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TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
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Processo n°: |
REC - 03/03104317 |
Origem: |
Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC |
responsável: |
Raimundo Zumblick |
Assunto: |
Recurso (Reexame - art. 80 da LC 202/2000) -ARC-0230602/85 |
Parecer n° |
COG-297/07 |
Recurso de Reexame. Art. 80 da Lei Complementar nº 202/2000. Administrativo. Processo de Auditoria in loco de Registros Contábeis e Execução Orçamentária. Aplicação de multas. Conhecer e dar provimento parcial
Realização de despesas com ajuda de custo imotivada, da ordem de R$ 1.392,00 (NE n. 5341, de 17/12/1997), caracterizando desvio de finalidade e sem amparo legal, infringindo a Lei Estadual n. 6.745/85, art. 98, bem como a Constituição Estadual, art. 118, parágrafo único, II.
Em face de decisão prolatada pelo Tribunal Pleno, no julgamento do Processo nº CON-00/00683574, o pagamento de ajuda de custo aos servidores da extinta Fundação Educacional de Santa Catarina - FESC, relotados na UDESC, com base na Resolução nº 641/79 é tido por irregular, devendo ocorrer a sua cessação a partir de 19/03/2001.
Despesas comprovadas com documentos inábeis (NE ns. 2916, de 01/07/1997, e 4626, de 03/11/1997), contrariando o disposto nos arts. 58 e 59 da Resolução n. TC-16/94.
É da nossa tradição constitucional admitir o regulamento apenas como ato normativo secundário subordinado à lei, não podendo expedir comando contra ou extra legem, mas tão-somente secundum legem" (Resp nº 3.667-SC, 1ª Turma, Rel. Min. Pedro Aciolik, 1990).
Senhor Consultor,
RELATÓRIO
Tratam os autos de Recurso de Reexame interposto pelo Sr. Raimundo Zumblick, ex-Reitor da Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, em face do Acórdão n. 0022/2003, proferido nos autos do Processo n. ARC 0230602/85.
O citado Processo n. ARC 0230602/85 concerne à Auditoria Realizada, pela Diretoria de Controle da Administração Estadual - DCE, com alcance nos meses de janeiro a março de 1998, que abordou a verificação dos documentos comprobátorios da despesa efetuada no período, sendo esta de veracidade ideológica presumida, bem como, registros contábeis do período.
Levada a efeito a mencionada análise, a DCE procedeu o Relatório de Auditoria nº TCE/DCE/1º INSP./DIV.01/Nº 270/98 (fls. 21 à 28 dos autos de origem), no qual sugeriu a diligência com Ofício à Origem, para que a mesma possa pronunciar-se a respeito das restrições apontadas no referido Relatório.
Desta feita, o Sr. Raimundo Zumblick, na condição de responsável e de ex-Reitor da Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, compareceu aos autos, apresentando as informações que entendeu necessárias - (fls. 30 à 336 dos autos originários).
Em seqüência, os autos foram reexaminados pela DCE que elaborou o Relatório de Reinstrução TCE/DCE/INSP.1/DIV.01/N.º 250/2002 (fls. 338 à 343 dos autos originários).
