PARECER nº:

MPTC/41936/2016

PROCESSO nº:

REC 15/00617307    

ORIGEM:

Fundo Estadual de Incentivo ao Turismo - FUNTURISMO

INTERESSADO:

Gilmar Knaesel

ASSUNTO:

Recurso de Reconsideração da decisão exarada no processo TCE-12/00197019.

 

 

 

 

 

Trata-se o presente processo de Recurso de Reconsideração (fls. 3-34) interposto pelo responsável, Sr. Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado do Turismo, Cultura e Esporte, em face do Acórdão n. 0685/2015, exarado nos autos do processo TCE n. 12/00197019, o qual julgou irregulares, sem imputação de débito, as contas relativas a recursos antecipados repassados para a Associação Vale das Águas, de Timbó, nos seguintes termos:

VISTOS, relatados e discutidos estes autos, relativos à Tomada de Contas referente à prestação de contas de recursos antecipados, através da NE n. 76, de 02/06/2009, no valor de R$ 60.000,00, à Associação Vale das Águas, de Timbó pelo FUNTURISMO;

Considerando que os Responsáveis foram devidamente citados;

Considerando as alegações de defesa e documentos apresentados;

ACORDAM os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, reunidos em Sessão Plenária, diante das razões apresentadas pelo Relator e com fulcro nos arts. 59 da Constituição Estadual e 1° da Lei Complementar (estadual) n. 202/2000, em:

6.1. Julgar irregulares, sem imputação de débito, com fundamento no art. 18, III, “b”, c/c o art. 21, parágrafo único, da Lei Complementar n. 202/2000, as contas de recursos antecipados, através da Nota de Empenho n. 76 de 02/06/2009, no montante de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), à Associação Vale das Águas - Associação de Desenvolvimento do Turismo Ecológico do Vale do Itajaí, de Timbó, de acordo com os pareceres emitidos nos autos.

6.2. Dar quitação ao Sr. Egon Koprowski, de acordo com os pareceres emitidos nos autos.

6.3. Aplicar ao Sr. Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado da Cultura, Turismo e Esporte, portador do CPF n. 341.808.509-15, com fundamento no art. 69 da Lei Complementar (estadual) n. 202/00 c/c art. 108, parágrafo único, do Regimento Interno desta Corte de Contas, a multa no valor de R$ 1.136,52 (um mil, cento e trinta e seis reais e cinquenta e dois centavos), em face da ausência de Parecer Técnico do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina - PDIL -, bem como ausência de instrução e encaminhamento do projeto pelo Conselho Estadual do Turismo, contrariando o disposto nos arts. 6º da Lei (estadual) n. 13.792/2006 e 11, II, e 20, Decreto (estadual) n. 3.115/2005 (item 2.1.1 do Relatório de Reinstrução DCE/CORA/Div.3 n. 00807/2014), fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial Eletrônico deste Tribunal, ou interpor recurso na forma da lei, sem o quê, fica desde logo autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal, para que adote providências à efetivação da execução de decisão definitiva (arts. 43, II, e 71 da Lei Complementar n. 202/00).

6.4. Recomendar à Secretaria de Estado do Turismo, Cultura e Esporte - SOL -, por seu atual titular, que, em situações futuras, adote providências a fim de evitar o cometimento das seguintes irregularidades, constatadas pela Diretoria Técnica:

6.4.1. Adoção de providências administrativas intempestivas para obtenção da prestação de contas não apresentada pelo ente beneficiado, em descumprimento ao disposto no art. 6º, I e §1º, do Decreto (estadual) n. 1.977/08 (itens 2.3 do Relatório DCE);

6.4.2. Instauração de tomada de contas especial fora do prazo regulamentar, contrariando os arts.

8º do Decreto (estadual) n. 1.977/2008 e 10 da Lei Complementar (estadual) n. 202/2000 c/c os arts. 146 da Lei Complementar (estadual) n. 381/2007 e 49 a 51 da Resolução n. TC-16/1994 (itens 2.4 do Relatório DCE).

6.5. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, aos Responsáveis nominados no item 3 desta deliberação, à Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte – SOL -, ao Sr. Valdir Rubens Walendowsky e à Associação Vale das Águas - Associação de Desenvolvimento do Turismo Ecológico do Vale do Itajaí.

A Diretoria de Recursos e Reexames emitiu o Parecer DRR n. 012/2016 (fls. 35-52), opinando pelo conhecimento do recurso e, no mérito, negar-lhe provimento, com a ratificação integral da Deliberação Recorrida.

O recurso interposto está previsto no art. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, sendo adequado o seu manejo contra decisão proferida em processos de prestação e tomada de contas, podendo ser interposto, uma só vez e por escrito, pelo responsável, interessado ou pelo Ministério Público de Contas, dentro do prazo de trinta dias contados a partir da publicação da decisão no Diário Oficial Eletrônico do Tribunal de Contas.

O Acórdão atacado foi proferido em Sessão Plenária no dia 30/09/2015 e publicado no DOTC-e n. 1822 em 03/11/2015, sendo que o Sr. Gilmar Knaesel, inconformado com seu conteúdo, apresentou tempestivamente o presente Recurso de Reconsideração nessa Corte de Contas no dia 24/11/2015.

Logo, os requisitos de admissibilidade do presente recurso restaram atendidos.

Passa-se, na sequência, à análise dos itens impugnados do Acórdão recorrido e das alegações do recorrente.

1.     Da alegação preliminar de prescrição;

O recorrente, em sede de preliminares, iniciou sua tese de arguição prescricional trazendo uma discussão (fl. 05) sobre os princípios administrativos e sua incidência na Administração Pública, destacando o princípio da segurança jurídica. Em seguida (fl. 06), passou a discorrer acerca da prescrição administrativa, transcrevendo trechos doutrinários (fls. 06-08) acerca do tema, bem como apontando o tratamento legal da matéria pelos Tribunais de Contas (fls. 08-12).

