T

ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO

PROCESSO:             REC 08/00449304

UG/CLIENTE:           Prefeitura Municipal de Bom Retiro

RECORRENTE:       Jair José Farias – ex-Prefeito Municipal

ASSUNTO:                Recurso contra o acórdão proferido nos autos nº REP 02/07504393

 

RECURSO RECONSIDERAÇÃO. CONHECER SOB A FORMA DE REEXAME (PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE). PROVER EM PARTE.

 

Princípio da fungibilidade. Recursos.

É possível o conhecimento do recurso de reconsideração como recurso de reexame, em face do princípio da fungibilidade.

Dispensa de licitação. Fracionamento.

A realização de dispensa de licitação através do fracionamento indevido da despesa é irregular.

Urgência. Despesa.

Em regra, não se reveste de urgência a realização de despesa com evento integrado ao calendário turístico do município.

Multa.

A aplicação de multa deve observar a adequada capitulação legal, além de preservar o princípio que veda o bis in idem.

 

 

I - RELATÓRIO

Trata-se de Recurso de Reconsideração interposto pelo Sr. Jair José Farias, ex-Prefeito Municipal de Bom Retiro, contra o Acórdão nº 851/2008, proferido pelo Tribunal Pleno desta Corte de Contas, nos autos do processo nº REP 02/07504393, em sessão do dia 02/06/2008.

Os autos foram remetidos à Consultoria Geral - COG que se pronunciou através do Parecer nº COG-42/2010 (fls. 88-101), no sentido de conhecer o recurso para, no mérito, negar-lhe provimento.

O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas se manifestou no Parecer nº MPTC/114/2011 (fl. 102-105), acompanhando o entendimento da COG.

Os autos vieram conclusos.

 

II - DISCUSSÃO

A COG examinou os requisitos de admissibilidade e, adotando o princípio da fungibilidade, sugeriu o conhecimento do recurso.

Com efeito, o Acórdão recorrido foi prolatado em processo de fiscalização de contratos e atos análogos, por isso, o Recurso de Reexame mostrar-se-ia como instrumento idôneo para atacá-lo, nos termos do artigo 79 da Lei Complementar (LC) 202/2000 e artigo 138 do Regimento Interno (R.I.) do TC/SC.

No caso, verifica-se que o Recorrente interpôs Recurso de Reconsideração, fundamentando seu pedido no art. 77 da LC 202/2000. Entretanto, apesar da inadequação da espécie recursal, deve ser acolhida a sugestão da COG para aplicar à espécie o princípio da fungibilidade, haja vista a ausência de erro grosseiro, má-fé e intempestividade.[1]

Realmente, não houve erro grosseiro, pois, de acordo com os arts. 77 e 80 da LC nº 202/2000, tanto o Recurso de Reconsideração quanto o Recurso de Reexame possuem efeito suspensivo e devolvem à Corte a análise das questões decididas em decisão definitiva pelo Tribunal Pleno.

Quanto à má-fé, não se constata nos autos do processo qualquer indício de que a interposição equivocada decorra de ardil do Recorrente para embaraçar o exercício das atribuições desta Corte de Contas, tampouco da intenção de protelar o curso do processo.

No que tange à tempestividade, constata-se que ambos os recursos concedem ao Responsável o prazo de 30 dias para interposição, consoante o disposto nos arts. 77 e 80 da LC nº 202/2000. Sob tal aspecto, o Parecer nº COG-42/2010 observou a tempestividade do recurso, asseverando, ainda, a presença dos demais requisitos de admissibilidade.

Dessa maneira, o vício formal constatado não impede o conhecimento do recurso.

Passo ao exame das questões devolvidas à Corte.

 

II.I Item 6.2.1 do Acórdão nº 851/2008. Multa de R$ 800,00.

O item 6.2.1 aplicou multa ao Recorrente em razão “da realização de despesas com aquisição de madeira para o parque de exposições municipal para a ocorrência da 8ª Festa Estadual do Churrasco, no valor apurado de R$ 26.305,02, sem processo licitatório, indicando burla aos arts. 37, XXI, da Constituição Federal e 2º da Lei (federal) 8.666/93”.

