ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO

 

 

PROCESSO:                        DEN 08/00316924

UG/CLIENTE:                       Prefeitura Municipal de Canoinhas

RESPONSÁVEIS:     Leoberto Weinert – Prefeito Municipal

DENUNCIANTE:       Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina

ASSUNTO:                Contratação de médicos para atendimento na rede pública.

 

 

DENÚNCIA. PROCEDENTE. MULTA. RECOMENDAÇÃO.

Sistema Único de Saúde. Complementação.

A complementação do Sistema Único de Saúde por entidades privadas é legítima, desde que demonstrada a incapacidade da rede pública para atender a demanda.

 

I – RELATÓRIO

Trata-se de Denúncia formulada pelo Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina, a respeito da ocorrência de irregularidades na contratação de médicos para prestação de serviço no Pronto Atendimento Municipal de Canoinhas.

A Diretoria de Controle de Licitações e Contratações – DLC examinou a inicial e concluiu pelo não conhecimento da Denúncia, haja vista a ausência de indício de prova das irregularidades apontadas (fls. 3a-3c). Todavia, Ministério Público junto ao Tribunal de Contas divergiu do Corpo Técnico, constatando em pesquisa na web a verossimilhança das alegações (fls. 16-20).

Os autos vieram conclusos e, acompanhando o entendimento do Parquet, conheci da presente Denúncia para determinar à Equipe Técnica a apuração dos fatos (fls. 21/22).

O feito retornou para DLC, que sugeriu a audiência do Responsável acerca da irregularidade na contratação de empresa para prestação de serviços médicos em regime de plantão, caracterizando burla ao concurso público, bem como a ausência de documentos relativos ao Pregão Presencial n. 01/2007 e à Inexigibilidade de Licitação n. 01/2007 (Relatório n. 198/2009, fls. 46-53).

As razões de defesa foram apresentadas nas fls. 63-470, sobrevindo o exame das justificativas pela DLC, que concluiu pelo saneamento das irregularidades apontadas sugerindo, apenas, recomendações à Unidade (Relatório n. 005/2010, fls. 473-487).

O Ministério Público Especial se manifestou no Parecer nº MPTC/4258/2011, divergindo novamente da análise procedida pela Equipe Técnica para considerar as contratações irregulares, aplicando-se multa ao Gestor e determinando à Unidade a criação dos cargos necessários ao atendimento médico da população (fls. 488-498).

Vieram os autos conclusos.

É o relatório.

 

II – DISCUSSÃO

A partir das irregularidades apontadas pela Equipe Técnica, o Responsável suscitou o não-conhecimento da denúncia em razão da ausência de indício de prova exigido pelo § 1º do art. 65 da LC 202/2000. No mérito, juntou os documentos relativos ao Pregão Presencial n. 01/2007 e à Inexigibilidade de Licitação n. 01/2007, alegando que a contratação de pessoa física ou jurídica para o desenvolvimento de ações e serviços de saúde está prevista no art. 154 da Constituição Estadual. Argumentou que foi observada a realização de licitação e que todos os sócios da empresa contratada eram médicos e prestaram, pessoalmente, atendimento à comunidade. Aduziu que a contratação da empresa por hora de trabalho teria sido menos onerosa aos cofres do município do que a contratação de médicos para ocupar cargos públicos. Por fim, informou que o quadro de médicos do município já estava “completamente lotado” e que não acudiram interessados ao processo seletivo para contratação temporária de 15 médicos plantonistas (Edital n. 004/2007), obrigando o município a realizar as terceirizações ora examinadas (fls. 63-71).

A Equipe Técnica afastou a preliminar e, no mérito, acolheu os argumentos de defesa, consignando que diante da essencialidade dos serviços e da presumida ausência de interessados no processo para seleção de médicos, a contratação através de licitação revelou-se razoável e compatível com o texto constitucional, que admite a execução das ações e serviços de saúde através de terceiros (art. 197).