Argumentou (fl. 13) que haveria três possibilidades de contagem do início do prazo prescricional (da data de citação do responsável; da data de exoneração do cargo de gestor público; da data do repasse do dinheiro), asserindo que entre o repasse dos recursos e sua citação teriam decorrido seis anos e cinco meses, prazo no qual teria se dado a prescrição quinquenal. Acrescentou que fora exonerado do cargo de Secretário em 30/03/2010, mais de cinco anos antes da decisão da qual ora recorre.

Por fim, colacionou (fls. 13-14) excerto jurisprudencial supostamente hábil a sustentar seus argumentos.

Ora, o raciocínio aventado pelo recorrente não merece prosperar, uma vez que este Órgão Ministerial já adotou posicionamento expressamente contrário à tese de prescritibilidade processual em casos concretos análogos, fundamentando-se, sobretudo, nas previsões contidas na Lei Complementar Estadual n. 588/2013. Tomando por base o Parecer MPTC n. 35827/2015, proferido nos autos da Tomada de Contas Especial 11/00456373, imperioso reafirmar o seguinte (fls. 392-393 dos autos TCE 11/00456373):

Como se vê, essa Corte de Contas tem o prazo de 5 anos, contados da citação do responsável pelos atos administrativos impugnados, para proferir decisão definitiva sobre o processo. Ainda, a regra de transição estabelecida no art. 2º supratranscrito, prevê, em seu inciso IV, que os processos instaurados há menos de 3 anos da publicação daquela Lei Complementar deverão ser julgados em até 5 anos, conforme é o caso dos autos.

Com efeito, o presente processo foi autuado em 05/08/2011 e a publicação da Lei Complementar Estadual n. 588/2013 ocorreu em 15/01/2013. Logo, o processo tramitava há menos de 2 anos no momento da publicação da lei, estando incluso, portanto, na hipótese do referido inciso IV. Dessa forma, o processo em comento deve ser analisado e julgado até 15/01/2018.

Note-se que embora o Sr. Gilmar Knaesel tenha transcrito o art. 24-A incluído na Lei Orgânica dessa Corte de Contas com o advento da Lei Complementar Estadual n. 588/2013, esqueceu-se de citar também o art. 2º desta lei que, conforme visto, estabelece uma regra de transição que indiscutivelmente afasta a ocorrência da prescrição pretendida.

Não obstante os argumentos referidos, há que se atentar também para a contra argumentação elaborada pela Diretoria de Recursos e Reexames no Parecer DRR n. 025/2016 (fls. 37-38):

Contrariamente ao asseverado pelo Recorrente, quanto ao prazo prescricional de 05 (cinco) anos (art. 54 da Lei nº 8.784/99), impende ressaltar que esta Corte de Contas possui entendimento pacífico de que o lapso prescricional é de 10 (dez) anos para a pretensão punitiva, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor, em conformidade com o estabelecido na Lei nº 10.406/02, desde que não implique em imputação de débito.

Desse modo, no que concerne à hipótese dos autos em que foram aplicadas multas ao Recorrente, o entendimento deste Tribunal acompanha o posicionamento adotado pelo Tribunal de Contas da União, no sentido de que o prazo de prescrição da pretensão punitiva a ser adotado pelas Cortes de Contas é aquele previsto no Código Civil.

[...]

Assim, o lapso prescricional, diante do atual Código Civil, passou de 20 (vinte) para (10) dez anos, conforme estabelece o art. 205 da Lei nº 10.406, de 10/01/20021. Ressalvando-se, claro, os casos em que os prazos prescricionais estavam em andamento, com a vigência do novo Código Civil, no qual se utiliza especificamente a regra de transição, prevista no art. 2.208 do referido Código.

Com efeito, diz o citado dispositivo:

Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

No presente caso, prevalece para fins de verificação da prescrição, a regra geral do artigo 205 do Código Civil vigente, segundo a qual “a prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.

Desse modo, a prescrição do Código Civil a ser aplicada nos autos deve ser a decenal, entretanto, considerando que entre a prática dos atos apontados como irregulares ocorreram em 2007 e a data da citação do responsável foi realizada em 03/11/2014 (fl. 313), portanto, não transcorreu o prazo de 10 (dez) anos, não há que se falar em configuração da prescrição da pretensão punitiva.

Ademais disso, a própria Área Técnica elucidou a aplicabilidade do art. 24-A da Lei Complementar Estadual n. 588/2013 em cotejo com o seu art. 2º, inciso IV, o qual traz regra de transição que igualmente exclui a possibilidade prescricional, coadunando-se com tese ministerial já mencionada alhures (fls. 43v):

Observa-se que o processo em tela (TCE 12/00190719) foi autuado em 18/04/2012 e a Lei Complementar Estadual publicada em 15/01/2013, logo, com o advento da Lei, o processo TCE 12/00190719 encontrava-se instaurado há menos de 3 (três) anos, enquadrando-se assim, na regra de transição do inciso IV do art. 2º da referida Lei:

Art. 2º - O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:

[...]

IV – Os processos instaurados há menos de 3 (três) anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de cinco anos para serem analisados e julgados. (Grifou-se)

Sendo assim, considerando que a Lei Complementar Estadual nº 588/2013 foi publicada em 15 de janeiro de 2013, e o processo TCE 12/00190719 instaurado em 18/04/2012, portanto, há menos 03 (três) anos, regra essa em que os processos terão o prazo de 5 (cinco) anos para serem analisados e julgados, devendo a prescrição incidir no feito somente a partir da data de 15 de janeiro de 2018, quanto às penalidades aplicadas, logo, não há que se falar em prescrição.

Portanto, independente da interpretação que o Relator do presente processo decidir por acolher, entende-se que no feito, ora examinado, não incide a prejudicial de mérito da Prescrição por nenhuma das interpretações da Lei Complementar n° 588/2013. (grifos do original)

Logo, percebe-se que a pretensão do recorrente no sentido de que se acolha a tese prescricional não encontra guarida em qualquer diploma legal, quer se adote como parâmetro a intepretação analógica como Código Civil, quer se examine o caso à luz da Lei Complementar Estadual n. 588/2013.

Desse modo, entende-se incabível a alegação de prescrição apresentada pelo recorrente.

