PARECER
nº: |
MPTC/47015/2016 |
PROCESSO
nº: |
REC 16/00353417 |
ORIGEM: |
Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte -
FUNDESPORTE |
INTERESSADO: |
Gilmar Knaesel |
ASSUNTO: |
Recurso de Reconsideração da decisão
exarada no processo-TCE-12/00125700. |
Trata-se o presente processo
de Recurso de Reconsideração (fls. 3-9) interposto pelo Sr. Gilmar Knaesel,
ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esportes, em face do Acórdão n.
0268/2016, exarado nos autos do processo TCE n. 12/00125700, o qual julgou
irregulares, com imputação de débito, as contas relativas ao repasse de
recursos no montante de R$ 95.000,00 à Sociedade dos Amigos do Turismo,
Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, para aplicação no projeto “Esporte
para todos”, bem
como determinou a aplicação de penalidade de multa, nos seguintes termos:
VISTOS, relatados e discutidos estes
autos, relativos à Tomada de Contas Especial instaurada pela Secretaria de
Estado da Cultura, Turismo e Esporte, por meio da Portaria n. 026/11, para
apuração de irregularidades acerca de supostas irregularidades na prestação de
contas de recursos repassados.
Considerando que os Responsáveis foram
devidamente citados, conforme consta nas fs. 135, 136, 142 e 149 dos presentes
autos;
Considerando que as alegações de defesa e
documentos apresentados são insuficientes para elidir irregularidades apontadas
pelo Órgão Instrutivo, constantes do Relatório de Instrução DCE/CORA/Div.1 n.
0702/2015;
Considerando que não houve manifestação à
citação dos Responsáveis Júlia Graziela Melere Nardelli e Sociedade dos Amigos
do Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, subsistindo a(s)
irregularidade(s) apontada(s) pelo Órgão Instrutivo, constante(s) do Relatório
Técnico;
ACORDAM os Conselheiros do Tribunal de
Contas do Estado de Santa Catarina, reunidos em Sessão Plenária, diante das
razões apresentadas pelo Relator e com fulcro nos arts. 59 da Constituição
Estadual e 1° da Lei Complementar n. 202/2000, em:
6.1. Julgar irregulares, com imputação de
débito, na forma do art. 18, III, “a”, “b” e “c”, c/c o art. 21, caput da Lei
Complementar (estadual) n. 202/2000, as contas pertinentes à presente Tomada de
Contas Especial acerca de recursos repassados à Sociedade dos Amigos do
Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, para aplicação no projeto
“Esporte para todos”, por meio da Nota de Empenho n. 230/2009, no valor de R$
95.000,00, e respectivas Notas de Liquidação ns. 4193/2009, no valor de R$
50.000,00, e 4571/2009, no valor de R$ 45.000,00, de acordo com os relatórios
emitidos nos autos, e CONDENAR SOLIDARIAMENTE, nos termos do art. 18, § 2º, da
Lei Complementar (estadual) n. 202/2000, a SOCIEDADE DOS AMIGOS DO TURISMO,
ESPORTE, CULTURA E MEIO AMBIENTE (SATECMA), DE TIMBÓ, CNPJ n.
78.486.529/0001-54, e a Sra. JÚLIA GRAZIELA MELERE NARDELLI - Presidente
daquela entidade em 2009, CPF n. 043.195.969-27, ao pagamento da quantia de R$
95.000,00 (noventa e cinco mil reais), referente a omissão no dever de prestar
as contas dos recursos recebidos por meio da Nota de Empenho n. 230/2009,
supracitado, em afronta aos arts. 58, parágrafo único da Constituição Estadual;
144, § 1º, da Lei Complementar (estadual) n. 381/2007; 69, I e II, c/c o art.
70 do Decreto (estadual) n. 1.291/2008; à Cláusula Oitava do Contrato de Apoio
Financeiro n. 14.015/2009-5; e 49 e 52 da Resolução n. TC-16/1994 (item 2.2.1
do Relatório de Instrução DCE/CORA/Div.1 n. 0787/2014), fixando-lhes o prazo de
30 (trinta) dias, a contar da publicação do Acórdão no Diário Oficial
Eletrônico do TCE (DOTC-e), para comprovar, perante este Tribunal, o
recolhimento do valor de débito ao Tesouro do Estado, atualizado monetariamente
e acrescido dos juros legais (arts. 43 e 44 da Lei Complementar n. 202/2000), a
partir da data do repasse das referidas notas, sem o que fica, desde logo,
autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao
Tribunal de Contas para que adote providências à efetivação da execução da
decisão definitiva (art. 43, II, da Lei Complementar n. 202/2000).
6.2.
Aplicar ao Sr. GILMAR KNAESEL, ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e
Esporte, CPF n. 341.808.509-15, com fundamento no art. 70, II, da Lei
Complementar (estadual) n. 200/2000, a multa no valor de R$ 1.136,52 (mil cento
e trinta e seis reais e cinquenta e dois centavos), em razão das
irregularidades abaixo descritas, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a
contar da publicação do Acórdão no DOTC-e, para comprovar perante este Tribunal
o recolhimento do valor ao Tesouro do Estado, sem o que, fica desde logo
autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao
Tribunal de Contas, para que adote providências à efetivação da execução da
decisão definitiva (art. 43, II e 71 da Lei Complementar n. 202/2000), em face
das seguintes restrições:
6.2.1.
aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo
diante da ausência de documentos exigidos na tramitação inicial do projeto,
contrariando os itens 4, 12, 13, 14, 15, 16, 19, 23 e 24 do Anexo V do Decreto
(estadual) n. 1.291/2008, por força dos arts. 30 e 36, § 3º, do mesmo Decreto,
bem como descumpriu o princípio da legalidade e a necessária motivação dos
atos, ditado pelos arts. 37, caput, da Constituição Federal e 16, caput e § 5º,
da Constituição Estadual (item 2.1.2 do Relatório DCE);
6.2.2.
aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo
diante da ausência de avaliação, pelo Conselho Estadual de Esporte, quanto ao
julgamento do mérito do projeto apresentado pela entidade, descumprindo as
exigências contidas nos arts. 10, § 1º, da Lei (estadual) n. 13.336/2005, com
redação dada pela Lei n. 14.366/2008, 10 e 11 da Lei (estadual) n. 14.367/2008
e 9º, § 1º, 10, II e 19 do Decreto (estadual) n. 1.291/2008 (item 2.1.3 do
Relatório DCE).
