ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO

Gabinete do Auditor Substituto de Conselheiro Cleber Muniz Gavi

PROCESSO:                        REC 14/00579357

UNIDADE:                 Fundo Municipal de Saúde de Itajaí

ASSUNTO:                Recurso de Reconsideração da decisão exarada no processo PCA 07/00178910

 

RECURSO DE RECONSIDERAÇÃO. CONTRATAÇÃO DIRETA DE SERVIÇOS E FRACIONAMENTO DE LICITAÇÃO. MANUTENÇÃO DA MULTA APLICADA. INAPLICABILIDADE DA LC 588/2013 DIANTE DAS REFERÊNCIAS TEMPORAIS POR ELA FIXADAS.

As compras e serviços devem ter sua execução prevista no planejamento da unidade, a fim de evitar o fracionamento irregular das despesas e burla ao procedimento licitatório. Contratações separadas de idênticos serviços são irregulares se constatada a possibilidade de uma única licitação para atender às necessidades da Administração e não há justificativa válida para a falha de planejamento.

A Lei Complementar estadual n. 588/2013, inserindo o novo art. 24-A da Lei Orgânica do Tribunal de Contas de Santa Catarina, estabeleceu o prazo de cinco anos para análise e julgamento de processos administrativos, considerando a data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou a data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a mais recente. Logo, se a citação se deu em período inferior a cinco anos, não há óbices ao prosseguimento do processo.

A norma de transição do art. 2° da LC 588 visa a salvaguardar a situações de processos que, instaurados anteriormente a sua vigência, seriam imediatamente extintos, prejudicando a atuação do Tribunal de Contas sem que lhe fosse oportunizado tempo suficiente para adequações. Desta forma, pela sua própria natureza, apenas se aplica após análise da regra principal, ou seja, quando houver a possibilidade de automática extinção do processo pela regra do art. 24-A da Lei Orgânica, o que não é o caso dos autos.

 

 

VOTO

 

Tendo em vista a manifestação por mim proferida na Sessão de 21.10.2015, venho por meio desta declarar o meu voto e apresentar as razões que levaram à divergência.

Em breve resumo, trata o processo de recurso de reconsideração interposto pelo Sra. Nausicca da Silva Morastoni, contra o Acórdão 0741/2014, proferido no processo PCA 07/00178910, que resultou em aplicação de multa de R$ 400,00 (quatrocentos reais), em razão da ausência de processo licitatório para contratação de assessoria e consultoria.

Com respaldo na manifestação da Diretoria de Recursos e Reexames, sustentando a aplicabilidade do art. 2° Lei Complementar estadual n. 588/2013, propõe a Exma. Conselheira Substituta Sabrina Nunes Iocken que seja considerado extinto o processo, sem apreciação de mérito, com baixa automática da responsabilidade, nos termos daquele dispositivo e do art. 24-A da Lei Orgânica desta Corte (artigo introduzido pela mesma LC 588/2013).

Face aos fundamentos do voto inicial, trago outras considerações na presente divergência, esta inclusive provocada pela própria Relatora, com o salutar propósito de uniformizar os entendimentos a serem adotados nas futuras deliberações.

Sendo favorável à apreciação de mérito do recurso, não vislumbro hipótese de extinção de processo ao considerar os marcos temporais que a LC n. 588/2013, em seu art. 1°, adotou como referência para o prazo de cinco anos. Defendo, ademais, a finalidade subsidiária do seu art. 2° (regra de transição), a qual não teria o condão de prejudicar o andamento deste feito em particular.

Oportuno, para clareza da explanação, esboçar o conteúdo da Lei Complementar estadual n. 588/2013, que estabeleceu:

Art. 1º Fica acrescido o art. 24-A à Lei Complementar nº 202, de 15 de dezembro de 2000, com a seguinte redação:

“Art. 24-A É de 5 (cinco) anos o prazo para análise e julgamento de todos os processos administrativos relativos a administradores e demais responsáveis a que se refere o art. 1º desta Lei Complementar e a publicação de decisão definitiva por parte do Tribunal, observado o disposto no § 2º deste artigo.

§ 1º Findo o prazo previsto no caput deste artigo, o processo será considerado extinto, sem julgamento do mérito, com a baixa automática da responsabilidade do administrador ou responsável, encaminhando-se os autos ao Corregedor-Geral do Tribunal de Contas, para apurar eventual responsabilidade.

