ESTADO DE SANTA CATARINA
    TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
    CONSULTORIA GERAL

Processo n°: REC - 03/07986802
Origem: Secretaria de Estado da Fazenda
RESPONSÁVEL: David Mendes Ribas
Assunto: Recurso (Recurso de Reconsideração - art. 77 da LC 202/2000) -SPC-02/09549130
Parecer n° COG-181/07

Recurso de reconsideração. Administrativo. Imputação de débito via Resolução. Ilegalidade. Cancelamento.

Há ilegalidade manifesta na criação de hipótese típica inédita por meio de Resolução - considerado ato administrativo normativo inapto para tanto que, por não ser lei em sentido formal, não pode instituir direito novo; porquanto trata-se de norma de grau inferior, em que estão ausentes as garantias encontradas nas Leis aos administrados, com o fito de proporcionar à estes a necessária segurança jurídica.

Senhor Consultor,

RELATÓRIO

Tratam os autos de Recurso de Reconsideração interposto pelo Sr. David Mendes Ribas, Presidente do Centro Cultural de Joaçaba em 2001, conforme prescrito no art. 77, da LCE nº 202/00, em face do Acórdão nº 1967/03, proferido nos autos do Processo nº SPC 02/09549130, o qual decidiu por julgar irregulares, com imputação de débito (fundamento no art. 18, inciso III, alínea "c" da LCE nº 202/00), as contas dos recursos antecipados referentes à Nota de Empenho nº 2334/00, de 22/10/01, P/A 4769, item 433101.00, fonte 00, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais); dar quitação ao Responsável da parcela de R$ 6.821,40 (seis mil oitocentos e vinte e um reais e quarenta centavos); condenar o Responsável ao pagamento da quantia de R$ 3.178,60 (três mil centoe setenta e oito reais e sessenta centavos), relativa à parte irregular da nota de empenho citada acima, em face da apresentação de comprovante de gastos com documentos em 2ª via, em descumprimento aos arts. 46, parágrafo único, e 59 da Resolução TC-16/94.

Em conformidade com a solicitação (requisição nº 114/02) deste Egrégio Tribunal, a Secretaria de Estado da Fazenda, através do Ofício SEF/GABS nº 1.308/02 (fls. 02-03), enviou o Processo de Prestação de Contas do Centro Cultural de Joaçaba - PSEF nº 78083/028 (fls. 04-31).

No Relatório de Instrução nº DCE/INSP.2/Nº125/03 (fls. 32-33), após análise da documentação juntada, concluiu-se pela Citação do Responsável à época, Sr. David Mendes Ribas, nos termos do art. 15, inciso II, da LCE nº 202/00, em razão das irregularidade detectada - o que foi determinado por despacho, às fls. 34-35, do Exmo. Sr. Relator Conselheiro José Carlos Pacheco.

O Ofício nº 5.515/TCE/DCE/03 (fls. 36) foi encaminhado ao Sr. David Mendes Ribas para que apresentasse suas Alegações de Defesa ou Recolher a Quantia imputada.

O Sr. David Mendes Ribas apresentou seus esclarecimentos às fls. 37-39, em conjunto com os docs. de fls. 40-42.

Em sequência, o Exmo Sr. Relator Conselheiro José Carlos Pacheco, determinou o encaminhamento do processo à Diretoria de Controle da Administração Estadual, com vistas à reinstrução dos autos (fls. 44).

No Relatório nº DCE/INSP.2/Nº415/03 (fls. 45-48), após análise das manifestações apresentadas, o Corpo Técnico sugeriu julgar irregulares as contas dos recursos aantecipados em favor do Centro Cultural de Joaçaba.

Em seu Parecer nº 1.831/MPTC/03 (fls. 50-51), o Ministério Público Especial, bem como o Relator do feito, o Exmo. Sr. Relator Conselheiro José Carlos Pacheco - fls. 52-55, acompanharam o posicionamento do Corpo Técnico. E, através do Acórdão nº 1967/03, na Sessão Ordinária de 29/09/03, o Tribunal Pleno confirmou o voto do Relator - fls. 56-57, cita-se:

ACORDAM os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, reunidos em Sessão Plenária, diante das razões apresentadas pelo Relator e com fulcro nos arts. 59 da Constituição Estadual e 1° da Lei Complementar n. 202/2000, em:

6.1. Julgar irregulares, com imputação de débito, com fundamento no art. 18, III, "c", da Lei Complementar n. 202/2000, as contas de recursos antecipados referentes à Nota de Empenho n. 2334/000, de 22/10/2001, P/A 4769, item 433101.00, fonte 00, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil

reais).

