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TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
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Processo n°: |
CON - 09/00154365 |
Origem: |
Câmara Municipal de Major Vieira |
Interessado: |
Helio Schroeder |
Assunto: |
Consulta |
Parecer n° |
COG-218/09 |
Lei Orgânica Municipal. Vantagens pecuniárias. Servidor. Concessão.
A concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos municipais deve se dar mediante lei específica, respeitada a iniciativa privativa em cada caso.
Lei Orgânica Municipal. Matéria de lei ordinária.
À Lei Orgânica Municipal é indevido o trato de matéria própria de lei ordinária, como a concessão de vantagem pecuniária a servidor público, por afastar do Poder Executivo a possibilidade de vetar, sancionar e promulgar atos normativos dessa natureza.
Senhora Consultora,
O Presidente da Câmara de Vereadores de Major Vieira, Vereador Hélio Schroeder, vem por meio de expediente recepcionado nesta Corte de Contas em 27 de março de 2009 e autuado em 07 de abril do corrente ano, formular consulta vazada nos seguintes termos:
A Lei Complementar nº 017 de 28 de junho de 2007 aprovou o estatuto dos funcionários públicos municipais e revogou a Lei Complementar nº 980/1993 (antigo estatuto). Ocorre que, no novo Estatuto, inexistem dispositivos que permitam o pagamento de adicionais por tempo de serviço, bem como a concessão de licença-prêmio, aos servidores públicos municipais.
Porém, esses direitos dos servidores municipais estão inseridos na Lei Orgânica do Município. Vejamos:
"Art. 18 ...
(...)
§ 2º Aplicam-se aos servidores municipais os direitos seguintes:
(...)
XIV- concessão de adicional por tempo de serviço a base de 6% (seis porcento) sobre o vencimento por triênio de serviços prestados ao município, incorporando-se o adicional nos proventos, quando da aposentadoria do funcionário."
O artigo 20, § 4º, estabelece o seguinte:
Art. 20 (...)
§ 4º - Após cada decênio de efetivo exercício no serviço público municipal, dará ao servidor sob regime estatutário e a outros de regime diferente, se definido em lei, direito a férias prêmio correspondente a seis meses, com todos os direitos e vantagens do seu cargo.
Solicitamos então a manifestação do Tribunal de Contas, na seguinte consulta:
É legal o pagamento pelo Poder Público Municipal, aos seus funcionários, do adicional referido no artigo 18, § 2º, XIV, bem como a concessão de licença-prêmio prevista no artigo 20, § 4º, ambos os dispositivos inseridos na Lei Orgânica?
II. REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
Para o conhecimento de consulta encaminhada ao Tribunal de Contas nos termos do artigo 59, XII, da Constituição do Estado de Santa Catarina, necessário se faz o atendimento das seguintes formalidades regimentais:
Art. 104. A consulta deverá revestir-se das seguintes formalidades:
I- referir-se à matéria de competência do Tribunal;
II- versar sobre interpretação de lei ou questão formulada em tese;
III- ser subscrita por autoridade competente;
IV- conter indicação precisa da dúvida ou controvérsia suscitada;
V- ser instruída com parecer da assessoria jurídica do órgão consulente, se existente.
2.1 Da legitimidade em razão da matéria
A peça indagativa trazida ao apreço deste Tribunal de Contas versa sobre direitos dos servidores municipais de Major Vieira, os quais implicam na assunção de despesa municipal pelo Município, seja em razão do desembolso para o pagamento de adicional por tempo de serviço, ou motivada pela concessão de licença-prêmio, esta na ótica do pagamento sem a efetiva contraprestação de serviço, dado o afastamento autorizado, a título de prêmio ao servidor que cumpre as condições legais para o seu desfrute.
No mais, os adicionais por tempo de serviço integram de forma definitiva a remuneração do servidor, compondo inclusive seus proventos, cujos cálculos são parte integrante do ato aposentatório, portanto, matéria considerada quando do exame para fins de registro da aposentadoria do servidor.
Assim, resta evidente que a matéria se inclui na área de competência do Tribunal de Contas, de modo a satisfazer o critério firmado no inciso I do artigo 104 da Res. nº TC-06/01.
2.2 Do objeto da consulta
A consulta envolve estudo da legislação municipal de Major Vieira, mais precisamente do laconismo do Estatuto dos Servidores Públicos Municipais frente à dicção da Lei Orgânica, no que concerne aos direitos ao adicional por tempo de serviço e à licença-prêmio.