§ 2º O prazo previsto no caput deste artigo será contado a partir da data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente.” (NR)

 

Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:

I - os processos instaurados há 5 (cinco) ou mais anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 2 (dois) anos para serem analisados e julgados;

II - os processos instaurados há pelo menos 4 (quatro) anos e menos de 5 (cinco) anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 3 (três) anos para serem analisados e julgados;

III - os processos instaurados há pelo menos 3 (três) anos e menos de 4 (quatro) anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 4 (quatro) anos para serem analisados e julgados; e

IV - os processos instaurados há menos de 3 (três) anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 5 (cinco) anos para serem analisados e julgados.

 

Art. 3º Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação.

 

Embora todas as peculiaridades relacionadas à aplicabilidade desta lei ainda não tenham sido exauridas em decisões desta Corte, colima-se apenas demonstrar que, mesmo se a considerarmos plenamente válida e eficaz, seu alcance não prejudicará a continuidade do presente processo em virtude das peculiaridades do caso.

Atendo-se à redação conferida ao dito art. 24-A da Lei Complementar n. 202/2000, verifica-se que, dentre os dois marcos fixados para contagem dos prazos, considera-se “... a data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente”.

Em consulta aos autos do processo PCA 07/00178910, verifico que a responsável fora citada em data de 26.09.2011, conforme se comprova às fls. 51 daquele caderno processual. Desta forma, tem-se que o prazo final para julgamento do feito seria em 26 de novembro de 2016. Portanto, não há prejuízo ao julgamento do feito quanto a este aspecto. E na concepção deste subscritor, neste ponto se encerra a questão.

Inevitável, entretanto, o surgimento de interpelações suscitando a disciplina do art. 2° da LC 588/2013. Assim, para correto equacionamento da matéria, adito as razões pelo qual defendo sua inaplicabilidade para esta hipótese.

O art. 2º da LC 588/2013 trata das regras de transição, aplicáveis aos processos que, face à novidade da norma, poderiam ser arquivados sem que o Tribunal de Contas tivesse tempo oportuno para adaptação à nova disciplina de temporalidade processual. Desta forma, se a regra geral do novo art. 24-A não vier a prejudicar a atuação desta Corte Administrativa em curto prazo (como é o caso), não se justifica o uso da regra transitória.

Para maior aprofundamento da questão, atente-se para o fato de que o art. 2° expressamente se reporta ao disposto no art. 24-A e menciona que sua aplicabilidade dar-se-á no que couber. (“Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:”). Cabe também enfatizar que os marcos temporais são totalmente distintos num e noutro artigo: um faz uso da data da citação ou término do exercício do cargo ou mandato (regra geral); outro, menciona a data da instauração do processo (regra transitória).

Então, vale repisar, a disciplina do art. 2° só será útil e aplicável quando o imediato alcance do art. 24-A inviabilizar o julgamento de processos mais antigos.

Para melhor esclarecimento, tratemos dos seguintes exemplos:

1)  Suponha-se que na data de publicação da lei (15.01.2013) fosse identificado um processo no qual, há 05 anos ou mais, foi efetuada a citação da parte responsável e findou o exercício do seu cargo ou mandato. Neste caso, a disciplina do recém-criado art. 24-A impediria, desde logo, a emissão de julgamento. O art. 2° surge, então, como norma de transição para assegurar que por mais 02 anos (atenuando os efeitos inovadores da lei) possa o Tribunal de Contas prosseguir na instrução e julgamento do feito, conforme o seguinte texto:

 

Art. 2º O disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000, aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma:

I - os processos instaurados há 5 (cinco) ou mais anos terão, a partir da publicação desta Lei Complementar, o prazo de 2 (dois) anos para serem analisados e julgados;

 

2)  Suponha-se, agora, que tenha sido identificado um processo que, embora instaurado há mais de 05 anos, não tenha se amoldado completamente ao marco temporal do art. 1°. Cogite-se, por exemplo, que a citação neste processo tenha sido efetuada em ocasião mais recente, menos de 02 anos; ou que o exercício do cargo ou do mandato tenha se encerrado neste mesmo prazo. Para tal hipótese, não se faz necessário o uso da norma de transição, já que a regra geral ainda permitirá a atuação do Tribunal de Contas, conforme a redação do §2° do art. 24-A: “O prazo previsto no ‘caput’ deste artigo será contado a partir da data de citação do administrador ou responsável pelos atos administrativos, ou da data de exoneração do cargo ou extinção do mandato, considerando-se preferencial a data mais recente.” (ou seja, não importa se o processo em si tem mais de 05 anos).

