PARECER nº:

MPTC/47015/2016

PROCESSO nº:

REC 16/00353417    

ORIGEM:

Fundo Estadual de Incentivo ao Esporte - FUNDESPORTE

INTERESSADO:

Gilmar Knaesel

ASSUNTO:

Recurso de Reconsideração da decisão exarada no processo-TCE-12/00125700.

 

 

 

Trata-se o presente processo de Recurso de Reconsideração (fls. 3-9) interposto pelo Sr. Gilmar Knaesel, ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esportes, em face do Acórdão n. 0268/2016, exarado nos autos do processo TCE n. 12/00125700, o qual julgou irregulares, com imputação de débito, as contas relativas ao repasse de recursos no montante de R$ 95.000,00 à Sociedade dos Amigos do Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, para aplicação no projeto “Esporte para todos”, bem como determinou a aplicação de penalidade de multa, nos seguintes termos:

VISTOS, relatados e discutidos estes autos, relativos à Tomada de Contas Especial instaurada pela Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Esporte, por meio da Portaria n. 026/11, para apuração de irregularidades acerca de supostas irregularidades na prestação de contas de recursos repassados.

Considerando que os Responsáveis foram devidamente citados, conforme consta nas fs. 135, 136, 142 e 149 dos presentes autos;

Considerando que as alegações de defesa e documentos apresentados são insuficientes para elidir irregularidades apontadas pelo Órgão Instrutivo, constantes do Relatório de Instrução DCE/CORA/Div.1 n. 0702/2015;

Considerando que não houve manifestação à citação dos Responsáveis Júlia Graziela Melere Nardelli e Sociedade dos Amigos do Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, subsistindo a(s) irregularidade(s) apontada(s) pelo Órgão Instrutivo, constante(s) do Relatório Técnico;

ACORDAM os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, reunidos em Sessão Plenária, diante das razões apresentadas pelo Relator e com fulcro nos arts. 59 da Constituição Estadual e 1° da Lei Complementar n. 202/2000, em:

6.1. Julgar irregulares, com imputação de débito, na forma do art. 18, III, “a”, “b” e “c”, c/c o art. 21, caput da Lei Complementar (estadual) n. 202/2000, as contas pertinentes à presente Tomada de Contas Especial acerca de recursos repassados à Sociedade dos Amigos do Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, para aplicação no projeto “Esporte para todos”, por meio da Nota de Empenho n. 230/2009, no valor de R$ 95.000,00, e respectivas Notas de Liquidação ns. 4193/2009, no valor de R$ 50.000,00, e 4571/2009, no valor de R$ 45.000,00, de acordo com os relatórios emitidos nos autos, e CONDENAR SOLIDARIAMENTE, nos termos do art. 18, § 2º, da Lei Complementar (estadual) n. 202/2000, a SOCIEDADE DOS AMIGOS DO TURISMO, ESPORTE, CULTURA E MEIO AMBIENTE (SATECMA), DE TIMBÓ, CNPJ n. 78.486.529/0001-54, e a Sra. JÚLIA GRAZIELA MELERE NARDELLI - Presidente daquela entidade em 2009, CPF n. 043.195.969-27, ao pagamento da quantia de R$ 95.000,00 (noventa e cinco mil reais), referente a omissão no dever de prestar as contas dos recursos recebidos por meio da Nota de Empenho n. 230/2009, supracitado, em afronta aos arts. 58, parágrafo único da Constituição Estadual; 144, § 1º, da Lei Complementar (estadual) n. 381/2007; 69, I e II, c/c o art. 70 do Decreto (estadual) n. 1.291/2008; à Cláusula Oitava do Contrato de Apoio Financeiro n. 14.015/2009-5; e 49 e 52 da Resolução n. TC-16/1994 (item 2.2.1 do Relatório de Instrução DCE/CORA/Div.1 n. 0787/2014), fixando-lhes o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação do Acórdão no Diário Oficial Eletrônico do TCE (DOTC-e), para comprovar, perante este Tribunal, o recolhimento do valor de débito ao Tesouro do Estado, atualizado monetariamente e acrescido dos juros legais (arts. 43 e 44 da Lei Complementar n. 202/2000), a partir da data do repasse das referidas notas, sem o que fica, desde logo, autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas para que adote providências à efetivação da execução da decisão definitiva (art. 43, II, da Lei Complementar n. 202/2000).

6.2. Aplicar ao Sr. GILMAR KNAESEL, ex-Secretário de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, CPF n. 341.808.509-15, com fundamento no art. 70, II, da Lei Complementar (estadual) n. 200/2000, a multa no valor de R$ 1.136,52 (mil cento e trinta e seis reais e cinquenta e dois centavos), em razão das irregularidades abaixo descritas, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação do Acórdão no DOTC-e, para comprovar perante este Tribunal o recolhimento do valor ao Tesouro do Estado, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento de peças processuais ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, para que adote providências à efetivação da execução da decisão definitiva (art. 43, II e 71 da Lei Complementar n. 202/2000), em face das seguintes restrições:

6.2.1. aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo diante da ausência de documentos exigidos na tramitação inicial do projeto, contrariando os itens 4, 12, 13, 14, 15, 16, 19, 23 e 24 do Anexo V do Decreto (estadual) n. 1.291/2008, por força dos arts. 30 e 36, § 3º, do mesmo Decreto, bem como descumpriu o princípio da legalidade e a necessária motivação dos atos, ditado pelos arts. 37, caput, da Constituição Federal e 16, caput e § 5º, da Constituição Estadual (item 2.1.2 do Relatório DCE);

6.2.2. aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo diante da ausência de avaliação, pelo Conselho Estadual de Esporte, quanto ao julgamento do mérito do projeto apresentado pela entidade, descumprindo as exigências contidas nos arts. 10, § 1º, da Lei (estadual) n. 13.336/2005, com redação dada pela Lei n. 14.366/2008, 10 e 11 da Lei (estadual) n. 14.367/2008 e 9º, § 1º, 10, II e 19 do Decreto (estadual) n. 1.291/2008 (item 2.1.3 do Relatório DCE).