Por seu turno, o Ministério Público Especial destacou que o conhecimento da denúncia está amparado no exercício de competências constitucionais da Corte e no interesse público que envolve a matéria, somado aos elementos de prova obtidos através do Sistema e-Sfinge. Em relação ao mérito, o Parquet divergiu do Corpo Instrutivo por entender que as ações e os serviços públicos de saúde não podem ser terceirizados, consoante os prejulgados 1867, 1853, 1347 e 1095. Ponderou que “a iniciativa privada quando ocupa, complementarmente, o lugar do Estado na prestação de serviços de saúde deve fazê-lo com estrutura própria, que engloba recursos humanos, instalações e materiais”. Porém, no caso, a instituição privada estava “utilizando de instalações e materiais fornecidos pelo Município, fornecendo apenas profissionais médicos para a prestação dos serviços”. Ademais, observou que “o responsável não demonstrou terem as terceirizações constado no Plano de Saúde e terem sido aprovadas pelo Conselho Municipal, conforme exigido pela Portaria nº 3.277/2006”. Por fim, constatou que os contratos sob exame foram prorrogados até 31/12/2009, havendo, ainda em 2011, outras terceirizações na saúde pública municipal.

Preliminarmente, observo que apesar da petição inicial não estar acompanhada dos indícios de prova exigidos pelo § 1º do art. 65 da LC 202/2000, o conhecimento da Denúncia se deu a partir dos documentos colacionados pelo Douto Procurador de Contas, que forneceram os indícios mínimos necessários para a investigação das contratações apontadas pelo denunciante. Naquela oportunidade, determinei à DLC a apuração dos fatos que, ao longo da instrução probatória, foram confirmados pelo próprio gestor da Unidade. Ademais, não se pode olvidar que a matéria controvertida nos autos está submetida ao poder fiscalizatório desta Corte de Contas. Dessa forma, acompanho as manifestações exaradas nos autos acerca do conhecimento da presente Denúncia.

No que tange à contratação de entidade privada, há de se fazer uma análise diferenciada, à luz do que dispõe a Constituição Federal e das circunstâncias que envolveram as contratações sob análise. Com efeito, o texto constitucional atribui ao Estado a execução das ações e dos serviços de saúde, permitindo a participação da iniciativa privada no sistema único de saúde de forma complementar, mediante contrato de direito público ou convênio (art. 199, § 1º).

Destarte, a cobertura do sistema municipal de saúde através de médicos plantonistas deve ser realizada por profissionais pertencentes ao quadro permanente do Poder Público, através de sistema de escala. Nesse contexto, se o número de médicos existentes não for suficiente para atender a demanda, surge a possibilidade da Administração Pública recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada a fim de garantir a cobertura assistencial à população.

No caso, a Unidade recorreu à terceirização sob o argumento de que o quadro de médicos do município estava lotado e que não houve interessados em preencher as vagas de plantonistas abertas pelo Edital n. 004/2007. Para tanto, em 27/07/2007, o município abriu o Pregão Presencial n. FMS 01/2007 (Processo Licitatório n. FMS 31/2007) para contratação de empresa ou entidade para prestação de serviços de médicos plantonistas para atuarem no Pronto Atendimento Municipal (Edital de fls. 119-142), culminando na contratação da Contestado - Prestadora de Serviços Médicos Ltda., em 14/08/2007 (fls. 341-347).

Ocorre que, examinando a lista de aprovados dos Editais n. 02/2005 (fl. 387), 001/2007 (fls. 392-394) e 002/2007 (fls. 447/452), verifica-se que os concursos realizados não preencheram todas as vagas disponíveis. Do concurso n. 02/2005, aberto em 27/05/2005 para contratação de médico do Programa Saúde da Família - PSF sobraram duas vagas. Dos concursos 001/2007, aberto em 15/02/2007, e 002/2007, aberto em 21/03/2007, ambos para o preenchimento do quadro de pessoal da Administração, sobraram, respectivamente, uma e dez vagas.[1]

Tal situação revela a existência de vagas disponíveis na rede municipal de saúde inviabilizando o recurso à iniciativa privada. Consoante destacou o Procurador do Ministério Público Especial, a complementação dos serviços de saúde requer o uso integral da capacidade instalada e deve, ainda, observar os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde, porém, “o responsável não demonstrou terem as terceirizações constado no Plano de Saúde e terem sido aprovadas pelo Conselho Municipal, conforme exigido pela Portaria nº 3.277/2006” (fl. 496):

 

Lei n. 8.080/90

Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.