6.3. Declarar a Sra. Júlia Graziela
Melere Nardelli e a pessoa jurídica Sociedade dos Amigos do Turismo, Esporte,
Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, já qualificados, impedidos de receber novos
recursos do erário, nos termos do que dispõe o art. 16, § 3º, da Lei (estadual)
n. 16.292/2013, c/c os arts. 1º, § 2º, I, “b” e "c", da Instrução
Normativa n. TC-14/2012 e 61 do Decreto (estadual) n. 1.309/2012, desde que
recolhido o débito, caso contrário permanecerá o impedimento até a restituição
do valor do débito imputado.
6.4. Dar ciência deste Acórdão, do
Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, aos responsáveis, aos
procuradores constituídos nos autos e à Secretaria de Estado de Turismo,
Cultura e Esporte (SOL) (grifei).
A Diretoria de Recursos e
Reexames emitiu o Parecer n. DRR-376/2016 (fls. 10-19), opinando pelo
conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento, com a ratificação
integral da Deliberação recorrida.
O recurso interposto está
previsto no art. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, sendo adequado o seu
manejo contra decisão proferida em processos de prestação e tomada de contas,
podendo ser interposto, uma só vez e por escrito, pelo responsável, interessado
ou pelo Ministério Público de Contas, dentro do prazo de trinta dias contados a
partir da publicação da decisão no Diário Oficial Eletrônico do Tribunal de
Contas.
O Acórdão atacado foi
publicado no dia 13/06/2016, sendo que o Sr. Gilmar Knaesel, inconformado com
seu conteúdo, apresentou tempestivamente o presente Recurso de Reconsideração
nessa Corte de Contas no dia 06/07/2016.
Logo,
os requisitos de admissibilidade do presente recurso restaram atendidos.
Passa-se, na sequência, à
análise dos itens impugnados do Acórdão recorrido e das alegações do
recorrente.
1.
Aplicação de multa no valor
de R$ 1.136,52 em
razão das irregularidades descritas nos itens 6.2.1 e 6.2.2 do Acórdão n.
0268/2016
Os
itens 6.2.1 e 6.2.2 do Acórdão recorrido aplicaram multa ao recorrente, no
valor de R$ 1.136,52, em
face da aprovação do projeto, assinatura do
contrato e repasse dos recursos mesmo diante da ausência de documentos exigidos
na tramitação inicial do projeto, contrariando os itens 4, 12, 13, 14, 15, 16,
19, 23 e 24, do Anexo V, do Decreto Estadual n. 1.291/08, o art. 37, caput, da CRFB/88, e o art. 16, caput e § 5º, da Constituição Estadual;
e em face da aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos
recursos mesmo diante da ausência de avaliação, pelo Conselho Estadual de
Esporte, quanto ao julgamento do mérito do projeto apresentado pela entidade,
descumprindo as exigências contidas nos arts. 10, § 1º, da Lei Estadual n.
13.336/05, nos arts. 10 e 11 da Lei Estadual n. 14.367/08, e nos arts. 9º, §
1º, 10, inciso II, e 19 do Decreto Estadual n. 1.291/08.
Inconformado
com a penalidade, o
recorrente afirmou (fl. 4) que, conforme exaustivamente comentado no processo
originário, a sanção decorreu de vícios formais de gestão, derivados da falta
de estrutura na Secretaria de Estado do Turismo, Cultura e Esporte, aliados à
inexistência de um quadro de pessoal qualificado para a administração da pasta.
Destaca-se desde
já que, de acordo com o que esta Procuradora já defendeu em inúmeras outras
oportunidades, a Lei Complementar Estadual n. 381/2007,
ao dispor sobre o modelo de gestão e a estrutura organizacional da
Administração Pública Estadual, destacou em seu art. 7º as atribuições dos
cargos de Secretário de Estado, ao passo que seus arts. 24 e 25 definem a
responsabilidade do gestor pela supervisão na área de sua respectiva
competência, o que é bastante elementar.
Assim, o Secretário de Estado possui o dever legal
de supervisionar e fiscalizar os serviços executados no órgão de sua
competência, devendo para tanto ser responsabilizado no caso de irregularidades,
como as observadas no presente processo.
Deve-se recordar, ainda, que cabe também ao gestor a
responsabilização em face das chamadas culpa in
eligendo e culpa in vigilando, significando esta
a ausência de fiscalização das atividades de seus subordinados, ou dos bens e
valores sujeitos a esses agentes, ao passo que aquela representa a
responsabilidade atribuída a quem deu causa à má escolha de seu representante
ou preposto.
A responsabilidade do gestor, assim, decorre de seu comportamento
omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o que se tornou, no caso em comento,
uma das causas determinantes das irregularidades assinaladas.
Em seguida, o recorrente
destacou (fl. 4) a necessidade de análise de dois elementos novos.
O primeiro deles seria
relativo ao valor da multa aplicada, o qual corresponderia a 8% do valor máximo
atualizado pela Resolução n. 0114/2015, de R$ 5.000,00 para R$ 14.206,50.
Alegou que os eventos que deram origem à multa teriam ocorrido em 2009, de modo
que a consideração do novo valor como parâmetro para aplicação de multa
ofenderia princípios do direito que estabelecem que “uma norma só pode
retroagir para beneficiar e não para prejudicar” (fl. 4).