6.3. Declarar a Sra. Júlia Graziela Melere Nardelli e a pessoa jurídica Sociedade dos Amigos do Turismo, Esporte, Cultura e Meio Ambiente, de Timbó, já qualificados, impedidos de receber novos recursos do erário, nos termos do que dispõe o art. 16, § 3º, da Lei (estadual) n. 16.292/2013, c/c os arts. 1º, § 2º, I, “b” e "c", da Instrução Normativa n. TC-14/2012 e 61 do Decreto (estadual) n. 1.309/2012, desde que recolhido o débito, caso contrário permanecerá o impedimento até a restituição do valor do débito imputado.

6.4. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, aos responsáveis, aos procuradores constituídos nos autos e à Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte (SOL) (grifei).

A Diretoria de Recursos e Reexames emitiu o Parecer n. DRR-376/2016 (fls. 10-19), opinando pelo conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento, com a ratificação integral da Deliberação recorrida.

O recurso interposto está previsto no art. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, sendo adequado o seu manejo contra decisão proferida em processos de prestação e tomada de contas, podendo ser interposto, uma só vez e por escrito, pelo responsável, interessado ou pelo Ministério Público de Contas, dentro do prazo de trinta dias contados a partir da publicação da decisão no Diário Oficial Eletrônico do Tribunal de Contas.

O Acórdão atacado foi publicado no dia 13/06/2016, sendo que o Sr. Gilmar Knaesel, inconformado com seu conteúdo, apresentou tempestivamente o presente Recurso de Reconsideração nessa Corte de Contas no dia 06/07/2016.

Logo, os requisitos de admissibilidade do presente recurso restaram atendidos.

Passa-se, na sequência, à análise dos itens impugnados do Acórdão recorrido e das alegações do recorrente.

1.     Aplicação de multa no valor de R$ 1.136,52 em razão das irregularidades descritas nos itens 6.2.1 e 6.2.2 do Acórdão n. 0268/2016

Os itens 6.2.1 e 6.2.2 do Acórdão recorrido aplicaram multa ao recorrente, no valor de R$ 1.136,52, em face da aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo diante da ausência de documentos exigidos na tramitação inicial do projeto, contrariando os itens 4, 12, 13, 14, 15, 16, 19, 23 e 24, do Anexo V, do Decreto Estadual n. 1.291/08, o art. 37, caput, da CRFB/88, e o art. 16, caput e § 5º, da Constituição Estadual; e em face da aprovação do projeto, assinatura do contrato e repasse dos recursos mesmo diante da ausência de avaliação, pelo Conselho Estadual de Esporte, quanto ao julgamento do mérito do projeto apresentado pela entidade, descumprindo as exigências contidas nos arts. 10, § 1º, da Lei Estadual n. 13.336/05, nos arts. 10 e 11 da Lei Estadual n. 14.367/08, e nos arts. 9º, § 1º, 10, inciso II, e 19 do Decreto Estadual n. 1.291/08.

Inconformado com a penalidade, o recorrente afirmou (fl. 4) que, conforme exaustivamente comentado no processo originário, a sanção decorreu de vícios formais de gestão, derivados da falta de estrutura na Secretaria de Estado do Turismo, Cultura e Esporte, aliados à inexistência de um quadro de pessoal qualificado para a administração da pasta.

Destaca-se desde já que, de acordo com o que esta Procuradora já defendeu em inúmeras outras oportunidades, a Lei Complementar Estadual n. 381/2007, ao dispor sobre o modelo de gestão e a estrutura organizacional da Administração Pública Estadual, destacou em seu art. 7º as atribuições dos cargos de Secretário de Estado, ao passo que seus arts. 24 e 25 definem a responsabilidade do gestor pela supervisão na área de sua respectiva competência, o que é bastante elementar.

Assim, o Secretário de Estado possui o dever legal de supervisionar e fiscalizar os serviços executados no órgão de sua competência, devendo para tanto ser responsabilizado no caso de irregularidades, como as observadas no presente processo.

Deve-se recordar, ainda, que cabe também ao gestor a responsabilização em face das chamadas culpa in eligendo e culpa in vigilando, significando esta a ausência de fiscalização das atividades de seus subordinados, ou dos bens e valores sujeitos a esses agentes, ao passo que aquela representa a responsabilidade atribuída a quem deu causa à má escolha de seu representante ou preposto.

A responsabilidade do gestor, assim, decorre de seu comportamento omissivo quanto ao dever de fiscalizar, o que se tornou, no caso em comento, uma das causas determinantes das irregularidades assinaladas.

Em seguida, o recorrente destacou (fl. 4) a necessidade de análise de dois elementos novos.

O primeiro deles seria relativo ao valor da multa aplicada, o qual corresponderia a 8% do valor máximo atualizado pela Resolução n. 0114/2015, de R$ 5.000,00 para R$ 14.206,50. Alegou que os eventos que deram origem à multa teriam ocorrido em 2009, de modo que a consideração do novo valor como parâmetro para aplicação de multa ofenderia princípios do direito que estabelecem que “uma norma só pode retroagir para beneficiar e não para prejudicar” (fl. 4).