Na Sessão Ordinária de 05/02/2003, o Processo n. ARC 0230602/85 foi levado à apreciação do Tribunal Pleno, sendo prolatado o Acórdão n. 0022/2003, portador da seguinte dicção:
6.1. Aplicar ao Sr. Raimundo Zumblick - Reitor da Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC em 1998, com fundamento nos arts. 70, II, da Lei Complementar n. 202/00 e 109, II, c/c o 307, V, do Regimento Interno instituído pela Resolução n. TC-06/2001, as multas abaixo discriminadas, com base nos limites previstos no art. 239, III, do Regimento Interno (Resolução n. TC-11/1991) vigente à época da ocorrência das irregularidades, fixando-lhe o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação deste Acórdão no Diário Oficial do Estado, para comprovar ao Tribunal o recolhimento ao Tesouro do Estado das multas cominadas, ou interpor recurso na forma da lei, sem o que, fica desde logo autorizado o encaminhamento da dívida para cobrança judicial, observado o disposto nos arts. 43, II, e 71 da Lei Complementar n. 202/2000:
6.1.1. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face da realização de despesas com ajuda de custo imotivada, da ordem de R$ 1.392,00 (NE n. 5341, de 17/12/1997), caracterizando desvio de finalidade e sem amparo legal, infringindo a Lei Estadual n. 6.745/85, art. 98, bem como a Constituição Estadual, art. 118, parágrafo único, II (item 2.2 do Relatório DCE);
6.1.2. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face de despesas comprovadas com documentos inábeis (NE ns. 2916, de 01/07/1997, e 4626, de 03/11/1997), contrariando o disposto nos arts. 58 e 59 da Resolução n. TC-16/94 (item 2.7 do Relatório DCE);
6.1.3. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face da ausência de autorização governamental para participação do curso de doutorado (NE n. 4032, de 25/09/1997), contrariando o que dispõe o art. 1°, §3°, do Decreto Estadual n. 1.170/96 (item 2.9 do Relatório DCE).
Com intuito de modificar o teor do decisum supratranscrito, o Sr. Raimundo Zumblick fez uso das vias recursais.
Esse é o Relatório.
II. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE
O Recorrente, ex-Reitor da Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina, na condição de apenado com multas no Processo n. ARC 0230602/85, possui plena legitimidade para pugnar pela reforma do referido pronunciamento.
Considerando que o Processo n. ARC 0230602/85 concerne à Auditoria Realizada, com alcance nos meses de janeiro a março de 1998, que abordou a verificação dos documentos comprobátorios da despesa efetuada no período, bem como registros contábeis do período, tem-se que o Sr. Raimundo Zumblick se utilizou da espécie recursal adequada, em consonância com o art. 80 da Lei Complementar nº 202/2000.
Tendo-se em conta que o Acórdão recorrido foi publicado no Diário Oficial do Estado em 13/05/2003 e a peça recursal em exame fora protocolizada neste Tribunal em 09/05/2003, foi devidamente observada a tempestividade necessária ao conhecimento do recurso.
Destarte, restaram devidamente preenchidas as condições legais de admissibilidade da Reconsideração em análise.
III. DISCUSSÃO
Tenciona o ora Recorrente o cancelamento das multas a ele impostas no itens 6.1.1, 6.1.2 e 6.1.3 do Acórdão 0022/2003, abaixo transcritas:
6.1.1. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face da realização de despesas com ajuda de custo imotivada, da ordem de R$ 1.392,00 (NE n. 5341, de 17/12/1997), caracterizando desvio de finalidade e sem amparo legal, infringindo a Lei Estadual n. 6.745/85, art. 98, bem como a Constituição Estadual, art. 118, parágrafo único, II (item 2.2 do Relatório DCE);
6.1.2. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face de despesas comprovadas com documentos inábeis (NE ns. 2916, de 01/07/1997, e 4626, de 03/11/1997), contrariando o disposto nos arts. 58 e 59 da Resolução n. TC-16/94 (item 2.7 do Relatório DCE);
6.1.3. R$ 400,00 (quatrocentos reais), em face da ausência de autorização governamental para participação do curso de doutorado (NE n. 4032, de 25/09/1997), contrariando o que dispõe o art. 1°, §3°, do Decreto Estadual n. 1.170/96 (item 2.9 do Relatório DCE).
Para tanto, em sua defesa, o Sr. Raimundo Zumblick alega, em síntese:
Item 6.1.1:
"[...]