2.    Razões recursais – Mérito

2.1. Da aplicação de multa no valor de R$ 1.136,52 em razão da ausência do parecer da Diretoria do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina – PDIL, bem como pela ausência de instrução e encaminhamento do projeto pelo Conselho Estadual de Turismo, contrariando o disposto nos arts. 6º da Lei Estadual n. 13.792/2006 e 11, inciso II e 20 do Decreto Estadual n. 3.115/2005;

Antes de adentrar no mérito propriamente dito da restrição em tela, o recorrente discorreu (fls. 14-17) acerca de princípios de auditoria e ética, colacionando trechos doutrinários, nos quais se destacam os princípios do profissionalismo, da objetividade, da imparcialidade.

No que diz respeito ao mérito da restrição apontada pelo item 6.3 do Acórdão recorrido, a qual ensejou a aplicação da penalidade de multa, o recorrente afirmou (fl. 17) a necessidade da discussão acerca do dispositivo legal que disciplinou a matéria, transcrevendo o art. 6º da Lei Estadual n. 13.792/06. Afirmou que pela interpretação literal do texto legal, não se poderia deduzir a necessidade de parecer ou manifestação da diretoria do PDIL para que o Comitê Gestor do FUNTURISMO entendesse pela adequação ou não do projeto.

Reputou o fato ao desconhecimento da instituição do PDIL por parte da equipe de auditoria, transcrevendo o art. 8º da lei referida (fls. 17-18) e, questionou, em seguida, a possibilidade de afirmar-se que um evento esportivo com envolvimento da comunidade e toda a região sul catarinense não se enquadra num dos subprogramas contidos na lei que rege a matéria.

Argumentou (fl. 18) que em função da abrangência e generalidade da lei em comento, teria sido editado o Decreto n. 2.080/2009, a fim de regulamentá-la, trazendo em seu texto minudências acerca das atividades que constituem o PDIL, dentre as quais o projeto analisado se enquadraria.

Entretanto, mantém-se firme o entendimento inicialmente apontado pela instrução e reafirmado na reinstrução.

Frise-se, em primeiro lugar, que no que diz respeito à ausência do parecer que deu azo à restrição, o recorrente não trouxe manifestação específica. Consoante referido pela Diretoria de Recursos e Reexames (fls. 44-44v), a exigência encontra-se expressamente prevista no art. 11, inciso II, c/c o art. 20 do Decreto Estadual n. 3.115/05, sendo que não foi apresentado qualquer elemento fático/probatório demonstrando seu cumprimento. Tal fato denota a omissão do recorrente, gestor responsável à época.

No que tange aos argumentos referentes aos demais elementos componentes da restrição, igualmente não assiste razão ao recorrente. Acerca da questão, a Área Técnica ponderou que (fls. 45-45v):

Contudo, razão não assiste ao Recorrente, visto que a ausência do parecer do PDIL restou manifesta, o que sem sombra de dúvidas, ofende à regra prevista no art. 6º da Lei (estadual) nº 13.792/06, senão vejamos:

Lei (estadual) nº 13.792/06:

Art. 6º. A concessão de incentivo pelo Sistema Estadual de Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte – SEITEC dar-se-á somente a projetos que tenham adequação ao presente Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina – PDIL.

Sobre as regras constantes do art. 6º da Lei (estadual) nº 13.792/06, colhe-se parte do Voto do Auditor Substituto de Conselheiro, Cleber Muniz Gavi, emitido no Processo TCE-10/00299497, que tratou das referidas normas:

A adequação dos projetos ao PDIL, exigida pelo art. 6º da Lei Estadual nº 13.792/06, não se afigura mero coadjuvante no exame de propostas que pretendam receber recursos do SEITEC. Ao contrário, a análise detalhada desses projetos é uma importante ferramenta de verificação de sua adequação ao Plano Estadual de Cultura, do Turismo e do Desporto, garantindo a efetiva realização das políticas públicas definidas para este setor e legitimado o incentivo concedido com os recursos públicos.

Assim, resta evidente que a irregularidade praticada é passível de imposição de multa, por ser decorrente de grave infração às normas legais e regulamentares vigentes.

A ausência de parecer da Diretoria do Plano Estadual da Cultura, do Turismo e do Desporto do Estado de Santa Catarina - PDIL, caracterizou ofensa aos preceitos de Lei acima referida, por parte do gestor, quanto ao modo de operacionalizar a concessão de repasses dos recursos financeiros do erário.

Cabe ressaltar, ainda, que os argumentos colacionados pelo Recorrente não se constituem novidade no âmbito desta Corte de Contas, tendo sido enfrentado em outras oportunidades, razão pela qual se sugere ao Relator que em seu Voto propugne por manter a multa aplicada no item 6.3 do Acórdão recorrido.

De fato, percebe-se que, além de haver certa homogeneidade no entendimento acerca da matéria, a mesma já foi objeto de diversos recursos já julgados pelo Tribunal de Contas, adotando o posicionamento referido.

Logo, entende-se pela manutenção da penalidade de multa aplicada conforme disposto no Acórdão Recorrido.

2.2. Das sanções impostas pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina;

O recorrente levantou, em item específico, questionamento acerca das sanções impostas pela Corte de Contas catarinense.

Iniciou (fl. 19) discorrendo acerca da função orientadora exercida pelas Cortes de Contas, apontando em seguida que as sanções pecuniárias retiram seu fundamento de validade diretamente das Constituições Federal e Estadual, e reflexamente, dos arts. 67, 68 e 70 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

Adiante (fl. 20), o recorrente argumentou que o Tribunal de Contas “mesmo não levando em conta a discricionariedade do agente público” lançaria mão desse poder (discricionário) ao fixar os valores de multas aplicadas. Nesse sentido, afirmou não haver um critério rígido para definição do quantum a ser pago pelo agente público penalizado, colacionando excerto doutrinário relativo ao poder discricionário.

Em seguida, buscou eximir-se da responsabilidade quanto ao pagamento das penalidades de multa arvorando-se em voto proferido pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior no processo PCR 08/00460294 (fls. 20-26), no qual buscou ressaltar “a constância da das ocorrências fáticas e, consequentemente, das sanções correspondentes aplicadas” escorando-se no argumento baseado na proporcionalidade das sanções aplicadas em razão de “fatos idênticos” aos mesmos responsáveis no curso do mesmo exercício.