 

Portaria MS-GB n. 3.277/2006[2] (vigente à época)

Art. 2º Quando utilizada toda a capacidade instalada dos serviços de saúde, e comprovada e justificada a necessidade de complementar sua rede e, ainda, se houver impossibilidade de ampliação dos serviços públicos, o gestor poderá complementar a oferta com serviços privados de assistência à saúde.

(...)

§ 2º Para fins de organização de rede e justificativa de necessidade de complementariedade, deverá ser elaborado um Plano Operativo para as instituições públicas.

§ 3º A necessidade de complementação de serviços deverá ser aprovada pelo Conselho de Saúde e constar do Plano de Saúde. (grifo do autor)

 

Em relação ao Edital 004/2007, lançado em 09/05/2007, os documentos juntados nas fls. 453 a 459 tratam somente da prorrogação das inscrições e não se pode considerar como prova suficiente a declaração de ausência de inscritos no processo seletivo, firmada apenas em 24/11/2009.

Ademais, os serviços de médico plantonista foram contratados inicialmente até 31/12/2007, contudo, examinando os documentos juntados pelo Responsável e os dados do Sistema e-Sfinge, observa-se que a contratação passou por 14 aditivos, sendo prorrogado até o presente exercício (fls. 499-503).[3]

Também não deve prosperar a alegação de que a contratação da empresa por hora de trabalho teria sido menos onerosa aos cofres públicos, visto que o atendimento da rede pública de saúde envolve o cumprimento de um dever atribuído constitucionalmente ao Estado (Art. 196 da Constituição Federal). Nesse ponto, diga-se, a realidade da saúde pública municipal é bastante delicada. A empresa contratada está utilizando as instalações e os materiais fornecidos pelo Poder Público sem proporcionar um atendimento adequado à população. Os problemas envolvendo o Pronto Atendimento (PA) já ensejaram a aplicação de pena de advertência pela municipalidade (fls. 350-363) e foram, inclusive, noticiados pela imprensa local (fl. 498).

Durante a instrução processual foi apurado que a Unidade também contratou a empresa Contestado - Prestadora de Serviços Médicos Ltda. para prestação de serviços médicos em escala de sobreaviso, nas especialidades de ortopedia, clínica médica, obstetrícia/ginecologia, pediatria, anestesia e clínica cirúrgica, destinados ao Pronto Atendimento Municipal. O referido contrato originou-se da Inexigibilidade de Licitação n. FMS 01/2007, homologada em 25/01/2007, e teve vigência entre 02/01/2007 e 31/12/2007 (fls. 93-110). Além desta contratação, observa-se nas fls. 244 que o município mantinha outros contratos com a mesma empresa e com o mesmo objeto, desde 2005 (ano em que o Responsável iniciou seu mandato). Trata-se, portanto, de situação que antecedeu a maioria dos concursos citados pelo Responsável, não se podendo considerá-los como justificativa para a terceirização sob exame. Não obstante a irregularidade desta contratação, o Responsável não foi citado por ela, não podendo ser incluída na condenação final.

Ante o exposto, não estando demonstrada a incapacidade da rede pública para atender a demanda do Sistema Único de Saúde, a contratação de médicos através de entidades privadas caracterizou ofensa à regra do concurso público (art. 37, II, da Constituição Federal), razão pela qual acompanho a conclusão do Ministério Público.

Por fim, o Corpo Instrutivo destacou outras irregularidades, a par das já apontadas na denúncia, quais sejam: utilização de modalidade licitatória indevida, possibilidade de prorrogação do contrato em até 60 meses, ausência de autorização legislativa local e violação do princípio da isonomia. Todavia, considerando que as mesmas não foram apresentadas ao Responsável no momento de sua defesa, concluiu-se por incluí-las no rol de recomendações à Unidade Gestora.