No que tange as despesas com ajuda de custos imotivada, esta foi objeto de restrição por esta Corte de Contas em vários processos que tramitam no Tribunal, e já foi provado que o gestor atual da UDESC, ou seja, este que está sendo penalizado com as multas que não foi seu instituidor, nem é de praxe que quando um Reitor novo assuma os destinos da Universidade faça uma auditoria nos benefícios que já vem sendo pagos aos servidores, até porque, se houvesse algum ilegal na gestão anterior este seria apontado nas auditorias do Tribunal.
Em momento algum das gestões anteriores estes benefícios apontados como ilegais, no entanto a partir do momento em que foram apontados, o gestor atual está sendo penalizado com multas de R$ 400,00 (quatrocentos reais) em cada processo que trata da mesma matéria e mais, o tal benefício, assim que foi apontado como irregular, o gestor imediatamente ordenou sua suspensão."(sic)
No tocante à multa pelo pagamento de ajuda de custo sem amparo legal, em descumprimento ao art. 98 da Lei Estadual 6.745/85, há que se registrar que em processo semelhante (REC 02/09629916) o Tribunal entendeu por não aplicar a referida multa.
Em verdade foi a Consultoria Geral que ao analisar os autos do Recurso 02/09629916, exarou o parecer nº COG-85/03 de 19/02/2003, concluindo que as despesas com ajuda de custo eram irregulares à luz da legislação estadual, motivo pelo qual sugeriu a cessação dos pagamentos a partir da decisão, ou seja, a partir de 19/03/2001, impossibilitando a responsabilização do ordenador primário pelos pagamentos antes desta data, senão vejamos ad litteram:
EMENTA. Pagamento de ajuda de custo aos servidores da extinta Fundação Educacional de Santa Catarina - FESC relotados na UDESC, com base na Resolução nº 641/79, do Conselho de Política Financeira. Impossibilidade. Recurso de Revisão. Provimento.
Em face de decisão prolatada pelo Tribunal Pleno, no julgamento do Processo nº CON-00/00683574, o pagamento de ajuda de custo aos servidores da extinta Fundação Educacional de Santa Catarina - FESC, relotados na UDESC, com base na Resolução nº 641/79 é tido por irregular, devendo ocorrer a sua cessação a partir de 19/03/2001. Impossibilidade de responsabilização do Ordenador Primário da despesa pelos pagamentos efetuados anteriormente a esta data. (g.n.)
(Processo n. REC - 02/09629916 - Decisão n. 1116/2003 - Conselheiro Relator Evângelo Spyros Diamantaras)
O parecer supra fora acatado pelo Pleno desta Casa através da Decisão n. 1116/2003, que acabou por cancelar o débito referente às despesas com ajuda de custo, em razão destas terem sido pagas antes de 19/03/2001.
Considerando tal precedente, afasta-se a responsabilização do ordenador primário, considerando que as despesas apontadas no processo original foram realizadas de janeiro a março de 1998, antes da data determinada para cessação de tais pagamentos (19/03/2001).
Neste sentido, apesar desta Consultoria considerar que tais despesas são irregulares, restou determinado, através da decisão exarada no processo REC 02/09629916 que tais pagamentos só seriam passíveis de responsabilização após 19/03/2001, ou seja, após a decisão do Tribunal sobre o assunto, motivo pelo qual afasta-se a penalização imposta ao Recorrente.
Desta feita, sugere-se cancelar a multa aplicada no item 6.1.1 da decisão de nº 002/2003.
Item 6.1.2:
"[...]
O fato de ter havido pagamentos com documentos inábeis (recibo ao invés de Nota fiscal) não aponta má-fé do servidor que praticou o ato, já que os impostos relativos são recolhidos, não causando dano ao erário da Universidade, da União, do Estado ou da Prefeitura, desta forma podendo se considerar a restrição como falha forma e não infração grave sujeita a multa.
No que tange a multa, conforme o art. 112 do Regimento Interno do TC, esta recairá na pessoa física que deu causa ao evento. No entanto se forem observados os vencimentos daquela categoria em que enquadra o multado, que no caso da UDESC é de R$ 612,88 (seiscentos e doze reais e oitenta e oito centavos), o valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), representa 65% (sessenta e cinco por cento) do vencimento médio do servidor."
