REsp nº 178.066-PE, DJ 9-5-2005 e REsp nº
1.066.088-SP, DJ 2-9-2008).
Neste sentido:[22]
ADMINISTRATIVO – SUNAB –
SANÇÃO ADMINISTRATIVA POR INFRAÇÃO AO TABELAMENTO DE PREÇO – NATUREZA
CONTINUADA.
1. A jurisprudência desta
Corte, em reiterados precedentes, tem entendido que há infração continuada
quando a Administração Pública, exercendo o poder de polícia, constata, em
uma mesma oportunidade, a ocorrência de infrações múltiplas da mesma
espécie. A caracterização da continuidade delitiva administrativa se dá em
uma única autuação (múltiplos precedentes). (Grifos meus)
Assim, no
máximo, referido entendimento poderia ser aplicado ao exemplo ilustrado
anteriormente, acerca das irregularidades análogas tratadas no mesmo processo.
Mas, à toda
evidência, não tem aplicação ao caso em comento, posto que as infrações
cometidas pelo Sr. Gilmar Knaesel se deram em diferentes processos de repasse
ao longo de vários anos, tendo sido apuradas em momentos distintos de
fiscalização.
De mais a
mais, o próprio Código Penal, em seu art. 72,[23]
estabelece que, no concurso de crimes, as penas de multa devem ser aplicadas
distinta e integralmente.
Ainda que se
admitisse, a título argumentativo, a possibilidade de aplicação da tese ao caso
em apreço, restaria a difícil missão de fixar os critérios de análise
apropriados.
As
dificuldades de ordem prática foram notadas inclusive por Fábio Medina Osório,
ao sublinhar o “difícil problema de identificar critérios seguros que permitam
o reconhecimento da continuidade de infrações”, considerando o “vazio normativo
reinante”.[24]
Neste
particular, aspecto importante a ser levado em conta diz respeito ao tempo de
cometimento das infrações, requisito necessário na caracterização da
continuidade delitiva, nos termos do art. 71 do CP.
De acordo com
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o lapso temporal entre as
condutas não deve superar 30 dias, sob pena de descaracterização da
continuidade:[25]
É assente na doutrina que
não há “como determinar o número máximo de dias ou mesmo de meses para que se
possa entender pela continuidade delitiva. 4. O Supremo Tribunal Federal,
todavia, lançou luz sobre o tema ao firmar, e a consolidar, o entendimento de
que, excedido o intervalo de 30 dias entre os crimes, não é possível ter-se o
segundo delito como continuidade do primeiro: HC 73.219/SP, Rel. Min. MAURÍCIO
CORRÊA, DJ de 26/04/1996, e HC 69.896, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de
02/04/1993.
Considerando
que o Sr. Gilmar Knaesel atuou na Secretaria de Estado de Cultura, Turismo e
Esporte pelo período de 8-3-2005 a 31-3-2010, cometendo diversas infrações
idênticas ao longo de sua gestão, torna-se problemático conciliar tal situação
com as balizas jurisprudenciais de caracterização da infração continuada.
De outra
ponta, caso se adote como critério temporal o exercício financeiro,[26]
incorre-se no risco de englobar em apenas uma sanção pecuniária uma quantidade
expressiva de irregularidades cometidas ao longo do mesmo ano, acarretando, de
maneira inversa, reduzida e desproporcional punição ao agente.
Em casos tais,
como ressalta o próprio Fábio Medina Osório, “se a
ficção da continuidade, além de atuar no vazio normativo, vier a impactar o
apenamento para além da proporcionalidade, não haverá permissivo constitucional
ou legal implícito a viabilizar essa operação”.[27]
Destarte,
considerando os significativos entraves doutrinários, jurisprudenciais,
legislativos e práticos da questão, deve o Tribunal se manter na linha de
julgamento adotada até então, tomando por base a teoria do concurso material de
infrações.
Ultrapassadas
as questões de ordem geral, passo ao exame concreto das multas aplicadas ao Sr.