Ora, tal argumento não merece acolhimento, uma vez que o recorrente incidiu em manifesto equívoco no seu raciocínio.

Cabe esclarecer que a referida Resolução n. TC-0114/2015, em seu art. 1º, fixou o valor de R$ 14.206,50 como teto para aplicação de multas oriundas do art. 70 da Lei Complementar n. 202/2000, destacando que o novo quantum é “resultante da correção pelo índice de atualização dos créditos tributários estaduais, relativo ao período de 01.01.2001 a 31.03.2015”. Ou seja, tal valor, adotado como parâmetro, não se configura como determinação nova, mas tão somente como atualização de valor previamente estipulado. Nessa medida, não traz qualquer viés de retroatividade e violação a direito formal.

No mesmo sentido se manifestou a Área Técnica, explicando de maneira pormenorizada que (fls. 14v-15):

Em relação à alegação do Recorrente da retroatividade trazida pela Resolução nº 0114/2015, cabem alguns esclarecimentos sobre o tema.

O Tribunal de Contas quando do julgamento do processo TCE – 12/001260061, entendeu possível a aplicação das multas com fundamento na Resolução TC – nº 0114/2015, em todos os processos em andamento no Tribunal de Contas, não levando em consideração o fato da ocorrência da irregularidade ter sido praticada em data anterior ao advento da Resolução que atualizou o valor da multa.

A interpretação conferida pelo Colegiado deste Tribunal de Contas foi no sentido de que a motivação da alteração do valor das multas, consubstanciada na Resolução TC 0114/2015, decorre da incidência da correção monetária pelo índice oficial (“apenas atualização”), não se tratando, portanto, da criação de nova sanção pecuniária.

No caso, consoante firmado pelo Egrégio Plenário, deve-se interpretar a norma como de caráter processual e não como uma norma de caráter penal, podendo, pois, ser aplicada a todos os processos que ainda não tivessem sido julgados pelo Pleno, quando da sua publicação.

A partir de então pacificou-se, no âmbito deste Tribunal de Contas, o entendimento exarado no precedente representado pelo julgamento do processo TCE – 12/00126006.

Dessa forma, não merece guarida a interpretação do Recorrente a respeito da irretroatividade da Resolução TC – nº 0114/2015, devendo ser mantido o valor da multa aplicada. (grifei)

O segundo elemento aventado pelo recorrente se refere à suposta consolidação do princípio non bis in idem no que tange às multas aplicadas no mesmo exercício, fundamentando-se o recorrente em voto da lavra do Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, proferido no processo PCR n. 08/00460294 (fls. 4-7), no qual buscou ressaltar “a constância das ocorrências fáticas e, consequentemente, das sanções correspondentes aplicadas” escorando-se no argumento baseado na proporcionalidade das sanções aplicadas em razão de “fatos idênticos” aos mesmos responsáveis no curso do mesmo exercício.

Tal tese centrou-se na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal.

Além do voto em tela, o recorrente transcreveu (fls. 7v-8) excerto relativo à análise de Leonardo de Araújo Ferraz acerca da função das multas aplicadas pelos Tribunais de Contas, apontando, em seguida (fl. 8) que as sanções pecuniárias retiram seu fundamento de validade diretamente das Constituições Federal e Estadual, e reflexamente, dos arts. 67, 68 e 70 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

Trouxe, também, a título de considerações finais, discussão (fls. 8v-9) relativa ao incidente de uniformização de jurisprudência. Neste sentido, asseriu não restar dúvida de que, após ter sido informado da ocorrência de irregularidades nos processos, teria tomado as providências cabíveis para cada caso concreto. Afirmou que o incidente de uniformização de jurisprudência constitui uma garantia do jurisdicionado e não um juízo de conveniência dos tribunais, sendo a segurança jurídica, a igualdade e a economia processual, valores que “indicam a necessidade de se emprestar à jurisprudência um efeito mais vinculativo”.

Alegou que a decisão pelo afastamento de responsabilidade ou imputação de débito e aplicação de multa deveria manifestar a convicção da maioria dos Conselheiros, Auditores, Promotores e Técnicos, o que não estaria evidenciado nos presentes autos, levando o recorrente a lançar mão do princípio in dubio pro reo, pugnando pelo afastamento das sanções que lhe foram aplicadas e que lhe teriam causado “grande prejuízo pessoal, moral, financeiro e político”.

Inicialmente, não é despiciendo sublinhar que a referida tese da continuidade delitiva, defendida pelo nobre Conselheiro, vem sendo reiteradamente utilizada pelo recorrente a título argumentativo e, por consequência, este Órgão Ministerial vem sustentando sua improcedência em cada ocasião que se apresenta[1], buscando sua análise e retorno ao entendimento anteriormente acolhido pela Corte. Sendo assim, entende-se imprescindível a reiteração do posicionamento firmado também nestes presentes autos.

No que diz respeito ao relatório e voto proferidos pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior nos autos do processo PCR n. 08/00460294, o relatório técnico apontou (fl. 15) que o tema não se constitui fato novo na Diretoria de Recursos e Reexames, reiterando manifestação anterior no sentido de que, na ocasião do julgamento, tal voto divergente sequer foi colocado em votação, tendo prevalecido o voto apresentado pelo Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall. Contudo, tal posicionamento pela adoção da tese da continuidade das infrações administrativas teria sido posteriormente acatado, quando da deliberação referente ao processo REC n. 14/00274831 (fl. 15v).