A matéria acima já fora analisada em processo semelhante (autos nº REC- 03/03038853), nos termos do percuciente Parecer COG nº 100/07, da lavra da Parecerista Anne Christine Brasil Costa, do qual extraímos as lições abaixo transcritas:
Analisando as alegações esboçadas pelo Recorrente, constata-se que lhe assiste razão. Vejamos os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o assunto:
"(...) O próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.
São visíveis, pois, a natural inadequação e os imensos riscos que adviriam para os objetivos essenciais do Estado de Direito - sobreposse, repita-se, em um país ainda pouco afeito a costumes políticos mais evoluídos - de um poder regulamentar que pudesse definir, por força própria, direitos ou obrigações de fazer ou não fazer imponíveis ao administrados.
Resoluções, instruções e portarias
Tudo quanto se disse a respeito do regulamento e de seus limites aplica-se, ainda com maior razão, a instruções, portarias, resoluções, regimentos ou quaisquer outros atos gerais do Executivo. É que, na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao próprio regulamento. Enquanto este é ato do Chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de escalão mais baixo e, de conseguinte, investidas de poderes menores.
Tratando-se de atos subalternos e expedidos, portanto, por autoridades subalternas, por via deles o Executivo não pode exprimir poderes mais dilatados que os suscetíveis de expedição mediante regulamento.
Assim, toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, resoluções, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los implica inconstitucionalidade. A regra geral contida no art. 68 da Carta Magna, da qual é procedente inferir vedação a delegação ostensiva ou disfarçada de poderes legislativos ao Executivo, incide e com maior evidência quando a delegação se faz em prol de entidades ou órgãos administrativos sediados em posição jurídica inferior à do Presidente e que se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor.
Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o Chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, mesmo ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta."
No artigo entitulado "Poder Regulamentar ante o Princípio da Legalidade" (publ. na RTDP nº 4, 1993), o mestre Celso Bandeira de Mello, ainda acrescenta:
"(...) São inconstitucionais as disposições regulamentares produzidas na conformidade de delegações disfarçadas, resultantes de leis que meramente transferem ao Executivo o encargo de disciplinar o exercício da liberdade e da propriedade da pessoas."
Torna-se, nesse contexto, oportuna a transcrição de trechos da Informação nº COG-172/05, da lavra da Auditora Fiscal Walkíria Maciel, emitida nos autos do Processo nº REC-04/01498034 que, com muita propriedade, analisou situação análoga:
Em distinto artigo, Luís Roberto Barroso, no texto abaixo transcrito, faz uma importante análise acerca do exercício do poder regulamentar pelo Tribunal de Contas, a partir de uma acepção constitucional:
Convém, a próposito deste tópico, traçar algumas distinções essenciais entre lei, regulamento e atos administrativos inferiores. Com a ascensão da ideologia liberal e a consagração da separação de Poderes, os Estados democráticos, há mais de duzentos anos, se organizam atribuindo as funções estatais de legislar, administrar e julgar a órgãos diversos. Como corolário de tal ordenação de Poderes, é nota essencial desta modalidade de Estado a submissão de todas as atividades dos cidadãos e dos órgãos públicos a normas gerais preexistentes. Tal peculiariade recebe a designação de princípio da legalidade.
O tema abriga complexidades e sutilezas que envolvem conceitos como os de preferência da lei e reserva da lei, e, dentro desta última, a reserva absoluta e relativa, e a reserva de lei formal e de lei material. Não será necessário tal aprofundamento para os fins do raciocínio aqui desenvolvido. Basta que se assinale que o princípio da legalidade, na sua aplicação aos particulares, traduz-se em que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", na locução clássica reproduzida no inciso II do art. 5º da Carta de 1988. Inversamente, no que toca à Administração Pública, seus órgãos e agentes, o princípio tem significado simétrico: só se pode fazer aquilo que a lei autoriza ou determina. A nova Constituição também abrigou a regra (art. 37, caput).