Nessa senda, cinge-se à interpretação legal, no que se ajusta ao comando estabelecido no inciso II do artigo 104 da Res. nº TC-06/01.
2.3 Da legitimidade do consulente
O consulente, na condição de Presidente do Poder Legislativo Municipal de Major Vieira, está legitimado à subscrição de consultas para este Tribunal de Contas, conforme os termos do artigo 103, II, da Res. nº TC-06/01, cumprindo, destarte, o requisito inserto no inciso III do artigo 104 do mesmo diploma regimental.
2.4 Indicação precisa da dúvida ou controvérsia
Frente ao contexto posto pelo consulente, que decorre da omissão de previsão de certos direitos no Estatuto de Servidores Públicos Municipais e a previsão dos mesmos na Lei Orgânica Municipal, a questão formulada se dá de forma clara e objetiva, permitindo bem precisar a dúvida que lhe aflige.
Dada a inteligibilidade da consulta resta satisfeito o requisito posto no inciso IV do artigo 104 da Res. nº TC-06/01.
2.5 Do parecer jurídico do órgão consulente
A consulta não se faz acompanhada de parecer jurídico do órgão consulente, desatendendo o que dispõe o artigo 104, V, da Res. nº TC-06/01.
Conforme o disposto no § 2º do artigo 105 da Res. nº TC-06/01, o Tribunal Pleno poderá conhecer de consulta que não preenche os pressupostos de admissibilidade relativos à precisão da dúvida ou controvérsia suscitada, bem como não se fizer acompanhada de parecer do órgão consulente.
Como a preliminar não é absoluta, mas relativa, mister se faz que o egrégio Plenário supere a falta do parecer do órgão consulente para o conhecimento da presente consulta.
2.6 Exame das preliminares para o conhecimento
Da verificação supra, atinente aos pressupostos para conhecimento da consulta formulado pelo Presidente da Câmara Municipal de Major Vieira, Vereador Hélio Schroeder, tem-se como desatendido exclusivamente o inciso V do artigo 104 da Res. nº TC-06/01, o qual, por se tratar de impediente relativo, dada a possibilidade de vir a ser superado a pelo Tribunal Pleno, permite que se adentre no mérito do que fora indagado.
III. DISCUSSÃO
Conforme noticia o consulente, o novo Estatuto dos Servidores Públicos Municipais de Major Vieira restou silente quanto aos direitos inerentes ao adicional por tempo de serviço e à licença-prêmio.
Pelo relato pode-se inferir que o antigo Estatuto expressava tais direitos reprisando previsão assentada na Lei Orgânica Municipal.
Para a solução da questão se faz necessário averiguar a matéria apropriada a ser regulada em Lei Orgânica, bem como a relação entre as normas, atentando para os critérios da hierárquia e da especialidade, envolvendo, no presente caso, a Lei Orgânica Municipal e a Lei Complementar que institui o Estatuto dos Servidores Municipais de Major Vieira.
Para iniciar o presente exame relacional entre as indigitadas normas municipais mister comentar algo acerca da Lei Orgânica Municipal, seu status e função normativa no seio do Município.