 

III - VOTO

Estando os autos instruídos na forma Regimental, considerando o relatório da instrução e o parecer do Ministério Público Especial, proponho a este egrégio Plenário o seguinte VOTO:

1. Considerar irregular, com fundamento no art. 36, § 2º, alínea “a”, da Lei Complementar nº 202/2000, as contratações de médicos terceirizados, patrocinadas pelo Fundo Municipal de Saúde de Canoinhas, por meio do Pregão Presencial n. FMS 01/2007 (Processo Licitatório n. FMS 31/2007), e o contrato n. 21/2007, dele decorrente, por caracterizar burla ao concurso público, em contrariedade ao art. 37, II, da Constituição.

2. Aplicar ao Leoberto Weinert, Prefeito Municipal desde 1º/01/2005, CPF 247.300.099-91, com fundamento no art. 70, II, da Lei Complementar nº 202/00 c/c o art. 109, II do Regimento Interno, a multa a seguir especificada, fixando-lhe o prazo de 30 dias a contar da publicação do Acórdão no Diário Oficial Eletrônico desta Corte de Contas, para comprovar ao Tribunal o recolhimento ao Tesouro do Estado da multa cominada, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança judicial, observado o disposto nos artigos 43, II, e 71 da Lei Complementar nº 202/2000:

2.1 R$ 1.000,00 (mil reais) pelas contratações de médicos terceirizados, patrocinadas pelo Fundo Municipal de Saúde de Canoinhas, por meio do Pregão Presencial n. FMS 01/2007 (Processo Licitatório n. FMS 31/2007), e o contrato n. 21/2007, dele decorrente, por caracterizar burla ao concurso público, em contrariedade ao art. 37, II, da Constituição.

3. Recomendar à Prefeitura Municipal de Canoinhas que:

3.1 Promova a readequação do quadro de médicos do município a fim de garantir a cobertura do sistema de saúde, inclusive através de médicos plantonistas e de médicos em regime de sobreaviso.

3.2 Promova a realização de concurso público para provimento dos cargos de médico vagos no município, bem como para a contratação de médicos através do Programa Saúde da Família - PSF;

4. Após a adoção das medidas supramencionadas, sendo comprovada a necessidade de complementação dos serviços públicos de saúde e havendo a impossibilidade de ampliação da rede municipal, recomenda-se à Prefeitura Municipal de Canoinhas que as novas contratações pela via do processo licitatório não ocorram pela modalidade Pregão, que seja possibilitada a participação de profissionais médicos como autônomos, de forma a não favorecer exclusivamente empresas de assistência médica, e que a contratação só ocorra se respaldada em autorização legislativa, observando-se, ainda, a Lei n. 8.080/90 e a Portaria 1.034, de 05/05/2010, do Ministério da Saúde.

5. Dar ciência da decisão com remessa de cópia do Parecer nº MPTC/4258/2011 e do Voto que a fundamentam ao Sr Leoberto Weinert – Prefeito Municipal de Canoinhas, ao Poder Legislativo de Canoinhas e ao Denunciante.

 

Gabinete, em 14 de outubro de 2011.

 

 

 

Cleber Muniz Gavi

Auditor Substituto de Conselheiro

Relator



[1] Do concurso n. 001/2007, 01 vaga de pediatra. Do concurso n. 002/2007 as seguintes vagas: 01 de pediatra, 03 de ortopedista, 01 de clínico geral (região interiorana), 01 de cirurgião geral, 01 de neurologista, 01 de urologista, 01 de otorrinolaringologista e 01 de coloproctologista.

[2] Revogada pela Portaria 1.034, de 05/05/2010

(fonte: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt1034_05_05_2010.html)

[3] Dos 14 termos aditivos, os quatro primeiros foram juntados pelo próprio Responsável, comprovando uma prorrogação até 31/12/2009. Contrato n. 21/2007. 1º Aditivo (fl. 348): aumentou o valor do contrato de R$ 248.400 para R$ 907.200 e prorrogou o prazo para 31/12/2008. 2º Aditivo (fls. 364/365): em síntese, prorrogou o prazo para 31/12/2009. 3º Aditivo (fl. 366): aumentou o valor do contrato para R$ 1.624.775,40, reajustando-o e adequando-o à prorrogação de prazo. 4º Aditivo (fl. 370): considerando o estado de calamidade pública na saúde, acrescentou 1080 horas de serviço, adequando o valor do contrato, que passou para R$ 1.683.754,20.