Tal tese centrou-se na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal.

Em seguida, colacionou excertos (fls. 27-29) do Relatório e Voto GAC/AMF n. 954/2015, nos autos do REC 14/00274831, também da lavra do eminente Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, no sentido de cancelamento das multas impostas.

O requerente traçou, ainda, comentários acerca da aplicação de sanções e multas conforme a normatização e a jurisprudência (fls. 29-31). Trouxe, também, a título de considerações finais, discussão (fls. 31-33) acerca da natureza das sanções aplicáveis por parte do Tribunal de Contas de Santa Catarina e questões relativas ao incidente de uniformização de jurisprudência no âmbito do tribunais.

Ao final (fl. 34), o requerente listou a superveniência de três fatos novos que, supostamente, seriam suficientes à anulação das multas aplicadas: a) a prescrição administrativa em face de sua exoneração do cargo de Secretário de Estado do Turismo, Cultura e Esporte há mais de cinco anos; b) o Relatório-Voto do Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior; c) a não uniformização dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas características.

Pois bem.

Inicialmente, no que diz respeito à tese da prescrição administrativa, falta razão ao recorrente, na medida em que incide a aplicabilidade do art. 24-A da Lei Complementar Estadual n. 588/2013 em cotejo com o seu art. 2º, inciso IV, o qual traz regra de transição que igualmente exclui a possibilidade prescricional no presente caso concreto, uma vez que o seu termo prescricional somente incidirá em janeiro de 2018.

No que diz respeito ao Relatório e Voto proferidos pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior nos autos do processo PCR 08/00460294, o relatório técnico apontou (fls. 46-47) que na ocasião do julgamento, tal voto divergente sequer foi colocado em votação, tendo prevalecido o voto apresentado pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall. Contudo, tal posicionamento pela adoção da tese da continuidade das infrações administrativas teria sido posteriormente acatado, quando da deliberação referente ao processo REC 14/00274831.

Conforme já referido inicialmente, o Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior laborou tese fundada na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal, notadamente com a adoção da regra que trata dos crimes continuados para as multas aplicadas ao requerente, que exerceu a gestão da Secretaria do Turismo, Cultura e Esporte de 01/07/2007 a 31/03/2010.

A consequência prática da adoção dessa tese seria o cancelamento de diversas multas já aplicadas em diversos processos cujas decisões acolheram a imputação de irregularidades ao requerente, para que se aplicasse somente uma multa passível de majoração/agravamento.

Trata-se de medida com a qual não se concorda de modo algum. Com a devida vênia, a tese defendida pelo nobre Conselheiro cinge-se a aplicar, indiscriminadamente, institutos do Direito Penal a circunstâncias fáticas albergadas pela sistemática do Direito Administrativo. Diversas são as razões que permitem discordar desse posicionamento.

Em primeiro lugar, entende-se que houve confusão acerca da finalidade da sanção com sua natureza e incidência. Explica-se: em que pese o fato de, ontologicamente, as sanções civis, penais e administrativas estarem voltadas a um mesmo fim precípuo, diversas são as suas naturezas e a maneira pela qual incidem.

Conforme ensina o Juiz Federal Heraldo Garcia Vitta[1], discorrendo acerca do tema:

A doutrina enfatiza, normalmente, a identidade ontológica dos ilícitos; com isso significando não haver distinção substancial entre os ilícitos penal e administrativo; mas se esquece da identidade ontológica das sanções.

Pode-se alegar que a sanção penal teria por escopo punir os infratores, e, assim, seria diferente da finalidade da sanção administrativa, pois esta visaria a desestimular os prováveis infratores.

Contudo, esse modo de pensar não tem consistência; toda sanção tem por finalidade desestimular as pessoas a cometerem ilícitos. A punição não é o fim da pena; é efeito, apenas, do ato impositivo desta, ao sujeito. Toda sanção acarreta a punição do infrator, mas o fim dela não é este, é o de evitar condutas contrárias ao Direito. Isso decorre do regime democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do respeito aos valores fundamentais da sociedade.

Embora não concordemos plenamente com os argumentos expendidos quanto à finalidade das penas, tal qual expõe Nelson Hungria, convém recordarmos suas palavras, com as quais esclarece a identidade ontológica delas: “Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito, à semelhança das penas criminais (...)”.

As sanções penais e administrativas são iguais, homogêneas, e eventuais divergências de gravidade não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais. Apesar disso, mencionam-se sanção penal e sanção administrativa, que são tipos ou espécies delas; o critério adotado para distingui-las, como visto, é o da autoridade competente para impô-las, segundo o ordenamento jurídico (critério formal) (grifei).

Note-se, portanto, que apesar de direcionadas a uma mesma finalidade última, as sanções penais e administrativas diferem essencialmente em função da autoridade competente para sua imposição e o ordenamento jurídico do qual extraem seu fundamento de validade.

Nesse sentido, imprescindível que se tenha em mente que o Tribunal orienta-se pelas prescrições contidas na Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica) e na Resolução n. TC-06/2001 (Regimento Interno) para examinar a ocorrência de irregularidades e aplicar as respectivas penalidades.

Atente-se, igualmente, para o fato de que o âmbito de trabalho é o administrativo. Por outro lado, o Código Penal traz em seu corpo regramento específico para aplicação de penas de acordo com as respectivas cominações legais, observando toda uma estrutura de regras a serem adotadas conforme cada tipo penal específico e segundo o sistema trifásico de estabelecimento da pena.

É exatamente neste contexto formal que se cinge a discussão: haveria possibilidade de aplicação de determinada regra específica do Código Penal para, lançando-se mão da analogia, orientar a aplicação de multas em face de irregularidade no âmbito desta Corte de Contas? Poderia se cogitar da aplicação das especificidades do concurso de crimes (continuidade delitiva) e do princípio do non bis in idem?

Entende-se que não, pois a mera transposição de tais caracteres ínsitos à seara penal para o presente contexto fático administrativo significaria ruptura divorciada da realidade.