6.1.1. Dar quitação ao Responsável da parcela de R$ 6.821,40 (seis mil oitocentos e vinte e um reais e quarenta centavos), de acordo com os pareceres emitidos nos autos;

6.1.2. Condenar o Responsável – Sr. David Mendes Ribas - Presidente do Centro Cultural de Joaçaba em 2001, ao pagamento da quantia de R$ 3.178,60 (três mil cento e setenta e oito reais e sessenta centavos), relativa à parte irregular da nota de empenho citada acima, em face da apresentação de comprovante de gastos com documentos em 2ª via, em descumprimento aos arts. 46, parágrafo único, e 59 da Resolução n. TC-16/94, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do Estado, para comprovar a este Tribunal o recolhimento do valor do débito aos cofres do Estado, atualizado monetariamente e acrescido de juros legais, calculados a partir de 29/10/2001 (arts. 40 e 44 da Lei Complementar n. 202/2000), ou interpor recurso na forma da lei, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança judicial (art. 43, II, do mesmo diploma legal).

6.2. Declarar o Centro Cultural de Joaçaba e o Sr. David Mendes Ribas - impedidos de receberem novos recursos do Erário até a regularização do presente processo, consoante dispõe o art. 5°, alínea "c", da Lei Estadual n. 5.867/81.

6.3. Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, bem como do Relatório de Instrução DCE/Insp.2/Div.6 n. 415/2003, à Secretaria de Estado da Fazenda, ao Centro Cultural de Joaçaba e ao Sr. David Mendes Ribas -

Presidente daquela entidade em 2001.

Através do Ofício nº 15.264/TCE/SEG/03 (fls. 58) comunica-se ao Sr. David Mendes Ribas sobre o Acórdão emanado por esta Corte de Contas e o notifica para que adote os procedimentos necessários à comprovação do recolhimento do débito imputado. E, da mesma forma, o Ofício nº 15.265/TCE/SEG/03 (fls. 59), o Ofício nº 15.266/TCE/SEG/03 (fls. 60), transmitiram idêntica informação, respectivamente, ao Sr. Marco Aurélio de Andrade Dutra, Diretor do Tesouro Estadual - DITE/SEF, e ao Sr. Mário Aldo Bertoldi, Presidente do Centro Cultural de Joaçaba, todos na data de 20/10/03.

Inconformado, o Sr. David Mendes Ribas interpôs Recurso de Reconsideração, nº REC - 03/07986802 (fls. 02-05, com docs. fls. 06-07) com o fito de reverter a decisão tomada por Acórdão.

É o Relatório.

II. DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE

No que se refere à legitimidade, o Sr. David Mendes Ribas (Presidente do Centro Cultural de Joaçaba em 2001) é parte legítima, nos termos do artigo 133, § 1º alínea "a" da Resolução TC-06/01, na situação de Responsável para interpor recurso na modalidade de Reconsideração, nos moldes dos arts. 76, I, da LCE nº 202/00.

Vejamos:

Quanto ao requisito da tempestividade o art. 77, da LCE nº 202/00, assim estabelece o prazo para interposição do Recurso de Reconsideração:

Art. 77. Cabe Recurso de Reconsideração contra decisão em processo de prestação e tomada de contas, com efeito suspensivo, interposto uma só vez por escrito, pelo responsável, interessado ou pelo Ministério Público junto ao Tribunal, dentro do prazo de trinta dias contados da publicação da decisão no Diário Oficial do Estado.

(grifo nosso).

A Resolução TC-06/01, em seu art. 136, faz a mesma previsão:

Art. 136. De acórdão proferido em processos de prestação ou tomada de contas, inclusive tomada de contas especial, cabem Recurso de Reconsideração e Embargos de declaração.

Parágrafo único. O Recurso de Reconsideração, com efeito suspensivo, será interposto uma só vez, por escrito, pelo responsável ou pelo Procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal, dentro do prazo de trinta dias contados da publicação do acórdão no Diário Oficial do Estado.

(grifo nosso).

Ainda, necessário complementar com a regra disposta no art. 66, caput c/c §3º da Resolução TC-06/01:

Art. 66. Salvo disposição em contrário, os prazos previstos neste Regimento computar-se-ão excluindo o dia do começo e incluindo o do vencimento.