Pois é de tal circunstância que decorre a distinção fundamental, ao ângulo material, entre a lei e o regulamento. Um e outro, é certo, são atos normativos, de caráter geral e impessoal. Mas somente a lei - e não o regulamento - pode inovar na ordem jurídica, modificando situação preexistente. Sempre a lei, e jamais o regulamento, será a via legítima de se criarem obrigações para os particulares. A doutrina é indiscrepante na matéria. A faculdade regulamentar, lembra Sergio Ferraz, longe de infirmar o princípio da separação dos Poderes, antes o confirma: o regulamento é uma das princípais formas de manifestação da atuação administrativa, e não poderá contrariar a lei formal.
O conceito de poder regulamentar foi expresso, com a clareza habitual, pelo saudoso professor Hely Lopes Meirelles:
"O poder regulamentar é a faculdade de que dispõem os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) de explicar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre a matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei. É um poder inerente e privativo do Chefe do Executivo (CF, art. 84, IV)."
No mesmo sentido veja-se a lição do professor Caio Tácito, expondo, de forma didática, os diferentes níveis de atuação normativa do Estado:
"A capacidade ordinária do Estado se manifesta por meio de círculos concêntricos que vão, sucessivamente, da Constituição à lei material e formal, isto é, aquela elaborada pelos órgãos legislativos; desce aos regulamentos por meio dos quais o Presidente da República complementa e particulariza as leis; e, finalmente, aos atos administrativos gerais, originários das várias escalas de competência administrativa."
Como se constata, singelamente, não é controvertido, em doutrina, que o poder regulamentar é privativo do Chefe do Executivo. A única polêmica que existe na matéria é sobre a existência ou não de regulamentos autônomos, ao lado dos regulamentos de execução, generalizadamente admitidos. Estes últimos têm seu fundamento constitucional no art. 84, IV, ao passo que os primeiros legitimar-se-iam nos incisos II e VI do mesmo artigo. A discussão não é importante para os fins aqui visados.
À vista da clareza da dicção constitucional, bem como da univocidade da doutrina quanto à competência privativa do Chefe do Executivo para exercer o poder regulamentar, coloca-se a questão da validade da norma do inciso I, do art. 4º, da Lei Complementar 63, de 1º de agosto de 1990, do Estado do Rio de Janeiro - a chamada Lei Orgânica do Tribunal de Contas -, onde se lê:
"Art. 4º Compete, ainda, ao Tribunal de Contas:
I - exercer o poder regulamentar, podendo, em conseqüência, expedir atos e instruções normativas sobre a aplicação de leis pertinentes a matéria de suas atribuições e organização dos processos que lhe devam ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento, sob pena de responsabilidade."
É de grande interesse assinalar, desde logo, que a regra acima transcrita foge do modelo da lei federal, que não faz menção a atos e instruções "sobre a aplicação de leis pertinentes a matéria de suas atribuições", utilizando tão-somente a locução "atos e instruções normativas sobre matéria de suas atribuições." Vale dizer: o que vai ser regulamentado não são as leis - porque jamais poderia caber ao Tribunal de Contas fazê-lo - mas apenas as matérias que a lei já lhes atribuiu. Confira-se o texto federal, extraído do art. 3º da Lei 8.443, de 16 de julho de 1992:
"Art. 3º Ao Tribunal de Contas da União, no âmbito de sua competência e jurisdição, assiste o poder regulamentar; podendo, em conseqüência, expedir atos e instruções normativas sobre matéria de suas atribuições e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento, sob pena de responsabilidade."
De todo modo, embora a diferença assinalada acima não seja de pouca relevância, o problema é com as palavras "poder regulamentar", presentes em ambos os textos. Entendida no seu sentido mais óbvio, a expressão é evidentemente inconstitucional. De fato, do longo elenco de competências atribuídas ao Tribunal de Contas, constante dos onze incisos do art. 71, da Constituição, não consta a referida expressão, até porque, como já se viu, o poder regulamentar é privativo do Poder Executivo. A inconstitucionalidade, portanto, seria patente.