A possibilidade de o Município editar sua Lei Orgânica é corolário da autonomia municipal deferida pela Constituição da República de 1988, da qual decorrem, conforme José Afonso da Silva, quatro capacidades:
a) capacidade de auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria;
b) capacidade de autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais;
c) capacidade normativa própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de elaboração de leis municipais sobre as áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar;
d) capacidade de auto-administração (administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local).1
O mesmo autor define a Lei Orgânica e comenta o seu conteúdo, nos seguintes termos:
Em que consiste a Lei Orgânica própria? Qual o seu conteúdo? Ela é uma espécie de constituição municipal. Cuidará de discriminar a matéria de competência exclusiva do Município, observadas as peculiaridades locais, bem como a competência comum a que a Constituição lhe reserva juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal (art. 23). Indicará dentre a matéria de sua competência, aquela que lhe cabe legislar com exclusividade e a que lhe seja reservado legislar supletivamente. A própria Constituição já indicou o conteúdo básico da Lei Orgânica, que deverá ter que compreender, além das regras de eletividade do Prefeito e dos Vereadores, normas sobre (art. 29): (a) a pose do Prefeito e dos Vereadores e seus compromissos; (b) inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, na circunscrição do Município; (c) proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto na Constituição Federal para os membros do Congresso Nacional e, na Constituição do respectivo Estado, para os membros da Assembléia Legislativa; (d) organização das funções legislativa e fiscalizadora da Câmara Municipal; (e) cooperação das associações representativas de bairro com o planejamento municipal; (f) iniciativa legislativa popular sobre matéria de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através da manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado; (g) perda do mandato do Prefeito, incluindo como uma de suas causas o fato de ele assumir outro cargo ou função na administração pública direta ou indireta, ressalvada a posse em virtude de concurso público e observado o disposto no art. 38, I, IV e V.2
José Nilo de Castro, por sua vez, ao destacar o processo legislativo peculiar à Lei Orgânica Municipal, afirma que dele decorre uma série de avanços inconstitucionais nas matérias nela assentadas pelo legislador local. Eis seu comentário:
É uma lei, em sentido formal e material, de cuja feitura não participa o Executivo, que em nosso ordenamento jurídico-constitucional, possui funções co-legislativas, conforme se verá oportunamente. O Executivo apenas poderá propor emendas à Lei Orgânica, sozinho; exercita-se aí apenas o poder de impulsão, na iniciativa da emenda à Lei Orgânica (art. 29, caput, CF). O entusiasmo - compreensível - exagerado com que as Câmaras Municipais receberam o poder de votar e promulgar as Leis Orgânicas de seus Municípios é que justificaria as incursões inconstitucionais de muitas Leis Orgânicas que se tem encontrado aqui e alhures. Ao contrário do que se vê, o Município, no seu poder auto-organizatório, tem limites constitucionais bem explícitos, de que cogita o art. 29, caput, da CR. É dizer: o Município organiza-se e rege-se por sua Lei Orgânica e demais leis que adotar, mas para atingir tal desiderato há que observar os princípios da Constituição da República e os da Constituição do respectivo Estado. É autônomo o Município nos termos da Constituição; e autonomia não significa apropriação de liberdade ilimitada no e para dispor normativa e organizacionalmente sobre os poderes municipais. Há que se respeitar a fonte única dos poderes: a Constituição da República.3
Tendo por premissa que a remuneração dos servidores públicos somente poderá ser fixada ou alterada mediante lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, conforme os termos do artigo 37, X, da Constituição Federal, e por haver na elaboração da Lei Orgânica a participação exclusiva do Poder Legislativo, José Nilo de Castro alerta para a impropriedade de se inserir no texto de Lei Orgânica matéria afeta à implementação de vantagens para os servidores públicos. Há, segundo ele, nítido desrespeito à autonomia dos Poderes, haja vista o alijamento do poder Executivo na construção normativa, sendo inapta a Lei Orgânica para instituir vantagem remuneratória aos servidores. São estas as palavras do doutrinador:
Nessa linha de direção são inconstitucionais, v. g., dispositivos de Lei Orgânica que dispõem sobre aumento de despesa pública, sobre criação de órgãos ou entidades municipais, sobre criação de vantagens pecuniárias do funcionalismo municipal, como a licença-prêmio, quinquênio, biênio ou anuênio, sobre vinculação de remuneração de seu pessoal municipal a índices oficiais do Governo Federal. Pois bem: toda a matéria de aumento de despesa pública, direta ou indiretamente, prevista em Lei Orgânica, não se compadece de nosso constitucionalismo.4
No mesmo sentido Hely Lopes Meirelles assere que:
Anote-se, finalmente, que o Poder Legislativo Municipal não pode, a pretexto de elaborar a lei orgânica - processo legislativo excepcional destinado a dar estrutura e organização ao Município -, dispor sobre matéria de lei ordinária, com o intuito de arredar a participação do Executivo, subtraindo-lhe o direito de vetar, sancionar e promulgar atos normativos dessa natureza.5
Pode-se aplicar às Leis Orgânicas Municipais a mesma tipologia adotada para a classificação das Constituições. Quanto à sua extensão e finalidade Alexandre de Moraes distingue as constituições analíticas (dirigentes) e sintéticas (negativas, garantias), explicando:
As constituições sintéticas prevêem somente os princípios e as normas gerais de regência do Estado, organizando-o e delimitando seu poder, por meio da estipulação de direitos e garantias fundamentais (por exemplo: Constituição Norte-americana); diferentemente das constituições analíticas que examinam e regulamentam todos os assuntos que entendem relevantes à formação, destinação e funcionamento do Estado (por exemplo, Constituição brasileira de 1988).6
Embora analítica, a Constituição Federal de 1988, no que tange aos direitos dos servidores institui um verdadeiro sistema remuneratório aplicável à Administração direta e indireta dos três Poderes da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios. Suas disposições se impõem como princípios a nortearem o disciplinamento infraconstitucional pelos entes federativos, respeitando-se a iniciativa privativa em cada caso.