Ora, tal argumento não merece
acolhimento, uma vez que o recorrente incidiu em manifesto equívoco no seu
raciocínio.
Cabe esclarecer que a
referida Resolução n. TC-0114/2015, em seu art. 1º, fixou o valor de R$
14.206,50 como teto para aplicação de multas oriundas do art. 70 da Lei
Complementar n. 202/2000, destacando que o novo quantum é “resultante da correção pelo índice de atualização dos
créditos tributários estaduais, relativo ao período de 01.01.2001 a
31.03.2015”. Ou seja, tal valor, adotado como parâmetro, não se configura como
determinação nova, mas tão somente como atualização de valor previamente
estipulado. Nessa medida, não traz qualquer viés de retroatividade e violação a
direito formal.
No mesmo sentido se
manifestou a Área Técnica, explicando de maneira pormenorizada que (fls.
14v-15):
Em relação à alegação do Recorrente da
retroatividade trazida pela Resolução nº 0114/2015, cabem alguns
esclarecimentos sobre o tema.
O Tribunal de Contas quando do julgamento do
processo TCE – 12/001260061, entendeu possível a aplicação das multas com
fundamento na Resolução TC – nº 0114/2015, em todos os processos em andamento
no Tribunal de Contas, não levando em consideração o fato da ocorrência da
irregularidade ter sido praticada em data anterior ao advento da Resolução que
atualizou o valor da multa.
A interpretação conferida pelo
Colegiado deste Tribunal de Contas foi no sentido de que a motivação da
alteração do valor das multas, consubstanciada na Resolução TC 0114/2015,
decorre da incidência da correção monetária pelo índice oficial (“apenas
atualização”), não se tratando, portanto, da criação de nova sanção pecuniária.
No caso, consoante firmado pelo
Egrégio Plenário, deve-se interpretar a norma como de caráter processual e não
como uma norma de caráter penal, podendo, pois, ser aplicada a
todos os processos que ainda não tivessem sido julgados pelo Pleno, quando da
sua publicação.
A
partir de então pacificou-se, no âmbito deste Tribunal de Contas, o
entendimento exarado no precedente representado pelo julgamento do processo TCE
– 12/00126006.
Dessa
forma, não merece guarida a interpretação do Recorrente a respeito da
irretroatividade da Resolução TC – nº 0114/2015, devendo ser mantido o valor da
multa aplicada. (grifei)
O segundo elemento aventado
pelo recorrente se refere à suposta consolidação do princípio non bis in idem no que tange às multas
aplicadas no mesmo exercício, fundamentando-se o recorrente em voto da lavra do
Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, proferido no processo PCR n.
08/00460294 (fls. 4-7), no qual buscou ressaltar “a constância das ocorrências
fáticas e, consequentemente, das sanções correspondentes aplicadas”
escorando-se no argumento baseado na proporcionalidade das sanções aplicadas em
razão de “fatos idênticos” aos mesmos responsáveis no curso do mesmo exercício.
Tal tese centrou-se na
necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio
do non bis in idem numa relação
“interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas
aplicáveis em concurso de crimes na seara penal.
Além do voto em tela, o
recorrente transcreveu (fls. 7v-8) excerto relativo à análise de Leonardo de
Araújo Ferraz acerca da função das multas aplicadas pelos Tribunais de Contas,
apontando, em seguida (fl. 8) que as sanções pecuniárias retiram seu fundamento
de validade diretamente das Constituições Federal e Estadual, e reflexamente,
dos arts. 67, 68 e 70 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.
Trouxe, também, a título de
considerações finais, discussão (fls. 8v-9) relativa ao incidente de
uniformização de jurisprudência. Neste sentido, asseriu não restar dúvida de
que, após ter sido informado da ocorrência de irregularidades nos processos,
teria tomado as providências cabíveis para cada caso concreto. Afirmou que o
incidente de uniformização de jurisprudência constitui uma garantia do
jurisdicionado e não um juízo de conveniência dos tribunais, sendo a segurança
jurídica, a igualdade e a economia processual, valores que “indicam a
necessidade de se emprestar à jurisprudência um efeito mais vinculativo”.
Alegou que a decisão pelo
afastamento de responsabilidade ou imputação de débito e aplicação de multa
deveria manifestar a convicção da maioria dos Conselheiros, Auditores,
Promotores e Técnicos, o que não estaria evidenciado nos presentes autos,
levando o recorrente a lançar mão do princípio in dubio pro reo, pugnando pelo afastamento das sanções que lhe
foram aplicadas e que lhe teriam causado “grande prejuízo pessoal, moral,
financeiro e político”.
Inicialmente, não é
despiciendo sublinhar que a referida tese da continuidade delitiva, defendida
pelo nobre Conselheiro, vem sendo reiteradamente utilizada pelo recorrente a
título argumentativo e, por consequência, este Órgão Ministerial vem
sustentando sua improcedência em cada ocasião que se apresenta[1],
buscando sua análise e retorno ao entendimento anteriormente acolhido pela
Corte. Sendo assim, entende-se imprescindível a reiteração do posicionamento
firmado também nestes presentes autos.
No que diz respeito ao
relatório e voto proferidos pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira
Júnior nos autos do processo PCR n. 08/00460294, o relatório técnico apontou
(fl. 15) que o tema não se constitui fato novo na Diretoria de Recursos e
Reexames, reiterando manifestação anterior no sentido de que, na ocasião do
julgamento, tal voto divergente sequer foi colocado em votação, tendo
prevalecido o voto apresentado pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall.
Contudo, tal posicionamento pela adoção da tese da continuidade das infrações
administrativas teria sido posteriormente acatado, quando da deliberação
referente ao processo REC n. 14/00274831 (fl. 15v).