Porém, a doutrina e a jurisprudência brasileiras, inspiradas pela produção do Tribunal Constitucional Federal alemão, têm desenvolvido e aplicado a diversos casos a chamada interpretação conforme a Constituição. Por este mecanismo, procura-se resguardar a validade de uma determina norma, excluindo-se expressamente a interpretação mais óbvia - que conduziria à sua inconstitucionalidade - e estabelecendo uma outra interpretação, que permita ao dispositivo ser aplicado em harmonia com o texto constitucional maior. Por esta técnica, é possível admitir a validade da expressão "poder regulamentar", desde que se entenda que o legislador quis referir-se a uma competência administrativa normativa. Vale dizer: fez referência à espécie - regulamento -, quando queria significar o gênero: ato administrativo normativo.
De fato, parece aceitável reconhecer-se ao Tribunal de Contas competência para editar atos normativos administrativos, como seu Regimento Interno, ou para baixar uma Resolução ou outros atos internos. Poderá, igualmente, expedir atos ordinatórios, como circulares, avisos, ordens de serviço. Nunca, porém, será legítima a produção de atos de efeitos externos geradores de direitos e obrigações para terceiros, notadamente quando dirigidos a órgãos constitucionais de outro Poder. Situa-se ao arrepio da Constituição, e foge inteiramente ao razoável, o exercício, pelo Tribunal de Contas, de uma indevida competência regulamentar, equiparada ao Executivo, ou mesmo, em alguns casos de abuso mais explícito, de uma competência legislativa, com inovações à ordem jurídica.
Tal é o caso, por exemplo, de Deliberação que estabeleça regras para contratação de empresas para prestação de serviços à Administração ou para terceirização. Não pode o Tribunal de Contas expedir regulamento autônomo, nem muito menos invadir esfera legislativa, impondo requisitos e vedações que não têm lastro em texto legal. Da mesma sorte, não há juridicidade em editar o Tribunal de Contas normatização sobre contratação temporária, estabelecendo critérios próprios, substituindo-se ao administrador e ao legislador.
O Supremo Tribunal de Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 828-5-RJ, fulminou, por insconstitucionais, pretensões normativas do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Assim é que considerou inválida a Deliberação nº 45, na qual se previa que a solução de consulta encaminhada ao Tribunal teria caráter normativo. Também já se pronunciou a invalidade da Resolução Normativa que, em estranhíssimo conteúdo, adiou, no Rio de Janeiro, a vigência da Emenda à Constituição Federal nº 1/92, que limitou a remuneração de deputados estaduais e vereadores.
Não bastassem os argumentos incontestáveis até aqui deduzidos, um outro fundamento evidencia a implausibilidade do exercício de poder regulamentar pelo Tribunal de Contas. É que, na hipótese de abuso de poder regulamentar pelo Executivo, a Constituição provê expressamente o mecanismo de sanção: compete ao Legislativo "sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar". Não existe qualquer mecanismo constitucional destinado a neutralizar o abuso por parte do Tribunal de Contas. Como não há competência constitucional insuscetível de controle, a conclusão é que simplesmente não há a competência invocada pelo Tribunal de Contas.
Em síntese das idéias enunciadas neste tópico, é possível deixar assentado que a referência feita pela lei ao poder regulamentar do Tribunal de Contas somente será constitucional se interpretada no sentido de uma competência normativa limitada, consistente na ordenação interna de sua própria atuação. Não tem competência o Tribunal de Contas para editar atos normativos genéricos e abstratos, vinculativos para a Administração, nem muito menos para invadir esfera legislativa, estabelecendo direitos e obrigações não contemplados no ordenamento. (grifo nosso)
Também não é demais frisar que nenhuma penalidade deve ser criada por resolução ou instrução normativa sem que tenha amparo na Lei Complementar nº 202/00, neste sentido é o julgado do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. MULTA. CRIADA POR RESOLUÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DA PARAÍBA. FALTA DE PREVISÃO LEGAL. ILEGALIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DAS PENAS (ART. 5º, XXXIX, DA CF).