Assim, os legisladores que elaboraram a Lei Orgânica de Major Vieira extrapolaram a matéria a ser nela veiculada, posto que não abordaram de forma genérica os direitos dos servidores públicos, nos moldes da Constituição Federal.
Ao expressar o percentual retributivo do adicional de tempo de serviço incidente sobre o vencimento, feriu a prerrogativa da iniciativa de lei do Poder Executivo, incidindo no mesmo erro quando firmou o número de meses a que tem direito de gozo a título de licença-prêmio o servidor que completar dez anos de serviço público.
A impropriedade de se tratar esta matéria na forma exposta pela Lei Orgânica de Major Vieira fica evidente quando a autoridade competente para iniciar processo legislativo regulando-a, ao afastar tal direito dos servidores em norma específica e apropriada para tanto, no caso o Estatuto dos Servidores Públicos de Major Vieira, depara-se com a subsistência de regramento indevido e de aplicabilidade duvidosa.
Desse modo, cria-se um conflito entre a Lei Orgânica e a Lei Complementar instituidora do Estatuto dos Servidores Públicos, conflito este que pelo critério puro e simples da hierarquia apontaria a prevalência da Lei Orgânica, contudo, à luz do critério da especialidade há que se conferir primazia à Lei Complementar, somando-se a isso a impropriedade material da Lei Orgânica quando concede em seu texto vantagem pecuniária aos servidores, por ofensa ao princípio da iniciativa de lei e alijamento do Poder Executivo do processo legislativo.
IV. CONCLUSÃO
Em conformidade com o acima exposto e considerando:
1. Que o Consulente está legitimado à subscrição de consultas para este Tribunal de Contas, nos termos do inciso II do art. 103 do Regimento Interno desta Corte de Contas, o que atende ao requisito do inciso III do art. 104 da Resolução nº TC-06/2001;
2. Que os questionamentos formulados na presente consulta demandam a interpretação de lei, conforme determina o inciso XII do art. 59 da Constituição do Estado de Santa Catarina, bem como o inciso XV do art. 1º da Lei Complementar Estadual 202/2000;
3. Que a ausência do parecer da assessoria jurídica do órgão Consulente, desatende ao preceituado no art. 104, inciso V, da Resolução n. TC-06/2001, mas, por se tratar de impediente relativo ao conhecimento da consulta pode ser superado pelo Tribunal Pleno, conforme § 3º do art. 105 do mesmo diploma regimental;
Sugere-se ao Exmo. Relator que submeta voto ao Egrégio Plenário sobre a consulta formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de Major Vieira, Vereador Hélio Schroeder, nos termos deste parecer, que em síntese propõe:
1. Conhecer da consulta e respondê-la nos seguintes termos:
1.1 A concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos municipais deve se dar mediante lei específica, respeitada a iniciativa privativa em cada caso, conforme o disposto no artigo 37, X, da Constituição Federal.
1.2 À Lei Orgânica Municipal é indevido o trato de matéria própria de lei ordinária, como a concessão de vantagem pecuniária a servidor público, por afastar do Poder Executivo a possibilidade de vetar, sancionar e promulgar atos normativos dessa natureza.
Florianópolis, 23 de abril de 2009
Marcelo Brognoli da Costa
À consideração do Exmo. sr. relator adircélio de moraes ferreira júnior, ouvido preliminarmente o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas.
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Elóia Rosa da Silva Consultora Geral |
1
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30 ed. São Paulo, Malheiros, 2007. Pág. 641.2
Idem, ibdem, pág. 642.
3
CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. Belo Horizonte, 2001. Pág. 85.
4
Castro, 2001, pág. 85.
5
Meirelles, Hely Lopes. 15 ed. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 2006. Pág. 87.
6
Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 10 ed. São Paulo, Editora Atlas S.A., 2005. Pág. 6.