Em sua defesa, o Recorrente aduz que “a necessidade de trocas de peças somente pode ser constatada conforme se executava o serviço”. “Por esta razão, era impossível dimensionar a quantidade de madeira a ser utilizada, o que impossibilitou sua compra em uma única ocasião.” Destacou ainda que as contratações com as empresas, individualmente, não ultrapassaram o limite de R$ 8.000, que “todas as madeiras foram adquiridas com preço de mercado” e que as “compras foram realizadas em caráter de urgência, face a iminência da Festa” (fl. 03).

Após examinar as razões recursais, a COG sugeriu a manutenção da multa aplicada, destacando que a 8ª Festa Estadual do Churrasco ocorreu entre 30/03/2001 e 1º/04/2001, porém, a aquisição da madeira se deu entre os dias 21/02/2001 e 12/06/2001. A COG também observou que o valor total despendido foi de R$ 26.305,02, superando o limite para a dispensa licitatória previsto art. 24, I c/c art. 23, I, “a”, da Lei n. 8.666/93 (fl. 94).

Tem razão o órgão consultivo desta Corte.

As datas das compras dos materiais demonstram que a reforma no parque de exposições tinha como objetivo não apenas a 8ª Festa Estadual do Churrasco, mas, como já havia destacado a Equipe de Auditoria,[2] tratava-se de um processo maior de melhoria do parque.

Também observo que, muito embora as compras individuais tenham sido inferiores a R$ 8.000, cuida-se de parcelas de uma mesma obra, incidindo na vedação prevista na parte final do art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93.

Art. 24.  É dispensável a licitação: 

 

I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente;

 

II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;

 

Ante o exposto, resta caracterizada a ocorrência de fracionamento indevido, devendo-se manter a multa aplicada.

 

II.II Item 6.2.2 do Acórdão nº 851/2008. Multa de R$ 800,00.

O Recorrente contesta a multa aplicada no item 6.2.2, em razão da aquisição de carne para a 8ª Festa Estadual do Churrasco, sem processo licitatório, alegando que a compra ocorreu com base no art. 24, XII, da Lei n. 8.666/93, pois, quando a Comissão Organizadora verificou que as empresas locais não tinham o certificado de inspeção estadual, fez-se necessária a compra emergencial do produto, haja vista a exigüidade de tempo restante até a data marcada para realização do evento. Destaca, ainda, que a carne foi adquirida a preço de mercado (fls. 03/04).

A emergência apresentada pelo Recorrente encontra obstáculo na própria natureza do evento, visto que a Festa Estadual do Churrasco faz parte do calendário turístico do município e, no caso, já estava em sua 8ª edição.[3]

Quanto à aplicabilidade do art. 24, XII, da Lei n. 8.666/93, acompanho o entendimento do Relator do Acórdão recorrido, Auditor Substituto de Conselheiro Gerson dos Santos Sicca, que, em seu voto, consignou:

 

O art. 24, XII, da Lei de Licitações não representa uma regra de autorização absoluta de dispensa quando se trate de compra de gêneros perecíveis. A dispensa somente é admissível na hipótese em que haja necessidade premente e imprevisível de aquisição de gêneros perecíveis e apenas pelo tempo necessário para a conclusão da licitação. Quando seja possível prever a necessidade, como na questão em análise, é imperiosa a abertura do certame competitivo.[4]

 

Portanto, não se reveste de urgência a despesa ora examinada.

 

II.III Item 6.2.3 do Acórdão nº 851/2008. Multa de R$ 500,00.

A multa aplicada no item 6.2.3 tem por fundamento a descumprimento das normas e procedimentos de contabilidade pública previstos na Lei n. 4.320/64, especialmente em seu art. 55, §§ 1º e 2º, ante a falta de comprovação de que foram fornecidos recibos das importâncias arrecadadas e atendidos os requisitos previstos no preceito legal citado.