Conforme já referido, a tese está fundada na necessidade de exame das “repetições de sanções pecuniárias” à vista do princípio do non bis in idem numa relação “interprocessos”, aventando a possibilidade de aplicação da lógica das penas aplicáveis em concurso de crimes na seara penal, notadamente com a adoção da regra que trata dos crimes continuados para as multas aplicadas ao requerente, que exerceu a gestão da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esportes de 01/07/2007 a 31/03/2010.

A consequência prática da adoção dessa tese seria o cancelamento de diversas multas já aplicadas em diversos processos cujas decisões acolheram a imputação de irregularidades ao responsável, para que se aplicasse somente uma multa passível de majoração/agravamento.

Trata-se de medida com a qual este Ministério Público não se coaduna, pois cinge-se a aplicar, indiscriminadamente, institutos do Direito Penal a circunstâncias fáticas albergadas pela sistemática do Direito Administrativo. Diversas são as razões que permitem discordar desse posicionamento.

Em primeiro lugar, entende-se que houve confusão acerca da finalidade da sanção com sua natureza e incidência. Explica-se: em que pese o fato de, ontologicamente, as sanções civis, penais e administrativas estarem voltadas a um mesmo fim precípuo, diversas são as suas naturezas e a maneira pela qual incidem.

Conforme ensina o Juiz Federal Heraldo Garcia Vitta[2], discorrendo acerca do tema:

A doutrina enfatiza, normalmente, a identidade ontológica dos ilícitos; com isso significando não haver distinção substancial entre os ilícitos penal e administrativo; mas se esquece da identidade ontológica das sanções.

Pode-se alegar que a sanção penal teria por escopo punir os infratores, e, assim, seria diferente da finalidade da sanção administrativa, pois esta visaria a desestimular os prováveis infratores.

Contudo, esse modo de pensar não tem consistência; toda sanção tem por finalidade desestimular as pessoas a cometerem ilícitos. A punição não é o fim da pena; é efeito, apenas, do ato impositivo desta, ao sujeito. Toda sanção acarreta a punição do infrator, mas o fim dela não é este, é o de evitar condutas contrárias ao Direito. Isso decorre do regime democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do respeito aos valores fundamentais da sociedade.

Embora não concordemos plenamente com os argumentos expendidos quanto à finalidade das penas, tal qual expõe Nelson Hungria, convém recordarmos suas palavras, com as quais esclarece a identidade ontológica delas: “Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito, à semelhança das penas criminais (...)”.

As sanções penais e administrativas são iguais, homogêneas, e eventuais divergências de gravidade não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais. Apesar disso, mencionam-se sanção penal e sanção administrativa, que são tipos ou espécies delas; o critério adotado para distingui-las, como visto, é o da autoridade competente para impô-las, segundo o ordenamento jurídico (critério formal). (grifei)

Note-se, portanto, que apesar de direcionadas a uma mesma finalidade última, as sanções penais e administrativas diferem essencialmente em função da autoridade competente para sua imposição e o ordenamento jurídico do qual extraem seu fundamento de validade.

Nesse sentido, imprescindível que se tenha em mente que o Tribunal se orienta pelas prescrições contidas na Lei Complementar Estadual n. 202/2000 (Lei Orgânica) e na Resolução n. TC-06/2001 (Regimento Interno) para examinar a ocorrência de irregularidades e aplicar as respectivas penalidades.

Atente-se, igualmente, para o fato de que o âmbito de trabalho é o administrativo. Por outro lado, o Código Penal traz em seu corpo regramento específico para aplicação de penas de acordo com as respectivas cominações legais, observando toda uma estrutura de regras a serem adotadas conforme cada tipo penal específico e segundo o sistema trifásico de estabelecimento da pena.

É exatamente neste contexto formal que se cinge a discussão: haveria possibilidade de aplicação de determinada regra específica do Código Penal para, lançando-se mão da analogia, orientar a aplicação de multas em face de irregularidade no âmbito dessa Corte de Contas? Poderia se cogitar da aplicação das especificidades do concurso de crimes (continuidade delitiva) e do princípio do non bis in idem?

Entende-se que não, pois a mera transposição de tais caracteres ínsitos à seara penal para o presente contexto fático administrativo significaria ruptura divorciada da realidade.

Não se está aqui a pregar um repúdio absoluto à tese da existência de zonas de contato entre as esferas administrativa e penal, mas sim a defender a impossibilidade de que ambas se imiscuam pelo mero alvedrio do intérprete, sem que haja substrato fático-normativo ou jurisprudencial hábil a permitir a ocorrência de tais pontos de contato.

Sobre tal entendimento, necessário que se observem os comentários traçados por Fábio Medina Osório[3], mesmo autor utilizado pelo nobre Conselheiro para construção de sua tese:

Também no Direito Administrativo Sancionatório pode ocorrer continuidade de infrações, uma continuação de fatos ilícitos que recomenda cautelas na imposição cumulativa de sanções. Aqui, na prática, há uma série de fatos autônomos. Todavia, por um princípio humanitário de política repressiva, não se tem descurado do tratamento mais benigno, ou pelo menos não tão severo, que têm merecido tais hipóteses de infrações. É certo que, no sistema pena, existe previsão expressa dessa espécie de tratamento mais favorável ao agente. É comum, até rotineiro, constatar a omissão das legislações de Direito Administrativo Sancionador, desde as que se aplicam diretamente no interior do sistema judicial, até as que alcançam as instâncias administrativas em sentido estrito nos entes federados.