Conforme já referido, a tese
está fundada na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à
vista do princípio do non bis in idem
numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica
das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal, notadamente com a
adoção da regra que trata dos crimes continuados para as multas aplicadas ao
requerente, que exerceu a gestão da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e
Esportes de 01/07/2007 a 31/03/2010.
A consequência prática da
adoção dessa tese seria o cancelamento de diversas multas já aplicadas em
diversos processos cujas decisões acolheram a imputação de irregularidades ao
responsável, para que se aplicasse somente uma multa passível de
majoração/agravamento.
Trata-se de medida com a qual
este Ministério Público não se coaduna, pois cinge-se a aplicar,
indiscriminadamente, institutos do Direito Penal a circunstâncias fáticas
albergadas pela sistemática do Direito Administrativo. Diversas são as razões
que permitem discordar desse posicionamento.
Em primeiro lugar, entende-se
que houve confusão acerca da finalidade da sanção com sua natureza e
incidência. Explica-se: em que pese o fato de, ontologicamente, as sanções
civis, penais e administrativas estarem voltadas a um mesmo fim precípuo,
diversas são as suas naturezas e a maneira pela qual incidem.
Conforme ensina o Juiz
Federal Heraldo Garcia Vitta[2],
discorrendo acerca do tema:
A doutrina enfatiza, normalmente, a identidade
ontológica dos ilícitos; com isso
significando não haver distinção substancial entre os ilícitos penal e
administrativo; mas se esquece da identidade ontológica das sanções.
Pode-se alegar que a sanção penal teria por escopo punir
os infratores, e, assim, seria diferente da finalidade da sanção administrativa, pois esta visaria a desestimular os prováveis infratores.
Contudo, esse modo de pensar não tem
consistência; toda sanção tem por finalidade desestimular as pessoas a
cometerem ilícitos. A punição não é o fim da pena; é efeito, apenas, do ato
impositivo desta, ao sujeito. Toda sanção acarreta a punição do infrator, mas o
fim dela não é este, é o de evitar condutas contrárias ao Direito. Isso decorre
do regime democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana,
do respeito aos valores fundamentais da sociedade.
Embora não concordemos plenamente com os
argumentos expendidos quanto à finalidade das penas, tal qual expõe Nelson
Hungria, convém recordarmos suas palavras, com as quais esclarece a identidade
ontológica delas: “Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito
administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena
administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma
fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o
mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um
meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas
essencialmente heterogêneas, e.g., a
multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é
conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade
de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece
(embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com
o mesmo caráter de contragolpe do ilícito, à semelhança das penas criminais
(...)”.
As sanções penais e administrativas são iguais,
homogêneas, e eventuais divergências de gravidade
não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais. Apesar disso, mencionam-se
sanção penal e sanção administrativa, que são tipos ou espécies delas; o
critério adotado para distingui-las, como visto, é o da autoridade competente
para impô-las, segundo o ordenamento jurídico (critério formal).
(grifei)
Note-se, portanto, que apesar
de direcionadas a uma mesma finalidade última, as sanções penais e
administrativas diferem essencialmente em função da autoridade competente para
sua imposição e o ordenamento jurídico do qual extraem seu fundamento de
validade.
Nesse sentido, imprescindível
que se tenha em mente que o Tribunal se orienta pelas prescrições contidas na
Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica) e na Resolução n.
TC-06/2001 (Regimento Interno) para examinar a ocorrência de irregularidades e
aplicar as respectivas penalidades.
Atente-se, igualmente, para o
fato de que o âmbito de trabalho é o administrativo. Por outro lado, o Código
Penal traz em seu corpo regramento específico para aplicação de penas de acordo
com as respectivas cominações legais, observando toda uma estrutura de regras a
serem adotadas conforme cada tipo penal específico e segundo o sistema
trifásico de estabelecimento da pena.
É exatamente neste contexto
formal que se cinge a discussão: haveria possibilidade de aplicação de
determinada regra específica do Código Penal para, lançando-se mão da analogia,
orientar a aplicação de multas em face de irregularidade no âmbito dessa Corte
de Contas? Poderia se cogitar da aplicação das especificidades do concurso de
crimes (continuidade delitiva) e do princípio do non bis in idem?
Entende-se que não, pois a
mera transposição de tais caracteres ínsitos à seara penal para o presente
contexto fático administrativo significaria ruptura divorciada da realidade.
Não se está aqui a pregar um
repúdio absoluto à tese da existência de zonas de contato entre as esferas
administrativa e penal, mas sim a defender a impossibilidade de que ambas se imiscuam
pelo mero alvedrio do intérprete, sem que haja substrato fático-normativo ou
jurisprudencial hábil a permitir a ocorrência de tais pontos de contato.
Sobre tal entendimento,
necessário que se observem os comentários traçados por Fábio Medina Osório[3],
mesmo autor utilizado pelo nobre Conselheiro para construção de sua tese:
Também no Direito Administrativo Sancionatório
pode ocorrer continuidade de infrações, uma continuação de fatos ilícitos que
recomenda cautelas na imposição cumulativa de sanções. Aqui, na prática, há uma
série de fatos autônomos. Todavia, por um princípio humanitário de política
repressiva, não se tem descurado do tratamento mais benigno, ou pelo menos não
tão severo, que têm merecido tais hipóteses de infrações. É certo que, no sistema
pena, existe previsão expressa dessa espécie de tratamento mais favorável ao
agente. É comum, até rotineiro,
constatar a omissão das legislações de Direito Administrativo Sancionador,
desde as que se aplicam diretamente no interior do sistema judicial, até as que
alcançam as instâncias administrativas em sentido estrito nos entes federados.