Em sua petição, o Recorrente traz o mesmo argumento apresentado no curso da instrução, segundo o qual “todos os recibos foram emitidos em nome de quem os pagou, conforme preceituam os parágrafos 1º e 2º do art. 55 da Lei 4320/97” (fl. 05).

A COG examinou a razões do recurso e, com fundamento nas observações contidas no Relatório Técnico e no voto do Relator, opinou pela manutenção da multa aplicada.

A alegação do Recorrente denota razoabilidade diante da capitulação legal da multa sancionada. Veja-se que a restrição está fundamentada no art. 55, parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 4.320/64, que dispõe:

 

Art. 55. Os agentes da arrecadação devem fornecer recibos das importâncias que arrecadarem.

§ 1º Os recibos devem conter o nome da pessoa que paga a soma arrecadada, proveniência e classificação, bem como a data a assinatura do agente arrecadador.

§ 2º Os recibos serão fornecidos em uma única via.

 

Porém, observo que o fato constatado pela Equipe Técnica não se subsume à previsão legal, consoante se infere da descrição contida no Relatório n. 072/2005, da extinta Diretoria de Denúncias e Representações:

 

Conforme informações da Prefeitura, cheques nos valores de R$ 350,00 e R$ 100,00 foram devolvidos pelo banco por terem sido roubados. Não existem maiores detalhes a respeito, sequer as cópias dos cheques para identificação do ou dos emitentes, contra qual ou quais bancos foram emitidos, bem como dos números dos cheques e das contas correntes e praças das agências bancárias.

Neste caso, não observou a Prefeitura os procedimentos administrativos cabíveis para o caso, ou seja, após a notificação da ou das agências bancárias informando das situações dos referidos "cheques" que constavam como roubados, registrar normalmente boletim de Ocorrência na esfera da Polícia Civil local, pois a situação relatada pela Prefeitura não está baseada em documentação comprobatória para os fatos.

Verifica-se, desta forma, que ao formalizar o recebimento da receita, não houve a extração de respectivo talão para a devida comprovação e contabilização desta e talvez outras receitas, as quais deveriam identificar o contribuinte, a forma de pagamento e, especialmente quando se recebe via "cheque de terceiros" ( que já não é procedimento regular), é norma que nesta transação se obtenha informações: tais como endereço, telefone e um documento de identidade do contribuinte, formalidade esta, que provavelmente não causaria prejuízo ao erário. Descumpriu-se, assim as etapas formais não atendendo ao estabelecido no artigo 55, § 1º e § 2º da Lei Federal nº 4320 de 31 de março de 1964. (grifo nosso)[5]

 

A partir dos fatos narrados pelo Relatório Técnico, poder-se-ia concluir pela ocorrência de uma falta de controle dos valores recebidos ao longo do evento, afetando a idoneidade dos registros da movimentação financeira, receitas e despesas. Nessa hipótese, todavia, estaríamos diante da restrição apontada no item 6.2.4, impossibilitando uma segunda punição pelo mesmo fato, sob pena de caracterizar bis in idem.

Dessarte, não vislumbro no caso a subsunção do fato ao art. 55, parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 4.320/6. Ademais, considerando que a falta de controle da movimentação financeira foi sancionada no item 6.2.4 do Acórdão recorrido, acolho as razões de defesa para cancelar a multa ora examinada.

 

II.IV Item 6.3 do Acórdão nº 851/2008. Determinação.

Por fim, o Recorrente contesta o item 6.3 que determinou à Prefeitura Municipal que, na movimentação financeira dos seus recursos, observe rigorosamente o disposto nos arts. 164, § 3º, da Constituição Federal e 65 da Lei n. 4.320/64.

Em suas razões, alega que a movimentação financeira fora da via bancária ocorreu porque a festa aconteceu no fim de senama. Também colacionou as razões do próprio Relator do processo, que, em seu voto, divergiu da aplicação de multa sugerida pela Equipe Técnica para impor determinação à Unidade Gestora (fls. 05/06).