É preocupante, certamente, o silêncio sistemático e nocivo do Direito Administrativo Sancionador pátrio, como regra geral, no trato dessa matéria, sendo forçoso constatar o silêncio de inúmeras ou da quase totalidade das legislações administrativas repressoras no campo federal, nos Estados e Municípios, embora não se possa generalizar a esse respeito, até mesmo por ausência de pesquisas de campo nesse sentido. Pela percepção empírica que se tem, calcada em amostragens significativas oriundas das chamadas instituições de controle, raramente se menciona algo positivo a respeito da continuidade de infrações, como se esta figura inexistisse no terreno disciplinar ou administrativo lato sensu. Uma falha legislativa alastrada em nosso ordenamento sancionador, sem dúvida. (grifei)

Como se vê, no excerto colacionado o autor destaca exatamente o caráter de excepcionalidade da questão da continuidade delitiva no âmbito administrativo, pontuando a omissão legislativa a respeito, reforçando a tese exposta até aqui. Não se desconhece que exista intenção sincera por parte daqueles que esposam a defesa do uso da analogia no caso, mas o fato é que esta não encontra ressonância legal e, quiçá, jurisprudencial.

Imperioso que se opere uma breve análise do instituto da continuidade delitiva.

O instituto do crime continuado está previsto no art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:

Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

De acordo com a posição do Promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches Cunha[4]:

Estampado no art. 71 do CP, verifica-se a continuidade delitiva (ou crime continuado) quando o sujeito, mediante pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie, guardando entre si um elo de continuidade (em especial, as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução).

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli denominam esta espécie de concurso de “concurso material atenuado” ou “falso crime continuado”, alegando que “onticamente, não é um verdadeiro crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos”. [...]

Nota-se, portanto, que o instituto está baseado em razões de política criminal. O juiz, ao invés de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados em continuidade, por ficção jurídica, para fins da pena, considera como se um só crime foi praticado pelo agente, devendo ter a sua reprimenda majorada. (grifei)

Por sua vez, o Procurador de Justiça e penalista Rogério Greco[5], ao comentar sobre as origens do instituto, traz a seguinte lição:

Afirma Bettiol que “a figura do crime continuado não é de data recente. As suas origens ‘políticas’ acham-se sem dúvida no favor rei que impeliu os juristas da Idade Média a considerar como furto único a pluralidade de furtos, para evitar as consequências draconianas que de modo diverso deveriam ter lugar: a pena de morte ao autor de três furtos, mesmo que de leve importância. Os nossos práticos insistiam particularmente na contextualidade cronológica da prática dos crimes, para considerá-los como crime único, se bem que houvesse também quem se preocupasse em encontrar a unidade do crime no uno impetu com o qual os crimes teriam sido realizados”. (grifei)

Nesse mesmo sentido, referenciando às origens históricas do crime continuado, o Magistrado e professor Guilherme de Souza Nucci[6] aduz:

(...) quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição de que os subsequentes são uma continuação do primeiro, formando o crime continuado. É a forma mais polêmica de concursos de crimes, proporcionando inúmeras divergências, desde a natureza jurídica até a conceituação de cada um dos requisitos que o compõem. Narram os penalistas que o crime continuado teve sua origem entre os anos de 1500 e 1600, em teoria elaborada pelos práticos italianos, dos quais ressaltam-se os trabalhos de Prospero Farinacio e Julio Claro. Naquela época, a lei era por demais severa, impondo a aplicação da pena de morte quando houvesse a prática do terceiro furto pelo agente (Potest pro tribos furtis quamvis minimis poena imponi). O tratamento era, sem dúvida, cruel, mormente numa época de tanta fome e desolação na Europa. Por isso, escreveu Claro: “Diz-se que o furto é único, ainda que se cometam vários em um dia ou em uma noite, em uma casa ou em várias. Do mesmo modo se o ladrão confessou ter cometido vários furtos no mesmo lugar e em momentos distintos, interpretando-se tal confissão favoravelmente ao agente, isto é, que suas ações, em momentos distintos, continuadamente, são um só furto e não vários...” (Carlos Fontán Balestra, Tratado de derecho penal, t. III, p. 60). E, ainda, Farinacio: “Tampouco existem vários furtos senão um só, quando alguém roubar de um só lugar e em momentos diversos, mas continuada e sucessivamente, uma ou mais coisas: ... não se pode dizer ‘várias vezes’ se os roubos não se derem em espécie e tempo distintos. O mesmo se pode dizer daquele que, em uma só noite e continuadamente, comete diversos roubos, em lugares distintos, ainda que de diversos objetos... a esse ladrão não se lhe pode enforcar, como se lhe enforcaria se tivesse cometido três furtos em momentos distintos e não continuados” (Balestra, ob. Cit., p. 61). (grifei)

Dos excertos colacionados extrai-se que o instituto tem suas raízes num contexto histórico em que sua gênese e aplicação se fizeram necessárias no intuito de temperamento das penas aplicadas, eis que se corria o risco de penalização excessiva e alheia a quaisquer critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Era necessário proteger-se o acusado em face da sociedade e do ordenamento.

Hodiernamente, configura-se como elemento de política criminal, cuja natureza de ficção jurídica[7] orienta-se no sentido de beneficiar o agente para que não seja sobremaneira penalizado pelos diversos núcleos do tipo por ele praticados, considerando-os como interligados por um mesmo fio condutor que costura elementos como os crimes propriamente ditos, as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

Tratamento divergente merece o presente caso dos autos, uma vez que de natureza diversa daquela que serve de substrato à seara penal. Isso porque aqui, as condutas do requerente ensejam a reprovabilidade ínsita aos crimes que ferem o erário e, por tabela, a sociedade.