É
preocupante, certamente, o silêncio sistemático e nocivo do Direito
Administrativo Sancionador pátrio, como regra geral, no trato dessa matéria,
sendo forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase totalidade das
legislações administrativas repressoras no campo federal, nos Estados e
Municípios, embora não se possa generalizar a esse respeito, até mesmo por
ausência de pesquisas de campo nesse sentido. Pela percepção
empírica que se tem, calcada em amostragens significativas oriundas das
chamadas instituições de controle, raramente se menciona algo positivo a
respeito da continuidade de infrações, como se esta figura inexistisse no
terreno disciplinar ou administrativo lato
sensu. Uma falha legislativa alastrada em nosso ordenamento sancionador,
sem dúvida. (grifei)
Como se vê, no excerto
colacionado o autor destaca exatamente o caráter de excepcionalidade da questão
da continuidade delitiva no âmbito administrativo, pontuando a omissão
legislativa a respeito, reforçando a tese exposta até aqui. Não se desconhece
que exista intenção sincera por parte daqueles que esposam a defesa do uso da
analogia no caso, mas o fato é que esta não encontra ressonância legal e,
quiçá, jurisprudencial.
Imperioso que se opere uma
breve análise do instituto da continuidade delitiva.
O instituto do crime
continuado está previsto no art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:
Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão,
pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das
penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer
caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente,
se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios
autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas
diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz,
considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a
personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a
pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o
triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste
Código.
De acordo com a posição do
Promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches Cunha[4]:
Estampado no art. 71 do CP, verifica-se a
continuidade delitiva (ou crime continuado) quando o sujeito, mediante
pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie,
guardando entre si um elo de continuidade (em especial, as mesmas condições de
tempo, lugar e maneira de execução).
Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli denominam esta espécie de concurso de “concurso material atenuado”
ou “falso crime continuado”, alegando que “onticamente, não é um verdadeiro
crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos”. [...]
Nota-se,
portanto, que o instituto está baseado em razões de política criminal. O juiz,
ao invés de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em
continuidade, por ficção jurídica, para fins da pena, considera como se um só
crime foi praticado pelo agente, devendo ter a sua reprimenda
majorada. (grifei)
Por sua vez, o Procurador de
Justiça e penalista Rogério Greco[5],
ao comentar sobre as origens do instituto, traz a seguinte lição:
Afirma Bettiol que “a figura do crime continuado
não é de data recente. As suas
origens ‘políticas’ acham-se sem dúvida no favor
rei que impeliu os juristas da Idade Média a considerar como furto único a
pluralidade de furtos, para evitar as consequências draconianas que de modo
diverso deveriam ter lugar: a pena de morte ao autor de três furtos, mesmo que
de leve importância. Os nossos práticos insistiam particularmente na
contextualidade cronológica da prática dos crimes, para considerá-los como
crime único, se bem que houvesse também quem se preocupasse em encontrar a
unidade do crime no uno impetu com o
qual os crimes teriam sido realizados”. (grifei)
Nesse mesmo sentido,
referenciando às origens históricas do crime continuado, o Magistrado e
professor Guilherme de Souza Nucci[6]
aduz:
(...) quando o agente, mediante mais de uma ação
ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de
tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição de que os
subsequentes são uma continuação do primeiro, formando o crime continuado. É a forma mais polêmica de concursos de
crimes, proporcionando inúmeras divergências, desde a natureza jurídica até a
conceituação de cada um dos requisitos que o compõem. Narram os
penalistas que o crime continuado teve sua origem entre os anos de 1500 e 1600,
em teoria elaborada pelos práticos italianos, dos quais ressaltam-se os trabalhos
de Prospero Farinacio e Julio Claro. Naquela
época, a lei era por demais severa, impondo a aplicação da pena de morte quando
houvesse a prática do terceiro furto pelo agente (Potest pro tribos furtis quamvis minimis poena imponi). O
tratamento era, sem dúvida, cruel, mormente numa época de tanta fome e
desolação na Europa. Por isso, escreveu Claro: “Diz-se que o furto é
único, ainda que se cometam vários em um dia ou em uma noite, em uma casa ou em
várias. Do mesmo modo se o ladrão confessou ter cometido vários furtos no mesmo
lugar e em momentos distintos, interpretando-se tal confissão favoravelmente ao
agente, isto é, que suas ações, em momentos distintos, continuadamente, são um
só furto e não vários...” (Carlos Fontán Balestra, Tratado de derecho penal, t. III, p. 60). E, ainda, Farinacio:
“Tampouco existem vários furtos senão um só, quando alguém roubar de um só
lugar e em momentos diversos, mas continuada e sucessivamente, uma ou mais
coisas: ... não se pode dizer ‘várias vezes’ se os roubos não se derem em
espécie e tempo distintos. O mesmo se pode dizer daquele que, em uma só noite e
continuadamente, comete diversos roubos, em lugares distintos, ainda que de
diversos objetos... a esse ladrão não se lhe pode enforcar, como se lhe
enforcaria se tivesse cometido três furtos em momentos distintos e não
continuados” (Balestra, ob. Cit., p. 61). (grifei)
Dos excertos colacionados
extrai-se que o instituto tem suas raízes num contexto histórico em que sua
gênese e aplicação se fizeram necessárias no intuito de temperamento das penas
aplicadas, eis que se corria o risco de penalização excessiva e alheia a
quaisquer critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Era necessário
proteger-se o acusado em face da sociedade e do ordenamento.
Hodiernamente, configura-se
como elemento de política criminal, cuja natureza de ficção jurídica[7]
orienta-se no sentido de beneficiar o agente para que não seja sobremaneira
penalizado pelos diversos núcleos do tipo por ele praticados, considerando-os
como interligados por um mesmo fio condutor que costura elementos como os
crimes propriamente ditos, as condições de tempo, lugar, maneira de execução e
outras semelhantes.