A COG analisou os argumentos do Recorrente confrontando-os com a multa aplicada no item 6.2.4, para concluir que as razões apresentadas não têm relação com a restrição.

Com efeito, o item 6.2.4 condenou o Recorrente ao pagamento de multa em face da ausência de comprovação dos registros da movimentação financeira, receitas e despesas, durante os dias da 8ª Festa Estadual do Churrasco, na forma prevista pelos arts. 83 e 85 a 89 da Lei n. 4.320/64.

Ocorre que, na verdade, o recurso não atacou o item 6.2.4, mas, tão somente, o item 6.3. Essa é a conclusão que se chega comparando os fundamentos utilizados pelo Recorrente com as razões de decidir consubstanciadas no item 6 do voto do Relator (fls. 549-551 dos autos do processo principal).

Em que pese a manifestação da COG, referendada pelo Ministério Público Especial, o ingresso no mérito da causa não conduz à modificação da determinação recorrida.

Compulsando os autos do processo principal, verifico nas fls. 550-551 as ponderações do Relator acerca da conversão da aplicação de multa em determinação, as quais trago à colação como razões deste voto:

 

Como a restrição não foi apontada em audiência sob o enfoque do preceito citado, isso porque a análise da auditoria seguiu outro viés, entendo que não cabe a aplicação de multa. Ainda que se possa concluir que a movimentação financeira deveria ter sido feita com a intermediação bancária, principalmente com a realização dos pagamentos por cheque e depósito das receitas arrecadadas no final de semana em banco oficial no primeiro dia útil após a festa, não se pode vislumbrar no caso grave afronta ao art. 164, §3º, da CF, especialmente porque a Festa ocorreu em fim de semana e o problema ocorreu somente no evento, que, inclusive, foi deficitário.

Afastada, dessa maneira, a restrição, sem prejuízo, no entanto, de efetuar-se determinação à Unidade Gestora para que cumpra integralmente o disposto nos arts. 164, 3, da Constituição Federal e art. 65 da Lei n. 4.320/64.

 

Dessa forma, mantenho a determinação fixada no item 6.3.

Por fim, observo que o Recorrente não impugnou o item 6.2.4, devendo-se mantê-la por seus legítimos termos.

 

III – VOTO

Ante o exposto, considerando as razões expendidas, o Parecer nº COG-42/2010 e o Parecer nº MPTC/114/2011, propondo ao Egrégio Plenário a adoção do seguinte voto:

1. Conhecer do Recurso sob a forma de Recurso de Reexame, nos termos do art. 79 e 80 da Lei Complementar nº 202/2000, interposto contra o Acórdão nº 851/2008, proferido nos autos do processo REP 02/07504393, na sessão de 02/06/2008, e, no mérito, dar-lhe provimento parcial para cancelar a multa aplicada no item 6.2.3, mantendo-se os demais termos da decisão combatida.

2. Dar ciência desta Decisão, bem como do Parecer e Voto que a fundamentam ao Recorrente e à Prefeitura Municipal de Bom Retiro.

 

Gabinete, em 29 de abril de 2011.

 

 

Cleber Muniz Gavi

Auditor Substituto de Conselheiro

Relator



[1]PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO AO INVÉS DE APELAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE MÁ-FÉ E ERRO GROSSEIRO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. APLICABILIDADE. 1. É possível sanar o equívoco na interposição do recurso pela aplicação do princípio da fungibilidade recursal, se inocorrente erro grosseiro e inexistente má-fé por parte do recorrente, além de comprovada a sua tempestividade. 2... Fonte: BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 898115/PE. Rel. Min. Teori Albino Zavascki.  Data da Decisão: 03/05/2007. Consulta no sítio: www.stj.gov.br, em 26/04/2011.

[2] Fl. 485.

[3] www.bomretiro.sc.gov.br

[4] Fl. 548 dos autos do processo principal.

[5] Fls. 447/448.