Não se está aqui a pregar um repúdio absoluto à tese da existência de zonas de contato entre as esferas administrativa e penal, mas sim a defender a impossibilidade de que ambas se imiscuam pelo mero alvedrio do intérprete, sem que haja substrato fático-normativo ou jurisprudencial hábil a permitir a ocorrência de tais pontos de contato.

Sobre tal entendimento, necessário que se observem os comentários traçados por Fábio Medina Osório[2], mesmo autor utilizado pelo Exmo. Conselheiro para construção de sua tese:

Também no Direito Administrativo Sancionatório pode ocorrer continuidade de infrações, uma continuação de fatos ilícitos que recomenda cautelas na imposição cumulativa de sanções. Aqui, na prática, há uma série de fatos autônomos. Todavia, por um princípio humanitário de política repressiva, não se tem descurado do tratamento mais benigno, ou pelo menos não tão severo, que têm merecido tais hipóteses de infrações. É certo que, no sistema pena, existe previsão expressa dessa espécie de tratamento mais favorável ao agente. É comum, até rotineiro, constatar a omissão das legislações de Direito Administrativo Sancionador, desde as que se aplicam diretamente no interior do sistema judicial, até as que alcançam as instâncias administrativas em sentido estrito nos entes federados.

É preocupante, certamente, o silêncio sistemático e nocivo do Direito Administrativo Sancionador pátrio, como regra geral, no trato dessa matéria, sendo forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase totalidade das legislações administrativas repressoras no campo federal, nos Estados e Municípios, embora não se possa generalizar a esse respeito, até mesmo por ausência de pesquisas de campo nesse sentido. Pela percepção empírica que se tem, calcada em amostragens significativas oriundas das chamadas instituições de controle, raramente se menciona algo positivo a respeito da continuidade de infrações, como se esta figura inexistisse no terreno disciplinar ou administrativo lato sensu. Uma falha legislativa alastrada em nosso ordenamento sancionador, sem dúvida.

Como se vê, no excerto colacionado o autor destaca exatamente o caráter de excepcionalidade da questão da continuidade delitiva no âmbito administrativo, pontuando a omissão legislativa a respeito, reforçando a tese exposta até aqui. Não se descura que exista intenção sincera por parte daqueles que esposam a defesa do uso da analogia no caso, mas o fato é que esta não encontra ressonância legal e, quiçá, jurisprudencial.

Imperioso que se opere uma breve dissecação do instituto da continuidade delitiva.

O instituto do crime continuado está previsto no art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:

Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

De acordo com a pena do Promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches Cunha[3]:

Estampado no art. 71 do CP, verifica-se a continuidade delitiva (ou crime continuado) quando o sujeito, mediante pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie, guardando entre si um elo de continuidade (em especial, as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução).

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli denominam esta espécie de concurso de “concurso material atenuado” ou “falso crime continuado”, alegando que “onticamente, não é um verdadeiro crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos”.

[...]

Nota-se, portanto, que o instituto está baseado em razões de política criminal. O juiz, ao invés de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em continuidade, por ficção jurídica, para fins da pena, considera como se um só crime foi praticado pelo agente, devendo ter a sua reprimenda majorada. (grifei)

Por sua vez, o Procurador de Justiça e penalista Rogério Greco[4], ao comentar sobre as origens do instituto, traz a seguinte lição:

Afirma Bettiol que “a figura do crime continuado não é de data recente. As suas origens ‘políticas’ acham-se sem dúvida no favor rei que impeliu os juristas da Idade Média a considerar como furto único a pluralidade de furtos, para evitar as consequências draconianas que de modo diverso deveriam ter lugar: a pena de morte ao autor de três furtos, mesmo que de leve importância. Os nossos práticos insistiam particularmente na contextualidade cronológica da prática dos crimes, para considerá-los como crime único, se bem que houvesse também quem se preocupasse em encontrar a unidade do crime no uno impetu com o qual os crimes teriam sido realizados”. (grifei)

Nesse mesmo sentido, referenciando às origens históricas do crime continuado, o magistrado e professor Guilherme de Souza Nucci[5]:

(...) quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição de que os subsequentes são uma continuação  do primeiro, formando o crime continuado. É a forma mais polêmica de concursos de crimes, proporcionando inúmeras divergências, desde a natureza jurídica até a conceituação de cada um dos requisitos que o compõem. Narram os penalistas que o crime continuado teve sua origem entre os anos de 1500 e 1600, em teoria elaborada pelos práticos italianos, dos quais ressaltam-se os trabalhos de Prospero Farinacio e Julio Claro. Naquela época, a lei era por demais severa, impondo a aplicação da pena de morte quando houvesse a prática do terceiro furto pelo agente (Potest pro tribos furtis quamvis minimis poena imponi). O tratamento era, sem dúvida, cruel, mormente numa época de tanta fome e desolação na Europa. Por isso, escreveu Claro: “Diz-se que o furto é único, ainda que se cometam vários em um dia ou em uma noite, em uma casa ou em várias. Do mesmo modo se o ladrão confessou ter cometido vários furtos no mesmo lugar e em momentos distintos, interpretando-se tal confissão favoravelmente ao agente, isto é, que suas ações, em momentos distintos, continuadamente, são um só furto e não vários...” (Carlos Fontán Balestra, Tratado de derecho penal, t. III, p. 60). E, ainda, Farinacio: “Tampouco existem vários furtos senão um só, quando alguém roubar de um só lugar e em momentos diversos, mas continuada e sucessivamente, uma ou mais coisas: ... não se pode dizer ‘várias vezes’ se os roubos não se derem em espécie e tempo distintos. O mesmo se pode dizer daquele que, em uma só noite e continuadamente, comete diversos roubos, em lugares distintos, ainda que de diversos objetos... a esse ladrão não se lhe pode enforcar, como se lhe enforcaria se tivesse cometido três furtos em momentos distintos e não continuados” (Balestra, ob. Cit., p. 61). (grifei)

Dos excertos colacionados extrai-se que o instituto tem suas raízes num contexto histórico em que sua gênese e aplicação se fizeram necessárias no intuito de temperamento das penas aplicadas, eis que se corria o risco de penalização excessiva e alheia a quaisquer critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Era necessário proteger-se o acusado em face da sociedade e do ordenamento.