No caso da maioria dos tipos penais previstos no Código Penal, os objetos materiais e jurídicos constituem uma miríade de atingidos, ao passo que naquelas irregularidades abrangidas pela competência das Cortes de Contas, tais objetos são coincidentes, resumindo-se na figura do erário.

Assim, entende-se impossível a aplicação analógica do instituto do crime continuado, sobretudo em função de seu objetivo primordial, pois que não se observa imperiosa a preservação ou garantia de que o requerente não será excessivamente penalizado.

Ora, se do cotejamento dos objetos jurídicos e materiais atingidos fosse aplicável algum brocardo latino notoriamente penalístico, seria certamente o pro societate e não o pro reo, eis que as irregularidades cabalmente demonstradas repercutem direta e indiretamente nos interesses da sociedade, muito mais do que as multas afetam qualquer subjetividade do requerente enquanto responsável apenado.

Ademais, não bastassem os argumentos de cunho interpretativo, normativo e histórico-filosófico até aqui perfilados, há que se destacar também o fato de que os requisitos do crime continuado não poderiam ser observados e respeitados caso houvesse a adoção do instituto no presente caso. De acordo com a doutrina[8], o crime continuado apresenta os seguintes requisitos:

(A)   Pluralidade de condutas: mais de uma ação ou omissão que implique em vários crimes;

(B)    Pluralidade de crimes da mesma espécie: aproxima-se do concurso material ao exigir condutas provocando vários crimes. Diferencia-se, no entanto, ao restringir sua aplicação a crimes da mesma espécie.

(C)   Elo de continuidade: é também requisito do crime continuado o elo de continuidade entre as condutas. Esse elo se revela através:

(C.1) Das mesmas condições de tempo: a lei não anuncia qual o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito da cadeia, alertando a jurisprudência que não pode suplantar 30 (trinta) dias.

(C.2) Das mesmas condições de lugar: para a jurisprudência, haverá as mesmas condições de lugar quando os crimes são praticados na mesma comarca (ou em comarcas vizinhas).

(C.3) Da mesma maneira de execução (modus operandi): como bem alerta Bitencourt, a lei exige semelhança e não identidade. A semelhança na maneira de execução se traduz no modus operandi de realizar a conduta delitiva maneira de execução é o modo, a forma, o estilo de praticar o crime, que, na verdade, é apenas mais um dos requisitos objetivos da continuação criminosa.

(C.4) Outras circunstâncias semelhantes: abrangendo quaisquer outras circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade. (grifado no original)

Nesse sentido, destaque-se que o item C.1 do trecho acima aponta que o hiato temporal máximo que deve existir entre o primeiro e o último delito na cadeia fática é de 30 dias.

Ora, levando-se em consideração que o requerente vem sendo recorrentemente penalizado em função de irregularidades constatadas durante todo o tempo em que ocupou a Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esportes de Santa Catarina (período que vai de 01/07/2007 a 31/03/2010), conclui-se que o requisito temporal restaria desatendido, caso fosse aplicada a continuidade delitiva, descaracterizando-a, portanto. Note-se que quaisquer pontos de referência dentro do período referido extrapolariam os 30 dias adotados pacificamente pela jurisprudência[9].

Há, ainda, outro requisito apontado por boa parte da doutrina e da jurisprudência para o reconhecimento da configuração da continuidade delitiva: que a atuação do agente se dê mediante unidade de desígnios, isto é, mediante um só plano delituoso. Esse requisito traduz a adoção da teoria objetivo-subjetiva, assim explicada por Rogério Greco[10]:

A última teoria, que possui natureza híbrida, exige tanto as condições objetivas como o indispensável dado subjetivo, ou seja, deverão ser consideradas não só as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, como também a unidade de desígnio ou relação de contexto entre as ações criminosas.

Acreditamos que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz. (grifei)

Trata-se de teoria adotada pela jurisprudência tanto do STF[11] quando do STJ[12].

Mais uma vez, tem-se retratada a impossibilidade de aplicação analógica da continuidade ao presente caso, uma vez que despiciendo o exame da unidade de desígnios nas condutas por parte do requerente, uma vez que, se o liame subjetivo por muitas das vezes é de difícil comprovação caso a caso, justamente ensejando a aplicabilidade das teorias da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, que dirá numa cadeia sucessiva de atos.

Não obstante, cada conduta é una e destacada (possibilitando, eventualmente, a aplicação analógica do concurso material de crimes, consoante o posicionamento reiterado do Tribunal), ensejando seus respectivos exame e processo, inclusive representando afastamento da alegação de bis in idem, a ser oportunamente analisado.

Quanto ao argumento apresentado no excerto colacionado pela Área Técnica, no sentido de que o art. 72 do Código penal trataria as penas de multa diferentemente das restritivas de liberdade em delito continuado ou em concurso material (fl. 18), fundamentando assim parte de sua discordância com a aplicabilidade da continuidade delitiva, discorda-se parcialmente.

Em princípio, compartilha-se a tese central da inaplicabilidade da continuidade delitiva; contudo, cabe ressaltar meramente a título informativo que, em que pese a previsão do art. 72 do Código Penal, doutrina e jurisprudência vislumbram tratamento específico das penalidades de multa no âmbito da continuidade delitiva. Veja-se[13]:

O art. 72 do CP avisa: “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente”.