Gilmar Knaesel, no acórdão recorrido.
3.4
– Repasse de recursos públicos sem a formalização de contrato/termo de convênio
ou instrumento congênere
O recorrente
pretende afastar a multa aplicada no item 6.4.1
do Acórdão nº 523/2015, sob o argumento de que, ao tempo do repasse, a unidade
gestora não dispunha de condições de infraestrutura adequadas à boa consecução
de suas atividades.
O argumento
empregado na peça recursal não merece acolhida, porquanto eventuais
deficiências estruturais dos órgãos públicos não podem servir de justificativa
para o descumprimento da lei.
De outro lado,
é cediço que o termo formal de ajuste é “indispensável
para estabelecer as responsabilidades e obrigações do proponente que teve
projeto de incentivo aprovado”.[28]
Recentemente,
os Exmos. Conselheiros Wilson Rogério Wan-Dall e Luiz Eduardo Cherem
apresentaram voto pugnando pelo cancelamento de multas baseadas na irregularidade
que ora se discute, sob o argumento de que as subvenções sociais concedidas
antes do advento do Decreto Estadual n° 1.291/2008 não estariam sujeitas à
obrigatoriedade de formalização de termo de ajuste escrito, em função do
disposto no art. 16, § 3º, III, do Decreto Estadual n° 3.115/2005, acrescentado
pelo Decreto Estadual n° 3.503/2005 (REC-14/00714319
e REC-14/00552238).
Chamo a
atenção para o fato de que o art. 16, § 3°, III, do Decreto Estadual nº
3.115/2005, utilizado pelos Exmos. Conselheiros para fundamentar seus votos,
trazia exigência expressa no sentido de que as subvenções sociais deveriam
observar as normas previstas na Lei Estadual n° 5.867/81, senão vejamos:
Art. 16. [...]
§ 3º Os recursos financeiros dos Fundos
poderão ser empregados por meio:
I – da descentralização de créditos orçamentários,
na forma instituída pela Lei nº 12.931,
de 13 de fevereiro de 2004;
II – da celebração de convênios, com observância das
normas previstas no Decreto nº 307,
de 4 de junho de 2003;
III – da concessão de subvenções sociais, com
observância das normas previstas na Lei nº 5.867, de 27 de abril de 1981;
IV – da celebração de contratos, na forma instituída
pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. (Grifo meu)
A referida
lei, a qual dispõe sobre a concessão, pelo Estado, de subvenções sociais a
entidades de caráter privado, disciplina a obrigatoriedade de instrumentos
legais em seu art. 2°:
Art. 2º As subvenções serão concedidas
para atender aos encargos que, por interesse público ou através de convênios,
contratos e ajustes, venham a ser atribuídos às instituições de caráter
privado.
Com bem pontuou
o procurador de contas Diogo Roberto Ringenberg:[29]
[...] a redação imprópria da lei, que utiliza a
expressão ‘por interesse público ou através de convênios, contratos e ajustes’
não pode levar à falsa interpretação de que ou se exigirá a presença do
interesse público, ou se exigirá a formalização de convênio, contrato e ajuste.
Por certo que o repasse e utilização de qualquer valor público deve sempre atender
ao interesse público.
Como forma de garantir a sua concretização,
faz-se necessária a formalização de instrumento que estabeleça parâmetros
objetivos para futura averiguação do cumprimento da finalidade social do
repasse, por meio da análise da competente prestação de contas.
Ainda
que se argumente acerca da inexatidão do texto legal apontado, é certo que o
art. 116 da Lei nº 8666/93 torna aplicáveis aos ajustes e outros instrumentos
congêneres, incluída aí a subvenção social, as regras previstas para os
contratos administrativos (art. 40), entre as quais sobreleva a necessidade de
instrumento escrito disciplinando o ajuste das obrigações firmadas pelo Estado
com particulares.