Hodiernamente, configura-se como elemento de política criminal, cuja natureza de ficção jurídica[6][7][8] orienta-se no sentido de beneficiar o agente para que não seja sobremaneira penalizado pelos diversos núcleos do tipo por ele praticados, considerando-os como interligados por um mesmo fio condutor que costura elementos como os crimes propriamente ditos, as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

Tratamento divergente merece o presente caso dos autos, uma vez que de natureza diversa daquela que serve de substrato à seara penal. Isso porque aqui, as condutas do requerente ensejam a reprovabilidade ínsita aos crimes que ferem o erário e, por tabela, a sociedade. No caso da maioria dos tipos penais previstos no Código Penal, os objetos materiais e jurídicos constituem uma miríade de atingidos, ao passo que naquelas irregularidades abrangidas pela competência das Cortes de Contas, tais objetos são coincidentes, resumindo-se na figura do erário público.

Assim, entende-se impossível a aplicação analógica do instituto do crime continuado, sobretudo em função de seu objetivo primordial, pois que não se observa imperiosa a preservação ou garantia de o requerente não será excessivamente penalizado. No caso, se do cotejamento dos objetos jurídicos e materiais atingidos fosse aplicável algum brocardo latino notoriamente penalístico, seria certamente o pro societate e não o pro reo, eis que as irregularidades cabalmente demonstradas repercutem direta e indiretamente nos interesses da sociedade, muito mais do que as multas afetam qualquer subjetividade do requerente enquanto responsável apenado.

Ademais, não bastassem os argumentos de pendor interpretativo, normativo e histórico-filosófico até aqui perfilados, há que se destacar também o fato de que os requisitos do crime continuado não poderiam ser observados e respeitados caso houvesse a adoção do instituto no presente caso. De acordo com a doutrina[9], o crime continuado apresenta os seguintes requisitos:

(A)   Pluralidade de condutas: mais de uma ação ou omissão que implique em vários crimes;

(B)    Pluralidade de crimes da mesma espécie: aproxima-se do concurso material ao exigir condutas provocando vários crimes. Diferencia-se, no entanto, ao restringir sua aplicação a crimes da mesma espécie.

(C)   Elo de continuidade: é também requisito do crime continuado o elo de continuidade entre as condutas. Esse elo se revela através:

(C.1) Das mesmas condições de tempo: a lei não anuncia qual o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito da cadeia, alertando a jurisprudência que não pode suplantar 30 (trinta) dias.

(C.2) Das mesmas condições de lugar: para a jurisprudência, haverá as mesmas condições de lugar quando os crimes são praticados na mesma comarca (ou em comarcas vizinhas).

(C.3) Da mesma maneira de execução (modus operandi): como bem alerta Bitencourt, a lei exige semelhança e não identidade. A semelhança na maneira de execução se traduz no modus operandi de realizar a conduta delitiva maneira de execução é o modo, a forma, o estilo de praticar o crime, que, na verdade, é apenas mais um dos requisitos objetivos da continuação criminosa.

(C.4) Outras circunstâncias semelhantes: abrangendo quaisquer outras circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade. (grifos do original)

Nesse sentido, destaque-se que o item C.1 do trecho acima aponta que o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito na cadeia fática é de 30 dias.

Ora, levando-se em consideração que o requerente vem sendo recorrentemente penalizado em função de irregularidades constatadas durante todo o tempo em que ocupou a Secretaria de Estado do Turismo, Esporte e Cultura de Santa Catarina (período que vai de 01/07/2007 a 31/03/2010), conclui-se que o requisito temporal restaria desatendido, caso fosse aplicada a continuidade delitiva, descaracterizando-a, portanto. Note-se que quaisquer pontos de referência dentro do período referido extrapolariam os 30 dias adotados pacificamente pela jurisprudência[10][11].

Há, ainda, outro requisito apontado por boa parte da doutrina e da jurisprudência para o reconhecimento da configuração da continuidade delitiva: que a atuação do agente se dê mediante unidade de desígnios, isto é, mediante um só plano delituoso. Esse requisito traduz a adoção da teoria objetivo-subjetiva, assim explicada por Rogério Greco[12]:

A última teoria, que possui natureza híbrida, exige tanto as condições objetivas como o indispensável dado subjetivo, ou seja, deverão ser consideradas não só as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, como também a unidade de desígnio ou relação de contexto entre as ações criminosas.

Acreditamos que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz. (grifei)

Trata-se de teoria adotada pela jurisprudência tanto do STF[13] quando do STJ[14][15][16][17].

Mais uma vez, tem-se retratada a impossibilidade de aplicação analógica da continuidade ao presente caso, uma vez que despiciendo o exame da unidade de desígnios nas condutas por parte do requerente, uma vez que, se o liame subjetivo por muitas das vezes é de difícil comprovação caso a caso, justamente ensejando a aplicabilidade das teorias da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, que dirá numa cadeia sucessiva de atos.

Não obstante, cada conduta é una e destacada (possibilitando, eventualmente, a aplicação analógica do concurso material de crimes, consoante o posicionamento reiterado do Tribunal), ensejando seus respectivos exame e processo, inclusive representando afastamento da alegação de bis in idem, a ser oportunamente analisado.

Quanto ao argumento apresentado pela Área Técnica, no sentido de que o art. 72 trataria as penas de multa diferentemente das restritivas de liberdade em delito continuado ou em concurso material (fl. 48), fundamentando assim parte de sua discordância com a aplicabilidade da continuidade delitiva, discorda-se parcialmente.

Em princípio, compartilha-se a tese central da inaplicabilidade da continuidade delitiva; contudo, cabe ressaltar meramente a título informativo que, em que pese a previsão do art. 72 do Código Penal, doutrina e jurisprudência vislumbram tratamento específico das penalidades de multa no âmbito da continuidade delitiva. Veja-se[18]:

O art. 72 do CP avisa: “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente”.