Tratamento divergente merece
o presente caso dos autos, uma vez que de natureza diversa daquela que serve de
substrato à seara penal. Isso porque aqui, as condutas do requerente ensejam a
reprovabilidade ínsita aos crimes que ferem o erário e, por tabela, a
sociedade.
No caso da maioria dos tipos
penais previstos no Código Penal, os objetos materiais e jurídicos constituem
uma miríade de atingidos, ao passo que naquelas irregularidades abrangidas pela
competência das Cortes de Contas, tais objetos são coincidentes, resumindo-se
na figura do erário.
Assim, entende-se impossível
a aplicação analógica do instituto do crime continuado, sobretudo em função de
seu objetivo primordial, pois que não se observa imperiosa a preservação ou
garantia de que o requerente não será excessivamente penalizado.
Ora, se do cotejamento dos
objetos jurídicos e materiais atingidos fosse aplicável algum brocardo latino
notoriamente penalístico, seria certamente o pro societate e não o pro reo,
eis que as irregularidades cabalmente demonstradas repercutem direta e
indiretamente nos interesses da sociedade, muito mais do que as multas afetam
qualquer subjetividade do requerente enquanto responsável apenado.
Ademais, não bastassem os
argumentos de cunho interpretativo, normativo e histórico-filosófico até aqui
perfilados, há que se destacar também o fato de que os requisitos do crime
continuado não poderiam ser observados e respeitados caso houvesse a adoção do
instituto no presente caso. De acordo com a doutrina[8],
o crime continuado apresenta os seguintes requisitos:
(A) Pluralidade de condutas: mais de uma
ação ou omissão que implique em vários crimes;
(B) Pluralidade de crimes da mesma espécie: aproxima-se
do concurso material ao exigir condutas provocando vários crimes.
Diferencia-se, no entanto, ao restringir sua aplicação a crimes da mesma
espécie.
(C) Elo de continuidade: é também
requisito do crime continuado o elo de continuidade entre as condutas. Esse elo
se revela através:
(C.1) Das
mesmas condições de tempo: a lei não anuncia qual o hiato temporal máximo
que deve existir entre o primeiro e o último delito da cadeia, alertando a
jurisprudência que não pode suplantar 30 (trinta) dias.
(C.2) Das
mesmas condições de lugar: para a jurisprudência, haverá as mesmas
condições de lugar quando os crimes são praticados na mesma comarca (ou em
comarcas vizinhas).
(C.3) Da
mesma maneira de execução (modus operandi): como bem
alerta Bitencourt, a lei exige semelhança e não identidade. A semelhança na
maneira de execução se traduz no modus
operandi de realizar a conduta delitiva maneira de execução é o modo, a
forma, o estilo de praticar o crime, que, na verdade, é apenas mais um dos
requisitos objetivos da continuação criminosa.
(C.4) Outras
circunstâncias semelhantes: abrangendo quaisquer outras
circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade. (grifado no
original)
Nesse sentido, destaque-se que
o item C.1 do trecho acima aponta que o hiato temporal máximo que deve existir
entre o primeiro e o último delito na cadeia fática é
de 30 dias.
Ora, levando-se em
consideração que o requerente vem sendo recorrentemente penalizado em função de
irregularidades constatadas durante todo o tempo em que ocupou a Secretaria de
Estado de Turismo, Cultura e Esportes de Santa Catarina (período que vai de
01/07/2007 a 31/03/2010), conclui-se que o requisito temporal restaria
desatendido, caso fosse aplicada a continuidade delitiva, descaracterizando-a,
portanto. Note-se que quaisquer pontos de referência dentro do período referido
extrapolariam os 30 dias adotados pacificamente pela jurisprudência[9].
Há, ainda, outro requisito
apontado por boa parte da doutrina e da jurisprudência para o reconhecimento da
configuração da continuidade delitiva: que a atuação do agente se dê mediante
unidade de desígnios, isto é, mediante um só plano delituoso. Esse requisito
traduz a adoção da teoria objetivo-subjetiva, assim explicada por Rogério Greco[10]:
A última teoria, que possui natureza híbrida,
exige tanto as condições objetivas como o indispensável dado subjetivo, ou
seja, deverão ser consideradas não só as condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, como também a unidade de desígnio ou relação
de contexto entre as ações criminosas.
Acreditamos
que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso
sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando
desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O
criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz. (grifei)
Trata-se de teoria adotada
pela jurisprudência tanto do STF[11]
quando do STJ[12].
Mais uma vez, tem-se
retratada a impossibilidade de aplicação analógica da continuidade ao presente
caso, uma vez que despiciendo o exame da unidade de desígnios nas condutas por
parte do requerente, uma vez que, se o liame subjetivo por muitas das vezes é
de difícil comprovação caso a caso, justamente ensejando a aplicabilidade das
teorias da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, que dirá numa cadeia
sucessiva de atos.
Não obstante, cada conduta é
una e destacada (possibilitando, eventualmente, a aplicação analógica do
concurso material de crimes, consoante o posicionamento reiterado do Tribunal),
ensejando seus respectivos exame e processo, inclusive representando
afastamento da alegação de bis in idem,
a ser oportunamente analisado.
Quanto ao argumento
apresentado no excerto colacionado pela Área Técnica, no sentido de que o art.
72 do Código penal trataria as penas de multa diferentemente das restritivas de
liberdade em delito continuado ou em concurso material (fl. 18), fundamentando
assim parte de sua discordância com a aplicabilidade da continuidade delitiva,
discorda-se parcialmente.
Em princípio, compartilha-se
a tese central da inaplicabilidade da continuidade delitiva; contudo, cabe
ressaltar meramente a título informativo que, em que pese a previsão do art. 72
do Código Penal, doutrina e jurisprudência vislumbram tratamento específico das
penalidades de multa no âmbito da continuidade delitiva. Veja-se[13]:
O art. 72 do CP avisa: “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e
integralmente”.