(...)

§3º Nos demais casos, salvo disposição expressa em contrário, os prazos somente começam a correr do primeiro dia útil após a publicação do acórdão ou da decisão no Diário Oficial do Estado.

O recurso sob exame foi protocolizado na data de 27/11/03, enquanto a publicação do Acórdão nº 1967 ocorreu no dia 29/09/03, portanto, atendeu ao prazo de trinta dias determinado no art. 77 da LCE nº 202/00 e no art. 136 da Resolução TC-06/01.

A singularidade também foi respeitada, em consonância com o art. 77 da LCE nº 202/00. Ademais, cuida-se de modalidade recursal apta a insurgir-se contra decisões proferidas em processo de prestação ou tomada de contas, o que espelha a situação em tela.

Em decorrência do acima exposto, sugere-se ao Exmo. Sr. Relator que conheça do Recurso de Reconsideração, na forma do art. 77, da LCE nº 202/00, por estarem preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade.

III. DAS RAZÕES RECURSAIS

Em sua defesa, o Recorrente fez as seguintes considerações (fls. 02-05):

In casu, há que se abordar a questão da aplicação de débito com fulcro em Resolução; vejamos:

Este item trata de débito imputado em razão da apresentação de comprovante de gastos com documentos em 2ª via, em inobservância aos arts. 46, parágrafo único, e 59 todos da Resolução TC-16/94, in verbis:

Art. 46 - Nas prestações de contas de recursos a título de Auxílios, Subvenções e Contribuições são

permitidas cópias dos documentos comprobatórios das despesas, devendo ficar em poder da Unidade

Gestora beneficiada os documentos originais das despesas.

Parágrafo único - Excetuam-se das disposições deste artigo os repasses efetuados às entidades

Privadas.

Art. 59 - Na aquisição de bens ou qualquer operação sujeita a tributo, o comprovante hábil deve ser a nota

fiscal e, salvo exceções cabíveis, em primeira via.

No entanto, é firme o entendimento que veda a imputação de penalidade com base em Resolução, ou melhor, deve ser instituída por lei. A própria CF/88 é clara ao determinar em seu art. 5º, inciso II, o qual dita que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei" e, ainda, o inciso XXXIX do mesmo dispositivo legal prescreve o seguinte: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Das lições de Celso Ribeiro Bastos, vejamos comentários acerca da Lei como fonte do Direito Administrativo - Noções de Direito Administrativo. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002. p. 23-24:

Embora a Constituição cuide de fixar princípios e, mesmo, regular matérias que nela encontram a sua disciplinação ampla, nada obstante isso, resta um papel enorme às leis. Estas é que vão dar conteúdo à competência distribuída pela Constituição às pessoas de Direito Público para legislarem sobre as disversas matérias administrativas.

A lei é a fonte por excelência do Direito Administrativo, até porque, quando se fala que este último obedecerá ao princípio da legalidade, entende-se que ele é todo regulado pela lei, que é a sua fonte normal, sua geradora por excelência, sua adaptadora às novas circunstâncias que vão surgindo no mundo em face da evolução econômica, tecnológica , social, cultural etc.

Não se pode subestimar a importância da lei como fonte do Direito Administrativo em nosso país. Há uma verdadeira reserva da lei, isto é, não se autoriza a produção pela Administração de normas de Direito Administrativo com a mesma hierarquia das leis e da Constituição. A lei se destaca, pois, por ser a fonte primária, logo depois da Constituição, sem nenhuma co-divisão de competência cuom uma eventual atividade legislativa do Poder Executivo, como ocorre em alguns países que seguem o modelo francês, onde há uma competência do Poder Executivo para legislar diretamente, dependendo apenas da Constituição.

[...]

Não existe campo no Direito Administrativo alheio às leus, em decorrência do princípio da legalidade. Portanto, não há uma reserva administrativa, ou seja, um campo de atuação administrativa desvinculado de qualquer previsão legal. [...]

Não há, como vimos, uma reserva administrativa no campo do atuar administrativo que fique isenta da regulamentação legislativa.

(grifo nosso)

Celso Antônio Bandeira de Mello trata com excelência a célebre questão - Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 343-344:

Ainda, interessante anotar as palavras do ilustre doutrinador ao dissertar acerca dos regulamentos (o que, da mesma forma, aplicam-se às resoluções) - IBIDEM, p. 341-343:

Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias tendências ideológicas múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que o Congresso se constituiem verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes.