Nota-se que a pena de multa não obedece às regras diferenciadas do tratamento dispensado ao concurso de crimes. Para a fixação da multa, portanto, só se aplica uma regra: aplicação distinta e integral.

Não se descarta doutrina lecionando que essa regra não serve para o crime continuado. Para fins de aplicação de pena, no direito brasileiro, o crime continuado, por ficção jurídica, é considerado crime único. Logo, aplica-se a pena de multa uma única vez.

Nesse sentido vem decidindo o STJ: “’A pena de multa, aplicada no crime continuado, escapa à norma contida no art. 72 do Código Penal’ (Resp nº 68.186/DF, Relator Ministro Assis Toledo, in DJ 18/12/1995). As penas de multa, no caso de concurso de crimes, material e formal, aplicam-se cumulativamente, diversamente do que ocorre com o crime continuado, induvidoso concurso material de crimes gravados pela menor culpabilidade do agente, mas que é tratado como crime único pela lei penal vigente, como resulta da simples letra dos artigos 71 e 72 do Código Penal, à luz dos artigos 69 e 70 do mesmo diploma legal”.

Apesar dessa previsão, entende-se inócuo seu conteúdo ao presente exame, eis que já fartamente comprovada a impossibilidade da incidência da tese da continuidade delitiva sobre o objeto destes autos.

Ressalte-se que o argumento da Área Técnica seria plenamente cabível aqui levando-se em conta, num exercício hipotético, se no presente caso se admitisse o concurso material de crimes (o único que se afigura admissível, diga-se de passagem), uma vez que aí sim aplicável o previsto no art. 72, incidindo as penas de multa distinta e integralmente, cumulando-se.

No que diz respeito ao argumento de que a aplicação de penalidades de multa em função de irregularidades apontadas nos processos envolvendo o requerente implicaria em violação ao princípio do non bis in idem, entende-se igualmente não assistir razão ao requerente e ao Exmo. Conselheiro.

Acerca desse princípio, Rogério Sanches Cunha[19] ensina o seguinte:

Este princípio não está previsto expressamente na Constituição, mas sim no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional:

“Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição em contrário do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por actos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2 – Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

Entende-se, majoritariamente, que o princípio em estudo não é absoluto. O próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, prevê a possibilidade de julgamento por mesmo fato nos casos dos crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desde que o primeiro tribunal a realizar o julgamento tenha tentado subtrair a competência do Tribunal Internacional ou não tenha havido a imparcialidade necessária à ação da justiça. Entre nós, a exceção ao princípio do non bis in idem se encontra no artigo 8º, que autoriza novo julgamento e condenação pelo mesmo fato, nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira (vide item “eficácia da lei penal no espaço”).

O princípio do non bis in idem tem três significados:

(A)   Processual: ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo crime;

(B)    Material: ninguém pode ser condenado pela segunda vez em razão do mesmo fato;

(C)   Execucional: ninguém pode ser executado duas vezes por condenações relacionadas ao mesmo fato. (grifos do original)

De outra volta, pela explicação do multicitado Fábio Osório Medina[20],

Intimamente ligado aos princípios da legalidade e da tipicidade, o princípio da proibição do bis in idem, cujas raízes remontam ao devido processo legal anglo-saxônico, também atua em matéria de Direito Administrativo Sancionador, possuindo um largo alcance teórico e restritos alcance e significados práticos. Tal princípio, em nosso sistema, está constitucionalmente conectado às garantias de legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88. Suas consequências e desdobramentos, no entanto, são bastante tímidos na jurisprudência e na doutrina brasileiras, deixando lacunas consideráveis ao crivo dos juristas. Trata-se de um tema que frequente, curiosamente, mais o imaginário do inconsciente do que a ostensividade da consciência jurídica nacional. Sabe-se que se trata de um princípio ligado à justiça e a outros valores não menos nobres, mas a construção de seus significados e significantes passa por uma compreensão acerca das estruturas de gestão das normas sancionadoras.  A teoria não pode dissociar-se da realidade, e assim ocorre com a jurisprudência. Por isso, um novo patamar de compreensão para o non bis in idem pressupõe, de um lado, a descrição e o diagnóstico do panorama vigente e, de outro, a proposição de novas alternativas hermenêuticas, ainda que desde um ponto de vista geral.

Insistimos, de qualquer sorte, no seguinte ponto: pensar o non bis in idem é, acima de tudo, refletir sobre as delicadas relações entre as esferas penal e administrativa, problema que não é novidade no Brasil ou no exterior.

[...]

A ideia básica do non bis in idem é que ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato, eis uma concepção praticamente universal, que desde as origens algo-saxônicas encontra-se presente nos ordenamentos democráticos (v.g. art. 8º, n. 4, do Pacto de San José da Costa Rica) (grifei)

À vista dos ensinamentos colacionados, conclui-se pela inocorrência de violação ao referido princípio, uma vez que o requerente vem sendo sucessivamente considerado responsável por irregularidades passíveis de penalidade de multa em processos distintos oriundos de condutas distintas, nos quais foram amplamente respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Note-se que, tangencialmente aos três significados do princípio apontados acima, o presente caso não se enquadra em nenhum. Isso porque, processualmente, o requerente foi processado duas ou mais vezes por condutas diversas; materialmente, vem sendo condenado em função de fatos distintos; e no plano execucional, poderia ser executado em virtude de condenações relacionadas a fatos múltiplos.

Neste mesmo sentido se posicionou a Área Técnica, argumentando que (fls. 48v-49):

A ofensa ao princípio do “non bis in idem”, como se sabe, caracteriza-se pela duplicidade de penalização aplicada ao indivíduo, em razão dos mesmos fatos, o que não se verifica nas situações objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas em relação às prestações de contas referentes aos fundos do SEITEC.

[...]

Embora os atos praticados irregularmente pelo Gestor sejam da mesma ordem, tais ações são praticadas em fatos administrativos distintos.

[...]