Nota-se que a pena de multa não obedece às regras diferenciadas do tratamento dispensado ao concurso de crimes. Para a fixação da multa, portanto, só se aplica uma regra: aplicação distinta e integral.

Não se descarta doutrina lecionando que essa regra não serve para o crime continuado. Para fins de aplicação de pena, no direito brasileiro, o crime continuado, por ficção jurídica, é considerado crime único. Logo, aplica-se a pena de multa uma única vez.

Nesse sentido vem decidindo o STJ: “’A pena de multa, aplicada no crime continuado, escapa à norma contida no art. 72 do Código Penal’ (Resp nº 68.186/DF, Relator Ministro Assis Toledo, in DJ 18/12/1995). As penas de multa, no caso de concurso de crimes, material e formal, aplicam-se cumulativamente, diversamente do que ocorre com o crime continuado, induvidoso concurso material de crimes gravados pela menor culpabilidade do agente, mas que é tratado como crime único pela lei penal vigente, como resulta da simples letra dos artigos 71 e 72 do Código Penal, à luz dos artigos 69 e 70 do mesmo diploma legal”.

Apesar dessa previsão, entende-se inócuo seu conteúdo ao presente exame, eis que já fartamente comprovada a impossibilidade da incidência da tese da continuidade delitiva sobre o objeto destes autos.

Ressalte-se que o argumento da Área Técnica seria plenamente cabível aqui levando-se em conta, num exercício hipotético, se no presente caso se admitisse o concurso material de crimes (o único que se afigura admissível, diga-se de passagem), uma vez que aí sim aplicável o previsto no art. 72 do Código Penal, incidindo as penas de multa distinta e integralmente, cumulando-se.

No que diz respeito ao argumento de que a aplicação de penalidades de multa em função de irregularidades apontadas nos processos envolvendo o requerente implicaria em violação ao princípio do non bis in idem, entende-se igualmente não assistir razão ao requerente e ao ilustre Conselheiro.

Acerca desse princípio, Rogério Sanches Cunha[14] ensina o seguinte:

Este princípio não está previsto expressamente na Constituição, mas sim no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional:

“Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição em contrário do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por actos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2 – Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

Entende-se, majoritariamente, que o princípio em estudo não é absoluto. O próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, prevê a possibilidade de julgamento por mesmo fato nos casos dos crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desde que o primeiro tribunal a realizar o julgamento tenha tentado subtrair a competência do Tribunal Internacional ou não tenha havido a imparcialidade necessária à ação da justiça. Entre nós, a exceção ao princípio do non bis in idem se encontra no artigo 8º, que autoriza novo julgamento e condenação pelo mesmo fato, nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira (vide item “eficácia da lei penal no espaço”).

O princípio do non bis in idem tem três significados:

(A)   Processual: ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo crime;

(B)    Material: ninguém pode ser condenado pela segunda vez em razão do mesmo fato;

(C)   Execucional: ninguém pode ser executado duas vezes por condenações relacionadas ao mesmo fato. (grifado no original)

De outra volta, pela explicação de Fábio Osório Medina[15],

Intimamente ligado aos princípios da legalidade e da tipicidade, o princípio da proibição do bis in idem, cujas raízes remontam ao devido processo legal anglo-saxônico, também atua em matéria de Direito Administrativo Sancionador, possuindo um largo alcance teórico e restritos alcance e significados práticos. Tal princípio, em nosso sistema, está constitucionalmente conectado às garantias de legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, devido processo legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88. Suas consequências e desdobramentos, no entanto, são bastante tímidos na jurisprudência e na doutrina brasileiras, deixando lacunas consideráveis ao crivo dos juristas. Trata-se de um tema que frequente, curiosamente, mais o imaginário do inconsciente do que a ostensividade da consciência jurídica nacional. Sabe-se que se trata de um princípio ligado à justiça e a outros valores não menos nobres, mas a construção de seus significados e significantes passa por uma compreensão acerca das estruturas de gestão das normas sancionadoras.  A teoria não pode dissociar-se da realidade, e assim ocorre com a jurisprudência. Por isso, um novo patamar de compreensão para o non bis in idem pressupõe, de um lado, a descrição e o diagnóstico do panorama vigente e, de outro, a proposição de novas alternativas hermenêuticas, ainda que desde um ponto de vista geral.

Insistimos, de qualquer sorte, no seguinte ponto: pensar o non bis in idem é, acima de tudo, refletir sobre as delicadas relações entre as esferas penal e administrativa, problema que não é novidade no Brasil ou no exterior. [...]

A ideia básica do non bis in idem é que ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato, eis uma concepção praticamente universal, que desde as origens algo-saxônicas encontra-se presente nos ordenamentos democráticos (v.g. art. 8º, n. 4, do Pacto de San José da Costa Rica) (grifei)

À vista dos ensinamentos colacionados, torna-se óbvia a inocorrência de violação ao referido princípio, uma vez que o requerente vem sendo sucessivamente considerado responsável por irregularidades passíveis de penalidade de multa em processos distintos oriundos de condutas distintas, nos quais foram amplamente respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Note-se que, tangencialmente aos três significados do princípio apontados acima, o presente caso não se enquadra em nenhum. Isso porque, processualmente, o requerente foi processado duas ou mais vezes por condutas diversas; materialmente, vem sendo condenado em função de fatos distintos; e no plano execucional, poderia ser executado em virtude de condenações relacionadas a fatos múltiplos.