Tanto a
elaboração de ajuste formal se fazia necessária, que o gerente de projetos
culturais da SOL, em parecer elaborado em 27-7-2005, recomendou ao gestor da Secretaria
a elaboração do referido instrumento (fl. 46 do processo n° PCR-11/00463230).
Deste modo,
irrelevante o fato de que o repasse em análise tenha se dado à conta do item de
despesa nº 335043 – Subvenções Sociais.[30]
Por fim,
registre-se que, em acórdão proferido na última sessão de 2015, o Egrégio
Tribunal Pleno, ao julgar o recurso nº REC-14/00522240, chancelou voto exarado
pela Conselheira Substituta Sabrina Nunes Iocken, confirmando a multa aplicada
ao Sr. Gilmar Knaesel no julgamento do processo nº TCE-0900538180, em virtude
da ausência de instrumento de ajuste escrito, concernente a repasse feito em
2007, por meio do FUNDESPORTE.
Desse modo, em
consonância com a recente decisão exarada pelo Tribunal de Contas, propugno
pela manutenção da sanção pecuniária.
4
– CONCLUSÃO
Ante o
exposto, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado de Santa
Catarina, com amparo na competência conferida pelo art. 108 da Lei Complementar
n° 202/2000, manifesta-se pela CONHECIMENTO do RECURSO de RECONSIDERAÇÃO, em
virtude do preenchimento dos requisitos de admissibilidade previstos no art. 77
da Lei Complementar nº 202/2000, para NEGAR-LHE PROVIMENTO, nos termos deste parecer.
Florianópolis, 17 de
fevereiro de 2016.
Aderson Flores
Procurador
[1] Acórdão exarado pelo Tribunal Pleno na
sessão ordinária realizada em 5-8-2015, por ocasião do julgamento do processo
nº PCR-11/00463230 (fls. 454/455 do referido processo).
[2] Acórdão publicado no DOTC-e em 14-9-2015
(fl. 462 do processo n° PCR-11/00463230) e recurso protocolado em 29-9-2015
(fl. 2), respeitando o prazo de 30 dias legalmente previsto.
[3] Esse entendimento tem sido aplicado pelo
Tribunal de Contas de Santa Catarina, mormente a partir da decisão do processo
nº PDT-01/101547447.
[4] Fl. 170 do processo principal.
[5] Art. 2º O disposto
no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que
couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma: [...]
IV - os processos instaurados há menos de 3 (três) anos terão, a partir da
publicação desta Lei Complementar, o prazo de 5 (cinco) anos para serem
analisados e julgados. (Grifo meu)
[6] Fl. 21.
[7] Tribunal de Contas do Estado de Santa
Catarina. Processo n° REC-10/00725852. Relator: Salomão Ribas Júnior. Voto n°
397/2012. Data: 14-11-2012. Disponível em:
<file:///C:/PROG-TCE/Processos/RepoEletronico/2012/1000725852/3779554.htm>.
Acesso em: 19-1-2016.
[8] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito
administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 114.
[9] FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas.
São Paulo: Malheiros, 2001. p. 133.
[10] Ver as razões aduzidas pela Consultoria-Geral
na parte final do Relatório n° 244/2010, as quais evidenciam que o princípio do
non bis idem foi aplicado em virtude
de ambos os processos em questão versaram rigorosamente sobre a mesma
irregularidade (contratação de advogado sem concurso público), relativamente ao
mesmo contrato (contrato de prestação
de serviços advocatícios para o ano de 2003, com o Sr. Julio Cesar Kuss).
Disponível em:
<C:\PROG-TCE\Processos\RepoEletronico\2010\800316096\3371908.htm>. Acesso
em: 12-1-2016.