Nota-se que a pena de multa não obedece às
regras diferenciadas do tratamento dispensado ao concurso de crimes. Para a
fixação da multa, portanto, só se aplica uma regra: aplicação distinta e
integral.
Não se descarta doutrina lecionando que essa
regra não serve para o crime continuado. Para fins de aplicação de pena, no
direito brasileiro, o crime continuado, por ficção jurídica, é considerado
crime único. Logo, aplica-se a pena de multa uma única vez.
Nesse sentido vem decidindo o STJ: “’A pena de multa, aplicada no crime
continuado, escapa à norma contida no art. 72 do Código Penal’ (Resp nº
68.186/DF, Relator Ministro Assis Toledo, in DJ 18/12/1995). As penas de multa,
no caso de concurso de crimes, material e formal, aplicam-se cumulativamente,
diversamente do que ocorre com o crime continuado, induvidoso concurso material
de crimes gravados pela menor culpabilidade do agente, mas que é tratado como
crime único pela lei penal vigente, como resulta da simples letra dos artigos
71 e 72 do Código Penal, à luz dos artigos 69 e 70 do mesmo diploma legal”.
Apesar dessa previsão,
entende-se inócuo seu conteúdo ao presente exame, eis que já fartamente
comprovada a impossibilidade da incidência da tese da continuidade delitiva
sobre o objeto destes autos.
Ressalte-se que o argumento
da Área Técnica seria plenamente cabível aqui levando-se em conta, num
exercício hipotético, se no presente caso se admitisse o concurso material de
crimes (o único que se afigura admissível, diga-se de passagem), uma vez que aí
sim aplicável o previsto no art. 72 do Código Penal, incidindo as penas de
multa distinta e integralmente, cumulando-se.
No que diz respeito ao
argumento de que a aplicação de penalidades de multa em função de
irregularidades apontadas nos processos envolvendo o requerente implicaria em
violação ao princípio do non bis in idem,
entende-se igualmente não assistir razão ao requerente e ao ilustre
Conselheiro.
Acerca desse princípio,
Rogério Sanches Cunha[14]
ensina o seguinte:
Este princípio não está previsto expressamente
na Constituição, mas sim no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal
Internacional:
“Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição em contrário do presente
Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por actos
constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2 –
Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no
artigo 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo
Tribunal.
Entende-se, majoritariamente, que o princípio em
estudo não é absoluto. O próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, prevê a
possibilidade de julgamento por mesmo fato nos casos dos crimes de genocídio,
crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desde que o primeiro tribunal a
realizar o julgamento tenha tentado subtrair a competência do Tribunal
Internacional ou não tenha havido a imparcialidade necessária à ação da
justiça. Entre nós, a exceção ao
princípio do non bis in idem se
encontra no artigo 8º, que autoriza novo julgamento e condenação pelo mesmo
fato, nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira (vide item
“eficácia da lei penal no espaço”).
O princípio do non bis in idem tem três significados:
(A) Processual: ninguém pode ser processado
duas vezes pelo mesmo crime;
(B) Material: ninguém pode ser condenado pela
segunda vez em razão do mesmo fato;
(C) Execucional: ninguém pode ser executado
duas vezes por condenações relacionadas ao mesmo fato. (grifado no original)
De outra volta, pela
explicação de Fábio Osório Medina[15],
Intimamente ligado aos princípios da legalidade
e da tipicidade, o princípio da proibição do bis in idem, cujas raízes remontam ao devido processo legal
anglo-saxônico, também atua em matéria de Direito Administrativo Sancionador,
possuindo um largo alcance teórico e restritos alcance e significados práticos.
Tal princípio, em nosso sistema, está constitucionalmente conectado às
garantias de legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo
legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88. Suas consequências
e desdobramentos, no entanto, são bastante tímidos na jurisprudência e na
doutrina brasileiras, deixando lacunas consideráveis ao crivo dos juristas.
Trata-se de um tema que frequente, curiosamente, mais o imaginário do
inconsciente do que a ostensividade da consciência jurídica nacional. Sabe-se
que se trata de um princípio ligado à justiça e a outros valores não menos
nobres, mas a construção de seus significados e significantes passa por uma
compreensão acerca das estruturas de gestão das normas sancionadoras. A teoria não pode dissociar-se da realidade,
e assim ocorre com a jurisprudência. Por isso, um novo patamar de compreensão
para o non bis in idem pressupõe, de
um lado, a descrição e o diagnóstico do panorama vigente e, de outro, a
proposição de novas alternativas hermenêuticas, ainda que desde um ponto de
vista geral.
Insistimos, de qualquer sorte, no seguinte
ponto: pensar o non bis in idem é,
acima de tudo, refletir sobre as delicadas relações entre as esferas penal e
administrativa, problema que não é novidade no Brasil ou no exterior. [...]
A ideia
básica do non bis in idem é que
ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato, eis uma
concepção praticamente universal, que desde as origens algo-saxônicas
encontra-se presente nos ordenamentos democráticos (v.g. art. 8º, n. 4, do
Pacto de San José da Costa Rica) (grifei)
À vista dos ensinamentos
colacionados, torna-se óbvia a inocorrência de violação ao referido princípio,
uma vez que o requerente vem sendo sucessivamente considerado responsável por
irregularidades passíveis de penalidade de multa em processos distintos oriundos de condutas distintas, nos quais foram amplamente respeitados
os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Note-se que, tangencialmente
aos três significados do princípio apontados acima, o presente caso não se
enquadra em nenhum. Isso porque, processualmente, o requerente foi processado
duas ou mais vezes por condutas diversas; materialmente, vem sendo condenado em
função de fatos distintos; e no plano execucional, poderia ser executado em
virtude de condenações relacionadas a fatos múltiplos.