Deste modo, o ato administrativo típico é sempre manifestação volitiva da Administração, no desempenho de suas funções de Poder Público, visando a produzir algum efeito jurídico, o que o distingue do fato administrativo, que, em si, é atividade pública material, desprovida de conteúdo de direito.

Como fato administrativo devemos entender toda realização material da Administração em cumprimento de alguma decisão administrativa, tal como a concessão de recursos do Fundo do SEITEC, que se constitui, como materialização da vontade administrativa, e só reflexamente interessa ao Direito, em razão das consequências jurídicas que dele possam advir para a Administração e para os administrados.

Portanto, não há que se falar em ofensa ao princípio do “non bis in idem”, em razão de o Tribunal de Contas julgar e penalizar os atos jurídicos praticados pelo Gestor dos Fundos do SEITEC, em processos que tem como objeto fatos administrativos distintos, muito embora, a irregularidade dos atos que dão origem as penalizações sejam da mesma natureza e tenham a mesma identidade.

Ademais, esclareça-se que o Doutrinador Fábio Medina Osório, na sua obra, empregada pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior para sustentar a tese ora rebatida, menciona a questão do princípio do “non bis in idem” interprocessos não exatamente na mesma instância de julgamento, mas nas situações de independência das instâncias de julgamento (Penal, Civil e Administrativo), a qual se submete o ato administrativo.

Considerando os argumentos postos, bem como os excertos doutrinários e as jurisprudências que lhes serviram de suporte técnico-jurídico, entende-se pela manutenção da linha de posicionamento que vinha sendo adotada majoritariamente pelo Tribunal de Contas, em prejuízo da tese aventada pelo Exmo. Conselheiro.

Por fim, relativamente ao terceiro ponto apresentado pelo requerente, referente à não uniformização dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas características, não lhe assiste a razão.

Conforme já exaustivamente delineado ao longo deste parecer, o requerente vem sendo sucessivamente responsabilizado por irregularidades em processos específicos, que abrangem cada conduta de acordo com suas respectivas peculiaridades, ponderadas de acordo com os critérios de convicção de cada Relator e do Plenário, dentro dos limites legais insculpidos no art. 70, inciso II, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

A posição aqui adotada coaduna-se com aquela já externalizada pela Área Técnica (fls. 51-51v):

No que se refere ao pedido de uniformização de jurisprudência, ao procede o recurso proposto.

Cada processo possui suas peculiaridades e é decidido com base nas especificidades do caso concreto, além do que, especificamente, em relação aos paradigmas mencionados pelo Recorrente não trata das mesmas questões que deram razão a multa aplicada no presente processo.

Faz-se necessário trazer à baila especificamente o incidente de Uniformização de Jurisprudência previsto no Código de Processo Civil em seus artigos 476 a 479.

Os autores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, em seu Manual de Processo de Conhecimento, dizem o seguinte a respeito da Uniformização de Jurisprudência:

A divergência externa há de ser verificada entre a orientação que se esboça no julgamento do caso concreto e outra anteriormente dada por outro órgão do tribunal, não sendo viável admitir-se o incidente apenas porque existem, no tribunal, em diversos órgãos, orientações divergentes sobre a mesma questão jurídica. (Grifou-se)

A divergência de entendimento sobre a mesma questão jurídica não é capaz de gerar o incidente de uniformização de jurisprudência e não se enquadra no artigo 301, IV do Código de Processo Civil, que é o caso dos autos.

Assim, apesar de o Tribunal Pleno ter deixado de aplicar a multa em situações semelhantes, tal fato não tem o condão de sanar as irregularidades apontadas no Acórdão recorrido, pois este Tribunal tem a competência para rever os seus entendimentos.

Da mesma forma, tampouco procede a alegação do Recorrente de que não agiu com dolo ou má-fé. Convém lembrar que, diferentemente do direito penal, nos processos referentes à comprovação de utilização regular de recursos públicos não cabe a aplicação do princípio do in dubio pro reo, no qual a boa-fé é presumida.

Isso porque, neste tipo de processo prevalece o princípio da supremacia do interesse público, fazendo com que se tenha a inversão do ônus da prova, cabendo, pois, ao gestor público comprovar a boa-fé na gestão dos valores públicos sob sua responsabilidade.

Nessa linha, é importante salientar que no uso do dinheiro público, não basta ao responsável estar imbuído de boa-fé, exige-se, também, do gestor, a comprovação de ter agido nos termos da lei.

Em sendo assim, considerando que os argumentos apresentados pelo Recorrente, em suas razões de recurso, não têm o condão de alterar a Decisão Recorrida, manifesta-se pela manutenção do decisum na sua íntegra.

Desse modo, por tudo quanto referido e examinado no corpo deste Parecer, bem como em função da inexistência manifesta de superveniência de documentos ou argumentos com eficácia probatória, entende-se não lograr êxito o recorrente em seu intuito desconstitutivo do Acórdão n. 0685/2015.

3.    Conclusão

Ante o exposto, o Ministério Público de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso II da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, manifesta-se pelo CONHECIMENTO do recurso de Reconsideração interposto, para, no mérito, NEGAR-LHE PROVIMENTO, ratificando-se, na íntegra, as deliberações recorridas.

Florianópolis, 16 de maio de 2016.

 

 

Cibelly Farias Caleffi

Procuradora

 



[1] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 66-68.

[2] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 347.

[3] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014. p. 458-459.

[4] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015. p. 227.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 400.

[6] STJ, HC 262842/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 16/05/2014.

[7] STJ, REsp 1196299/SP,  Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, 5ª T., DJe 8/05/2013.

[8] STJ, HC 141239/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T, DJe 15/03/2010.

[9] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014. p. 459-461.

[10] STF, HC 73219/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 26/04/1996.

[11] STF, HC 69896, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02/04/1993.

[12] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015. p. 230-231.

[13] STF, RHC 85577/RJ, 2ª Turma.

[14] STJ, HC 54802/SP, 5ª Turma.

[15] STJ, HC 206784/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 29/06/2012.

[16] STJ, RHC 22800/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., DJe 02/08/2010.

[17] STJ, HC 128756/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 29/03/2010.

[18] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014. p. 463-464.

[19] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014. p. 98-99.

[20] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 281-283.