[11] O processo decorreu de auditoria realizada
nas obras de reforma do prédio da Fundação Catarinense de Cultura – FCC. O
princípio do non bis in idem foi
aplicado, no caso, em relação a duas irregularidades específicas as quais foram
consideradas pelo relator da matéria como englobadas em irregularidade genérica
anteriormente tratada. Portanto, trata-se de situação substancialmente diversa
desta que ora se analisa. A questão pode ser visualizada adequadamente pelo
cotejo dos itens 2.3 a 2.5 do Relatório n° DLC-22/2008 e das
razões aduzidas no voto n° 326/2009, proferido pelo Conselheiro César Filomeno
Fontes. Relatório disponível em:
<C:\PROG-TCE\Processos\RepoEletronico\2008\405443897\2971790.pdf>. Voto
disponível em:
<file:///C:/PROG-TCE/Processos/RepoEletronico/2009/405443897/3253328.htm>
Acesso em: 12-1-2016.
[12] O princípio do non bis in idem foi empregado para afastar aplicação de multa por
irregularidade consubstanciada na cobrança de mensalidade no curso de Pedagogia
à distância oferecido pela UDESC, sob o argumento de que multas análogas já
haviam sido aplicadas nos processos n°s REC-06/00105849 e REC-06/00164004. A
análise dos referidos processos permite entrever que as irregularidades levadas
em consideração para efeitos de aplicação do princípio diziam respeito ao mesmo
contrato administrativo firmado pela UDESC com o Centro de Estudos e Projetos
Educacionais e Culturais – CEPEC, para o fornecimento do curso de Pedagogia a
distância pela instituição de ensino público, evidenciando se tratar de
situação diversa da que ora se analisa.
[13] Conforme pode ser visto nas razões aduzidas no
Voto n° 418/2012, exarado pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall, o princípio
foi empregado para desconsiderar multas aplicadas em virtude de atos
acessórios, sob o argumento de que o ato principal já havia sido penalizado. No
caso que ora se analisa, cada repasse constituiu um núcleo procedimental
próprio de atos administrativos, independente dos demais.
[14] A leitura do Voto nº 1006/2012, proferido
pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall, deixa claro que o princípio foi
aplicado em virtude de irregularidades derivadas do mesmo fato, consubstanciado
na ausência de licitação na contratação
de empresa para prestação de serviços de palco, no 17° Festival Sul Brasileiro
de Vôo Livre de Timbé do Sul.
[15] O princípio foi aplicado a fim de evitar
múltiplas penalizações atinentes ao mesmo processo licitatório, gerador de uma
única despesa pública.
[16] Tribunal de Contas do Estado de Santa
Catarina. Processo n° PCR-08/00460294. Voto divergente n° 327/2014. Data:
8-12-2014.
[17] Autor citado para sustentar a tese combatida.
[18] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 347.
[19] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito
administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 129/130.
[20] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito
administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 129/130.
[21] VITTA, Heraldo Garcia. Aspectos da imposição
de penalidades administrativas, p. 4-5. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/20158-20159-1-PB.pdf>.
Acesso em: 13-1-2016.
[22] Superior Tribunal de Justiça. REsp nº
616.412-MA. Relatora: Eliana Calmon. 2ª Turma. Julgado em: 29-11-2004.
[23] Art. 72. No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e
integralmente.
[24] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 348.
[25] Supremo Tribunal Federal. HC n° 107.636-RS.
Relator: Min. Luiz Fux. 1ª Turma. DJe 21-3-2012.
[26] Ao arrepio da orientação jurisprudencial.
[27] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 349.
[28] Tribunal de Contas do Estado de Santa
Catarina. Processo n° REC-14/00714319. Relator: Conselheiro Wilson Rogério
Wan-Dall. Parecer n° MPTC-32280/2015. Procuradora de Contas: Cibelly Farias
Caleffi. Data: 18-6-2015.
[29] Tribunal de Contas do Estado de Santa
Catarina. Processo n° REC 14/00552238. Relator: Conselheiro
Luiz Eduardo Cherem. Parecer n° MPTC-30.033/2014.
Data: 16-12-2014.
[30] Fl. 65 do processo n° PCR-11/00463230.