Todos os incisos do art. 2° da LC n. 588/2013 seguem a mesma lógica, qual seja: só possuem aplicabilidade nos casos em que a pronta aplicação da regra geral do art. 24-A obstar a análise de mérito dos processos em trâmite no Tribunal de Contas, de acordo com os prazos ali mencionados. Caso contrário, a disciplina ad futurum deste último basta por si só (art. 24-A).

Cabe explicitar que esta é a única interpretação lógica possível, considerando-se a redação que foi dada ao art. 2° e a regra hermenêutica de que a lei não contém palavras inúteis. Tamanha engenhosidade seria dispensada caso o legislador apenas tivesse preceituado que “os processos em curso no Tribunal de Contas observaram a seguinte disciplina: (...)”. Entretanto, por meio de redação de alcance e aplicabilidade bem mais complexa, prescreveu que o disposto no art. 24-A da Lei Complementar nº 202, de 2000 aplica-se, no que couber, aos processos em curso no Tribunal de Contas, da seguinte forma: (...)”.

Tal linha interpretativa também evitará incoerências futuras, traduzidas no fato de que os jurisdicionados com processos mais recentes não usufruiriam dos mesmos benefícios concedidos àqueles cujos processos foram autuados em data anterior a publicação da LC n. 588/2013.

Para melhor didática, vamos recorrer a outro exemplo: a análise mais simplista do art. 2º da LC n. 588/2013 (com a qual não concordamos) nos induziria a pensar que todos os processos anteriores a 15.01.2013 teriam 05 anos, no máximo, para serem julgados, independentemente da disciplina do art. 24-A. Mas então se questiona: qual será o tratamento dado aos processos instaurados após a publicação da lei?

Se o marco temporal do art. 24-A da Lei Orgânica (regra geral para contagem dos cinco anos) é constituído apenas pela data da citação ou do término do exercício do cargo ou função, é bem possível que um processo futuro tenha mais de 15 anos e ainda assim esteja em condições de ser julgado. Basta, por exemplo, que a citação tenha ocorridos nos últimos dois anos. Neste caso, não haveria uma incoerência normativa? Os jurisdicionados submetidos à regra de transição não teriam obtido um tratamento privilegiado, considerando-se a regra geral que passa a vigorar? Não se estaria adotando referências totalmente distintas para determinar o arquivamento dos processos, ou seja, para aqueles autuados até 15.01.2013 a referência seria a data da autuação (mais favorável), enquanto para os posteriores, a data da citação ou término do exercício do cargo ou mandato?

Por certo, a linha interpretativa que preserva a coerência, evita a distinção entre situações jurídicas idênticas e reverencia o caráter perene das disposições normativas, constitui o melhor norte a ser seguido. Não é demais lembrar que uma norma de transição se presta a flexibilizar eventuais rupturas decorrentes de uma nova regra jurídica. Mas se a interpretação do seu alcance conduz a criação de regra totalmente distinta da norma principal e com ela não compatível, impõe-se a revisão do processo interpretativo, com o escopo de conciliar a norma de transição com a nova disciplina geral que fundamentou sua existência.

Neste ponto, torna-se obrigatória a referência à doutrina de Carlos Maximiliano, que indica as seguintes regras destinadas a suprir aparentes antinomias ou incompatibilidades da lei:

a)     Tome como ponto de partida o fato de não ser lícito aplicar uma norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi feita. Se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem a supremacia. (...).

b)    Verifique se os dois trechos se não referem a hipóteses diferentes, espécies diversas. Cessa, nesse caso, o conflito; porque tem cada um a sua esfera de ação especial, distinta, cujos limites o aplicador arguto fixará precisamente.

c)     Apure o intérprete se é possível considerar um texto como afirmador de princípio, regra geral; o outro, como dispositivo de exceção; o que estritamente não cabe neste, deixa-se para a esfera de domínio daquele.