Daí que o resultado de sua produção jurídica, as leis - que irão configurar os direitos e obrigações dos cidadãos - [...].

Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que ocorreria caso fossem a simples expressão unitária de uma vontade individual, embora representativa, também ela, de uma das facções socias. É que, afinal, como bem observou o insuspeito Kelsen, o legislativo, formado segundo critério de elições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade da representação de uma pluralidade de grupos [...].

Se fosse possível, mediante simples regulamentos expedidos por pesidente, governador ou prefeitos, instituir deveres de fazer, ficariam os cidadãos à mercê , se não da vontade pesoal do ungido no cargo, pelo menos, da perspectiva unitária, monolítica, da corrente de pensamento de que estes se fizessem porta-vozes.

[...]

O próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.

É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de ser implantadas.

[...]

Já, os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, propiciam as mazelas que resultariam da falta deles, motivo pelo qual, se são perfeitamente prestantes e úteis para a simples delimitação mais minudente das providências necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais, seriam gravemente danosos - o que é sobremodo claro em país com as características políticas do Brasil - se pudessem, por si mesmos, instaurar direitos e deveres, impondo obrigações de fazer ou não fazer. (grifo nosso)

Portanto, não sendo lei em sentido formal, não pode instituir direito novo, porquanto as resoluções são normas de grau inferior, em que estão ausentes as garantias encontradas nas leis quanto ao administrado, com o fito de proporcionar à estes segurança jurídica, conforme evidenciado pela doutrina acima destacada.

Nesse sentido, interessante reportar a entendimento já firmado por esta Consultoria Geral no Parecer COG-100/07, de autoria da Auditora Fiscal de Controle Externo Anne Christine Brasil Costa, no Processo nº REC - 03/03038853; cita-se:

No artigo entitulado "Poder Regulamentar ante o Princípio da Legalidade" (publ. na RTDP nº 4, 1993), o mestre Celso Bandeira de Mello, ainda acrescenta:

"(...) São inconstitucionais as disposições regulamentares produzidas na conformidade de delegações disfarçadas, resultantes de leis que meramente transferem ao Executivo o encargo de disciplinar o exercício da liberdade e da propriedade da pessoas."

Torna-se, nesse contexto, oportuna a transcrição de trechos da Informação nº COG-172/05, da lavra da Auditora Fiscal Walkíria Maciel, emitida nos autos do Processo nº REC-04/01498034 que, com muita propriedade, analisou situação análoga:

"(...)

Em distinto artigo, Luís Roberto Barroso, no texto abaixo transcrito, faz uma importante análise acerca do exercício do poder regulamentar pelo Tribunal de Contas, a partir de uma acepção constitucional:

Convém, a próposito deste tópico, traçar algumas distinções essenciais entre lei, regulamento e atos administrativos inferiores. Com a ascensão da ideologia liberal e a consagração da separação de Poderes, os Estados democráticos, há mais de duzentos anos, se organizam atribuindo as funções estatais de legislar, administrar e julgar a órgãos diversos. Como corolário de tal ordenação de Poderes, é nota essencial desta modalidade de Estado a submissão de todas as atividades dos cidadãos e dos órgãos públicos a normas gerais preexistentes. Tal peculiariade recebe a designação de princípio da legalidade.

O tema abriga complexidades e sutilezas que envolvem conceitos como os de preferência da lei e reserva da lei, e, dentro desta última, a reserva absoluta e relativa, e a reserva de lei formal e de lei material. Não será necessário tal aprofundamento para os fins do raciocínio aqui desenvolvido. Basta que se assinale que o princípio da legalidade, na sua aplicação aos particulares, traduz-se em que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", na locução clássica reproduzida no inciso II do art. 5º da Carta de 1988. Inversamente, no que toca à Administração Pública, seus órgãos e agentes, o princípio tem significado simétrico: só se pode fazer aquilo que a lei autoriza ou determina. A nova Constituição também abrigou a regra (art. 37, caput).

Pois é de tal circunstância que decorre a distinção fundamental, ao ângulo material, entre a lei e o regulamento. Um e outro, é certo, são atos normativos, de caráter geral e impessoal. Mas somente a lei - e não o regulamento - pode inovar na ordem jurídica, modificando situação preexistente. Sempre a lei, e jamais o regulamento, será a via legítima de se criarem obrigações para os particulares. A doutrina é indiscrepante na matéria. A faculdade regulamentar, lembra Sergio Ferraz, longe de infirmar o princípio da separação dos Poderes, antes o confirma: o regulamento é uma das principais formas de manifestação da atuação administrativa, e não poderá contrariar a lei formal.