1 1. A Resolução nº 12/2001 do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, ao regulamentar o art. 56 da Lei Orgânica daquele órgão, extrapolou os limites aí estabelecidos, criando nova hipótese de incidência de multa, o que ofende, além da própria Lei Orgânica, o princípio constitucional da legalidade.
2. A ilegalidade manifesta-se na criação de nova hipótese típica, não prevista na lei, bem como pelo caráter automático da multa, que não permite a sua gradação, o que afronta o comando contido no §2º do art. 56 da referida Lei Orgânica.
3. Voto pelo provimento do recurso. (MS nº 15.577/PB, Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 17/06/2003, por unanimidade). (grifo nosso)
No tocante ao Recurso Extraordinário nº 190.985-4, mencionado no ofício, em nada choca-se com o posicionamento desta Consultoria, ao contrário em muitos aspectos o afirma, como por exemplo, a amplitude do termo dano ao erário, a existência de um poder de polícia dos Tribunais de Contas, a distinção entre multa-sanção e coerção, etc.
Portanto, o entendimento esboçado sequer teve o condão de negar o poder regulamentar desta Corte de Contas, apenas o interpreta à luz dos princípios gerais que norteiam o Direito Administrativo, sobretudo, das Constituições federal e estadual, e da própria Lei Complementar nº 202/00.
Hely Lopes Meirelles, em sua obra "Direito Administrativo Brasileiro", nos traz a seguinte lição acerca dos denominados "atos normativos":
"Atos administrativos normativos são aqueles que contêm um comando geral do Executivo, visando à correta aplicação da lei. O objetivo imediato de tais atos é explicitar a norma legal a ser observada pela Administração e pelos administrados. Esses atos expressam em minúcia o mandamento abstrato da lei, e o fazem com a mesma normatividade da regra legislativa, embora sejam manifestações tipicamente administrativas. A essa categoria pertencem os decretos regulamentares e os regimentos, bem como as resoluções, deliberações e portarias de conteúdo geral.
Tais atos, conquanto normalmente estabeleçam regras gerais e abstratas de conduta, não são leis em sentido formal. São leis apenas em sentido material, vale dizer, provimentos executivos com conteúdo de lei, com matéria de lei. Esses atos, por serem gerais e abstratos, têm a mesma normatividade da lei e a ela se erquiparam para fins de controle judicial, mas, quando, sob a aparência de norma, individualizam situações e impõem encargos específicos a administrados, são considerados de efeitos concretos e podem ser atacados e invalidados direta e imediatamente por via judicial comum, ou por mandado de segurança, se lesivos de direito individual líquido e certo." (grifo nosso)
Na mesma seara, Edmir Netto de Araújo, em seu livro "Curso de Direito Administrativo", traça os seguintes comentários:
"(...) No aspecto formal, em uma escala gradativa de imperatividade ou cogência para a Administração e para a coletividade em geral, o Direito Administrativo tem como fonte por excelência a lei formal, que em seu sentido mais amplo abrange a Constituição, Emendas constitucionais, Leis Orgânicas municipais, Leis complementares, Leis Delegadas e Leis ordinárias. Sem esquecermos, entretanto, as Medidas Provisórias, que como lei se qualificam, enquanto vigentes.
Ressalta-se a importância desse tipo de fonte, ao constatar-se que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, II, declara que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o que, para o Poder Público, significa fazer apenas o que a lei determina ou autoriza (princípio da restritividade).