d)    Procure-se encarar as duas expressões de Direito como partes de um só todo, destinadas as complementarem-se mutuamente; de sorte que a generalidade aparente de uma seja restringida e precisada pela outra.

e)     Se uma disposição é secundária ou acessória e incompatível com a principal, prevalece a última.

f)     Prefere-se o trecho mais claro, lógico, verossímil, de maior utilidade prática e mais em harmonia com a lei em conjunto, os usos, o sistema do Direito vigente e as condições normais de coexistência humana. Sem embargo da diferença de data, origem e escopo, deve a legislação de um Estado ser considerada como um todo orgânico, exeqüível, útil, ligados por uma correlação natural.

(Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. fls. 100/111)

 

Reconhece-se não haver obviedades no raciocínio ora adotado. Mas é importante advertir que a lei da qual estamos tratando por si só representa um grande desafio à lógica. Um artigo subsidia a aplicação do outro, mas se valendo de referência que, a princípio, os tornaria inconciliáveis. E há diversas outras peculiaridades da norma colocando à prova a flexibilidade do intérprete, sem caber a este voto o esgotamento da matéria. O que deve ficar claro é que qualquer tentativa de compreensão demandará múltiplas leituras, um olhar clínico sobre todos os termos da lei e, sobretudo, redobrado esforço para lhes emprestar um sentido e coerência.

Por tal motivo, ratifico que a eventual aplicabilidade de sua disciplina não interferiria com o julgamento deste feito. Saliento, ademais, que a adoção desta proposta não colide com a análise da constitucionalidade da lei, matéria já objeto de representação à Procuradoria Geral da República, conforme voto proferido pelo Conselheiro Substituto Gerson dos Santos Sicca no Proc. REC 14/00551851(Sessão de 08.07.2015).

Excluída tal prejudicial para o julgamento do mérito, passo à análise deste.

O ponto central do recurso dispensa longas discussões.

A responsável teve contra si a pena de multa, face à constatação de que efetuou uma contratação considerada como fracionamento irregular de despesa, já que ao longo do exercício efetuou a mesma espécie de dispêndio, inclusive por licitação na modalidade carta convite.

Em cifras históricas de 2006, foi apurado que em 24 de março de 2006 foi efetuada a contratação direta (sem licitação) do serviço de assessoria e consultoria pelo valor de R$ 7.900,00. Seis meses após, em 29 de setembro, efetuou-se licitação para contratação do serviço por R$ 27.600,00 (com a mesma empresa, inclusive), o que caracteriza fracionamento irregular da primeira despesa.

A manifestação do Ministério Público de Contas esgota, em breve raciocínio, os fundamentos de fato e de direito que justificam a manutenção do acórdão impugnado, por isto a cito e adoto por fundamento:

Razão não cabe à Recorrente. As contratações deram-se no mesmo exercício financeiro – mais especificamente, em um intervalo de seis meses – alcançando o montante de R$ 35.500,00. O curto intervalo de tempo, somado a previsibilidade da contratação de tais serviços, esvazia a tese levantada pela Recorrente do surgimento de necessidade não antevista. Por fim, dentre a documentação acostada à peça recursal, não há nenhum elemento probatório que ampare tal linha de argumentação.

Ao contrário do sustentado, a contratação não só poderia, mas deveria ter-se realizado por meio de um único procedimento, sob pena de caracterização de fracionamento do objeto licitado e burla à regra imposta pelo art. 37, XXI da CRFB/88 e pelos artigos 2° e 24, II, §5°, da Lei n. 8.666/93.

 

Ante o exposto, pedindo vênia à eminente Relatora, apresento o seguinte VOTO:

1. Conhecer do Recurso de Reconsideração, nos termos dos arts. 77 da Lei Complementar Estadual n. 202/2000, interposto contra o Acórdão n. 0741/2014, proferido nos autos do processo PCA n. 07/00178910, na Sessão Plenária de 01/09/2014, e, no mérito, negar-lhe provimento, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

2. Dar ciência desta decisão, do relatório e voto do relator à Sra. Nausicaa da Silva Morastoni, ao seu procurador e ao Fundo Municipal de Saúde de Itajaí.

 

Gabinete, em 26 de outubro de 2015.

 

 

Cleber Muniz Gavi

Auditor Substituto de Conselheiro

Relator