Neste mesmo sentido se
posicionou a Área Técnica por meio do excerto trazido à lume, no qual constam
os seguintes argumentos (fls. 16v-17):
A ofensa ao princípio do “non bis in idem”,
como se sabe, caracteriza-se pela duplicidade de penalização aplicada ao
indivíduo, em razão dos mesmos fatos, o que não se verifica nas situações
objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas em relação às prestações de contas
referentes aos fundos do SEITEC. [...]
Embora os atos praticados irregularmente pelo
Gestor sejam da mesma ordem, tais ações são praticadas em fatos administrativos
distintos. [...]
Deste modo, o ato administrativo típico é sempre
manifestação volitiva da Administração, no desempenho de suas funções de Poder
Público, visando a produzir algum efeito jurídico, o que o distingue do fato
administrativo, que, em si, é atividade pública material, desprovida de
conteúdo de direito.
Como fato administrativo devemos entender toda
realização material da Administração em cumprimento de alguma decisão
administrativa, tal como a concessão de recursos do Fundo do SEITEC, que se
constitui, como materialização da vontade administrativa, e só reflexamente
interessa ao Direito, em razão das consequências jurídicas que dele possam
advir para a Administração e para os administrados.
Portanto, não há que se falar em ofensa ao
princípio do “non bis in idem”, em razão de o Tribunal de Contas julgar e
penalizar os atos jurídicos praticados pelo Gestor dos Fundos do SEITEC, em
processos que tem como objeto fatos administrativos distintos, muito embora, a
irregularidade dos atos que dão origem as penalizações sejam da mesma natureza
e tenham a mesma identidade.
Ademais, esclareça-se que o Doutrinador Fábio
Medina Osório, na sua obra, empregada pelo Conselheiro Adircélio de Moraes
Ferreira Júnior para sustentar a tese ora rebatida, menciona a questão do
princípio do “non bis in idem” interprocessos não exatamente na mesma
instância de julgamento, mas nas situações de independência das instâncias de
julgamento (Penal, Civil e Administrativo), a qual se submete o ato
administrativo.
Considerando os argumentos
postos, bem como os excertos doutrinários e jurisprudenciais que lhes serviram
de suporte técnico-jurídico, entende-se pela manutenção da linha de
posicionamento que vinha sendo adotada majoritariamente pelo Tribunal de
Contas, em prejuízo da tese aventada pelo nobre Conselheiro.
Por fim, relativamente ao
terceiro ponto apresentado pelo requerente, referente à não uniformização de
jurisprudência e dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas
características, também não lhe assiste a razão.
Conforme já exaustivamente
delineado ao longo deste parecer, o requerente vem sendo sucessivamente
responsabilizado por irregularidades em processos específicos, que abrangem
cada conduta de acordo com suas respectivas peculiaridades, ponderadas de
acordo com os critérios de convicção de cada Relator e do Plenário, dentro dos
limites legais insculpidos no art. 70, inciso II, da Lei Complementar Estadual
n. 202/2000.
A posição aqui adotada
coaduna-se com aquela já reiteradamente externalizada pela Área Técnica (fls.
18v-19):
No que se refere ao pedido de uniformização de
jurisprudência, não procede o recurso proposto. Cada processo possui suas
peculiaridades e sua decisão depende das especificidades do caso concreto, com
agravantes e atenuantes que justificam a adoção de valores distintos.
Assim, apesar de o Tribunal Pleno ter deixado de
aplicar a multa em situações semelhantes, tal fato não tem o condão de sanar as
irregularidades apontadas no Acórdão recorrido, pois este Tribunal tem a
competência para rever os seus entendimentos.
Dessa
forma, considerando que os argumentos apresentados pelo Recorrente, em suas
razões de recurso, não são suficientes para alterar a Decisão recorrida,
manifesta-se pela manutenção do decisum, na sua íntegra.
Desse modo, por tudo quanto
referido e examinado no corpo deste Parecer, bem como em função da ausência de
argumentos referentes às irregularidades em si, além da inexistência manifesta
de superveniência de documentos ou argumentos com eficácia probatória,
entende-se não lograr êxito o recorrente em seu intuito desconstitutivo do
Acórdão n. 0268/2016.
4.
Conclusão
Ante o exposto, o Ministério
Público de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso
II, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, manifesta-se pelo CONHECIMENTO
do recurso de Reconsideração interposto para, no mérito, NEGAR-LHE PROVIMENTO, ratificando-se, na íntegra,
a Deliberação recorrida.
Florianópolis, 15 de dezembro
de 2016.
Cibelly Farias Caleffi
Procuradora
[1] Processos REV n.
15/00535416, REV n. 15/00567881, REV n. 15/00586754, REC n. 15/00617307, REC n.
15/00588889 e REC n. 16/00022496.
[2] VITTA,
Heraldo Garcia. A sanção no direito
administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66-68.
[3] OSÓRIO,
Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 347.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 458-459.
[5] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói:
Editora Impetus, 2015, p. 227.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 400.
[7] STJ, HC 262842/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 16/05/2014. STJ, REsp 1196299/SP, Rel. Min.
Marco Aurélio Belizze, 5ª T., DJe 8/05/2013. STJ, HC 141239/RJ, Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T, DJe 15/03/2010.
[8] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 459-461.
[9] STF, HC 73219/SP, Rel. Min.
Maurício Corrêa, DJ 26/04/1996. STF, HC 69896, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ
02/04/1993.
[10] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015. p. 230-231.
[11] STF, RHC 85577/RJ, 2ª Turma.
[12] STJ, HC 206784/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 29/06/2012. STJ,
RHC 22800/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., DJe 02/08/2010. STJ, HC 128756/SP,
Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 29/03/2010.
[13] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 463-464.
[14] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 98-99.
[15] OSÓRIO,
Fábio Medina. Direto administrativo
sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 281-283.