Seguem-se, nessa gradação, as norma jurídicas administrativas que não são leis formais, tais como os decretos gerais e regulamentares, decretos legislativos, provimentos dos Tribunais, despachos normativos, resoluções, portarias e outros atos administrativos dotados dos atributos de imperatividade, presunção de legitimidade e auto-executoriedade, cada qual com aplicabilidade restrita à sua esfera político-jurídica, e aos administrados que se enquadrem nas respectivas hipóteses normativas.
O princípio da legalidade nos termos do art. 5º, II, da Carta Magna, significa, para os particulares, que estes poderão fazer tudo o que a lei não proíbe, e que só a lei poderá obrigá-los a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
Já o seu correspondente para o Poder Público, mencionado no srt. 37, significa que o agente público, as autoridades, a Administração, enfim, só poderão fazer o que a lei determina ou permite expressamente, devendo agir de acordo com a lei e o interesse público, não podendo prevalecer frente a este decisões e interesses individuais. Este desdobramento do princípio da legalidade é conhecido, em Direito Administrativo, como princípio da legalidade estrita, ou princípio da restritividade: as leis administrativas são de ordem pública, contendo "poderes-deveres" irrelegáveis pelos agentes públicos, que não as podem, portanto, descumprir.
A ilegalidade pode ser explícita ou considerada em sentido amplo, como nos casos de desvio, abuso ou excesso de poder: tudo se reflete sobre a legalidade ocasionando a nulidade do ato da Administração, e deflagrando as respectivas responsabilidades do Estado, de suas atividades e de seus agentes.
Na verdade, o princípio da legalidade estrita significa que a Administração não pode inovar na ordem jurídica por simples atos administrativos, não pode conceder direitos, criar obrigações, impor vedações, compelir comportamentos: para tudo isso, e em outras hipóteses, é necessário o respaldo da lei, e mesmo que em certos casos a atividade administrativa pareça realizar-se sem essa particularidade, só será legítima se houver lastro em determinação ou autorização legal.
O STJ, no mesmo sentido, já averbou:
"Lei e Regulamento - Distinção - Poder Regulamentar - Ampliação.
É da nossa tradição constitucional admitir o regulamento apenas como ato normativo secundário subordinado à lei, não podendo expedir comando contra ou extra legem, mas tão-somente secundum legem" (Resp nº 3.667-SC, 1ª Turma, Rel. Min. Pedro Aciolik, 1990).
Diante do exposto, conclui-se pelo cancelamento do item em questão, tendo em vista que a irregularidade ensejadora da aplicação de multa fora fundamentada em norma administrativa, qual seja, a Resolução n. TC-16/94, a qual não pode caracterizar sozinha a penalização do Recorrente.
Item 6.1.3:
No que se refere a ausência de autorização governamental para participação em curso de doutorado (NE nº 4032, de 25/09/97 - R$ 12.854,40), contrariando o que dispõe o artigo 1º, § 3º, do Decreto Estadual nº 1.170/96, o Sr. Raimundo Zumblick nada declarou, sugerindo-se assim manter a sanção pecuniária.
IV. CONCLUSÃO
Ante o exposto, sugere-se ao Exmo. Relator que em seu voto propugne ao Egrégio Plenário o que segue:
1) Conhecer do Recurso de Reexame proposto nos termos do art. 80 da Lei Complementar nº 202/2000, contra o Acórdão 0022/2003 proferido no Processo ARC 0230602/85, na sessão do dia 05 de fevereiro de 2003, e, no mérito, dar-lhe provimento parcial para cancelar as multas aplicadas nos itens 6.1.1 e 6.1.2 da decisão recorrida.
2) Manter os demais itens da decisão recorrida.
3) Dar ciência do Parecer e Voto do Relator que fundamentam a presente decisão ao Sr.Raimundo Zumblick, bem como a Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC.
De Acordo. Em ____/____/____
À consideração do Exmo. Sr. Evângelo Spyros Diamantaras, ouvido preliminarmente o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas.
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MARCELO BROGNOLI DA COSTA Consultor Geral |