O conceito de poder regulamentar foi expresso, com a clareza habitual, pelo saudoso professor Hely Lopes Meirelles:

"O poder regulamentar é a faculdade de que dispõem os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) de explicar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre a matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei. É um poder inerente e privativo do Chefe do Executivo (CF, art. 84, IV)."

[...}

De todo modo, embora a diferença assinalada acima não seja de pouca relevância, o problema é com as palavras "poder regulamentar", presentes em ambos os textos. Entendida no seu sentido mais óbvio, a expressão é evidentemente inconstitucional. De fato, do longo elenco de competências atribuídas ao Tribunal de Contas, constante dos onze incisos do art. 71, da Constituição, não consta a referida expressão, até porque, como já se viu, o poder regulamentar é privativo do Poder Executivo. A inconstitucionalidade, portanto, seria patente.

Porém, a doutrina e a jurisprudência brasileiras, inspiradas pela produção do Tribunal Constitucional Federal alemão, têm desenvolvido e aplicado a diversos casos a chamada interpretação conforme a Constituição. Por este mecanismo, procura-se resguardar a validade de uma determina norma, excluindo-se expressamente a interpretação mais óbvia - que conduziria à sua inconstitucionalidade - e estabelecendo uma outra interpretação, que permita ao dispositivo ser aplicado em harmonia com o texto constitucional maior. Por esta técnica, é possível admitir a validade da expressão "poder regulamentar", desde que se entenda que o legislador quis referir-se a uma competência administrativa normativa. Vale dizer: fez referência à espécie - regulamento -, quando queria significar o gênero: ato administrativo normativo.

De fato, parece aceitável reconhecer-se ao Tribunal de Contas competência para editar atos normativos administrativos, como seu Regimento Interno, ou para baixar uma Resolução ou outros atos internos. Poderá, igualmente, expedir atos ordinatórios, como circulares, avisos, ordens de serviço. Nunca, porém, será legítima a produção de atos de efeitos externos geradores de direitos e obrigações para terceiros, notadamente quando dirigidos a órgãos constitucionais de outro Poder. Situa-se ao arrepio da Constituição, e foge inteiramente ao razoável, o exercício, pelo Tribunal de Contas, de uma indevida competência regulamentar, equiparada ao Executivo, ou mesmo, em alguns casos de abuso mais explícito, de uma competência legislativa, com inovações à ordem jurídica.

Tal é o caso, por exemplo, de Deliberação que estabeleça regras para contratação de empresas para prestação de serviços à Administração ou para terceirização. Não pode o Tribunal de Contas expedir regulamento autônomo, nem muito menos invadir esfera legislativa, impondo requisitos e vedações que não têm lastro em texto legal. Da mesma sorte, não há juridicidade em editar o Tribunal de Contas normatização sobre contratação temporária, estabelecendo critérios próprios, substituindo-se ao administrador e ao legislador.

O Supremo Tribunal de Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 828-5-RJ, fulminou, por inconstitucionais, pretensões normativas do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Assim é que considerou inválida a Deliberação nº 45, na qual se previa que a solução de consulta encaminhada ao Tribunal teria caráter normativo. Também já se pronunciou a invalidade da Resolução Normativa que, em estranhíssimo conteúdo, adiou, no Rio de Janeiro, a vigência da Emenda à Constituição Federal nº 1/92, que limitou a remuneração de deputados estaduais e vereadores.

Não bastassem os argumentos incontestáveis até aqui deduzidos, um outro fundamento evidencia a implausibilidade do exercício de poder regulamentar pelo Tribunal de Contas. É que, na hipótese de abuso de poder regulamentar pelo Executivo, a Constituição prevê expressamente o mecanismo de sanção: compete ao Legislativo "sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar". Não existe qualquer mecanismo constitucional destinado a neutralizar o abuso por parte do Tribunal de Contas. Como não há competência constitucional insuscetível de controle, a conclusão é que simplesmente não há a competência invocada pelo Tribunal de Contas.