Neste mesmo sentido se posicionou a Área Técnica por meio do excerto trazido à lume, no qual constam os seguintes argumentos (fls. 16v-17):

A ofensa ao princípio do “non bis in idem”, como se sabe, caracteriza-se pela duplicidade de penalização aplicada ao indivíduo, em razão dos mesmos fatos, o que não se verifica nas situações objeto de julgamento pelo Tribunal de Contas em relação às prestações de contas referentes aos fundos do SEITEC. [...]

Embora os atos praticados irregularmente pelo Gestor sejam da mesma ordem, tais ações são praticadas em fatos administrativos distintos. [...]

Deste modo, o ato administrativo típico é sempre manifestação volitiva da Administração, no desempenho de suas funções de Poder Público, visando a produzir algum efeito jurídico, o que o distingue do fato administrativo, que, em si, é atividade pública material, desprovida de conteúdo de direito.

Como fato administrativo devemos entender toda realização material da Administração em cumprimento de alguma decisão administrativa, tal como a concessão de recursos do Fundo do SEITEC, que se constitui, como materialização da vontade administrativa, e só reflexamente interessa ao Direito, em razão das consequências jurídicas que dele possam advir para a Administração e para os administrados.

Portanto, não há que se falar em ofensa ao princípio do “non bis in idem”, em razão de o Tribunal de Contas julgar e penalizar os atos jurídicos praticados pelo Gestor dos Fundos do SEITEC, em processos que tem como objeto fatos administrativos distintos, muito embora, a irregularidade dos atos que dão origem as penalizações sejam da mesma natureza e tenham a mesma identidade.

Ademais, esclareça-se que o Doutrinador Fábio Medina Osório, na sua obra, empregada pelo Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior para sustentar a tese ora rebatida, menciona a questão do princípio do “non bis in idem” interprocessos não exatamente na mesma instância de julgamento, mas nas situações de independência das instâncias de julgamento (Penal, Civil e Administrativo), a qual se submete o ato administrativo.

Considerando os argumentos postos, bem como os excertos doutrinários e jurisprudenciais que lhes serviram de suporte técnico-jurídico, entende-se pela manutenção da linha de posicionamento que vinha sendo adotada majoritariamente pelo Tribunal de Contas, em prejuízo da tese aventada pelo nobre Conselheiro.

Por fim, relativamente ao terceiro ponto apresentado pelo requerente, referente à não uniformização de jurisprudência e dos valores das multas aplicadas em processos com as mesmas características, também não lhe assiste a razão.

Conforme já exaustivamente delineado ao longo deste parecer, o requerente vem sendo sucessivamente responsabilizado por irregularidades em processos específicos, que abrangem cada conduta de acordo com suas respectivas peculiaridades, ponderadas de acordo com os critérios de convicção de cada Relator e do Plenário, dentro dos limites legais insculpidos no art. 70, inciso II, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000.

A posição aqui adotada coaduna-se com aquela já reiteradamente externalizada pela Área Técnica (fls. 18v-19):

No que se refere ao pedido de uniformização de jurisprudência, não procede o recurso proposto. Cada processo possui suas peculiaridades e sua decisão depende das especificidades do caso concreto, com agravantes e atenuantes que justificam a adoção de valores distintos.

Assim, apesar de o Tribunal Pleno ter deixado de aplicar a multa em situações semelhantes, tal fato não tem o condão de sanar as irregularidades apontadas no Acórdão recorrido, pois este Tribunal tem a competência para rever os seus entendimentos.

Dessa forma, considerando que os argumentos apresentados pelo Recorrente, em suas razões de recurso, não são suficientes para alterar a Decisão recorrida, manifesta-se pela manutenção do decisum, na sua íntegra.

Desse modo, por tudo quanto referido e examinado no corpo deste Parecer, bem como em função da ausência de argumentos referentes às irregularidades em si, além da inexistência manifesta de superveniência de documentos ou argumentos com eficácia probatória, entende-se não lograr êxito o recorrente em seu intuito desconstitutivo do Acórdão n. 0268/2016.

4.    Conclusão

Ante o exposto, o Ministério Público de Contas, com amparo na competência conferida pelo art. 108, inciso II, da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, manifesta-se pelo CONHECIMENTO do recurso de Reconsideração interposto para, no mérito, NEGAR-LHE PROVIMENTO, ratificando-se, na íntegra, a Deliberação recorrida.

Florianópolis, 15 de dezembro de 2016.

 

 

Cibelly Farias Caleffi

Procuradora

 



[1] Processos REV n. 15/00535416, REV n. 15/00567881, REV n. 15/00586754, REC n. 15/00617307, REC n. 15/00588889 e REC n. 16/00022496.

[2] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66-68.

[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 347.

[4] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 458-459.

[5] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015, p. 227.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 400.

[7] STJ, HC 262842/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 16/05/2014. STJ, REsp 1196299/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, 5ª T., DJe 8/05/2013. STJ, HC 141239/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T, DJe 15/03/2010.

[8] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 459-461.

[9] STF, HC 73219/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 26/04/1996. STF, HC 69896, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02/04/1993.

[10] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 9ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2015. p. 230-231.

[11] STF, RHC 85577/RJ, 2ª Turma.

[12] STJ, HC 206784/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 29/06/2012. STJ, RHC 22800/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª T., DJe 02/08/2010. STJ, HC 128756/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 29/03/2010.

[13] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 463-464.

[14] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 2ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, p. 98-99.

[15] OSÓRIO, Fábio Medina. Direto administrativo sancionador. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 281-283.