Em síntese das idéias enunciadas neste tópico, é possível deixar assentado que a referência feita pela lei ao poder regulamentar do Tribunal de Contas somente será constitucional se interpretada no sentido de uma competência normativa limitada, consistente na ordenação interna de sua própria atuação. Não tem competência o Tribunal de Contas para editar atos normativos genéricos e abstratos, vinculativos para a Administração, nem muito menos para invadir esfera legislativa, estabelecendo direitos e obrigações não contemplados no ordenamento. (grifo nosso)

[...]

Também não é demais frisar que nenhuma penalidade deve ser criada por resolução ou instrução normativa sem que tenha amparo na Lei Complementar nº 202/00, neste sentido é o julgado do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. MULTA. CRIADA POR RESOLUÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DA PARAÍBA. FALTA DE PREVISÃO LEGAL. ILEGALIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DAS PENAS (ART. 5º, XXXIX, DA CF).

1 1. A Resolução nº 12/2001 do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, ao regulamentar o art. 56 da Lei Orgânica daquele órgão, extrapolou os limites aí estabelecidos, criando nova hipótese de incidência de multa, o que ofende, além da própria Lei Orgânica, o princípio constitucional da legalidade.

2. A ilegalidade manifesta-se na criação de nova hipótese típica, não prevista na lei, bem como pelo caráter automático da multa, que não permite a sua gradação, o que afronta o comando contido no §2º do art. 56 da referida Lei Orgânica.

3. Voto pelo provimento do recurso. (MS nº 15.577/PB, Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 17/06/2003, por unanimidade). (grifo nosso)

[...]

O STJ, no mesmo sentido, já averbou:

"Lei e Regulamento - Distinção - Poder Regulamentar - Ampliação.

É da nossa tradição constitucional admitir o regulamento apenas como ato normativo secundário subordinado à lei, não podendo expedir comando contra ou extra legem, mas tão-somente secundum legem" (Resp nº 3.667-SC, 1ª Turma, Rel. Min. Pedro Aciolik, 1990).

José dos Santos Carvalho Filho, em seu "Manual de Direito Administrativo", colabora com os entendimentos já esboçados:

"(...) Por via de conseqüência, não podem considerar-se legítimos os atos de mera regulamentação, seja qual for o nível da autoridade de onde se tenha originado, que, a pretexto de estabelecerem normas de complementação da lei, criam direitos e impõem obrigações aos indivíduos. Haverá, nessa hipótese, indevida interferência de agentes administrativos no âmbito da função legislativa, com flagrante ofensa ao princípio da separação de Poderes insculpido no art. 2º da CF. Por isso, de inegável acerto a afirmação de que só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos."

[...]

À vista de todo o exposto, e ainda, analisando a irregularidade ensejadora da imputação de débito no caso em tela, concluímos que a mesma, por ser fundamentada em norma administrativa que hierarquicamente é inferior à norma legal e não possui "força" para, sozinha, caracterizar a obrigação do Recorrente de ressarcir ao erário.

De qualquer forma, observa-se que o débito deve ser extinto, posto que o Recorrente trouxe aos autos, na peça recursal, os documentos dados como necessários pelo Corpo Técnico (fls. 47) para sanar a restrição em comento: declaração da vendedora Germer Porcelanas Finas S/A (fls. 06) e declaração da transportadora Expresso Joaçaba Ltda (fls. 07).

Assim sendo, os apontamentos trazidos à baila condizem com a situação ora analisada, fazendo com que se opine pelo cancelamento do débito, em virtude da sua imputação com fulcro em Resolução - norma incapaz de impor obrigação inédita, não definida em Lei.

IV. CONCLUSÃO

Ante o exposto, sugere-se ao Exmo. Relator do autos que em seu voto proponha ao Egrégio Plenário, o que segue:

6.1 Conhecer do Recurso de Reconsideração, nos termos do art. 77 da LCE nº 202/00, interposto contra o Acórdão nº 1967/03, exarado na Sessão Ordinária de 29/09/03, nos autos do Processo nº SPC 02/09549130, e, no mérito, dar-lhe provimento para:

6.1.1 anular a decisão recorrida;

6.2 Dar ciência deste Acórdão, do Relatório e Voto do Relator que o fundamentam, bem como do Parecer COG-181/07, à Secretaria de Estado de Estado da Fazenda, ao Centro Cultural de Joaçaba e ao Sr. David Mendes Ribas - Presidente do Centro Cultural de Joaçaba em 2001.

  MARCELO BROGNOLI DA COSTA

Consultor Geral